Olhar Econômico

Urge levar ao Judiciário questão da validade do acordo em forma simplificada!

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

31 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Por largo tempo, os tratados tinham força obrigatória quando de sua assinatura pelo suserano ou seu plenipotenciário. Aos poucos, impôs-se a ratificação; de início, mera formalidade obrigatória; após, em razão da participação dos representantes do povo na formação dos tratados, uma fase, que se seguia à aprovação parlamentar. Dessa maneira concluir um tratado solene ou em forma devida tornou-se mais demorado. A dinâmica das relações internacionais, aliada a outras razões, faria com que surgisse outra espécie de tratado, de formulação mais expedita: o acordo em forma simplificada ou acordo do Executivo.

Ao mesmo tempo em que a ideia força de associar os parlamentos na formação dos tratados, por influência da Revolução Francesa, fazia com que os textos constitucionais dos Estados fossem burilados pela teoria da maior democratização dos acordos internacionais, despontava, paradoxalmente os acordos concluídos sem a intervenção formal do parlamento.

O desenvolvimento maior dos chamados “acordos do Executivo” deu-se nos Estados Unidos da América, país em que a Constituição exige aprovação de dois terços dos senadores como pressuposto para a ratificação de um tratado internacional. A lógica que presidiu, ao menos, inicialmente, foi a seguinte. Com referência às matérias reservadas pela Constituição como de competência exclusiva do presidente norte-americano, ele poderia exercê-las por qualquer meio, inclusive por tratado. Tal se alargou, com o passar do tempo e, com o consentimento tácito do Congresso e da opinião pública, o presidente teve, praticamente restaurado o jus representationis omnimodae (poder de representação total), que possuíam os antigos senhores de circunscrições territoriais, pois os acordos em tela não são distinguíveis materialmente dos tratados. O fato de que as obrigações assumidas por tal prática, hoje mais que secular, venham sendo cumpridas por governos e congressos sucessivos acaba deixando em segundo plano a questão da constitucionalidade.

Por serem tecnicamente simples, por caracterizarem-se pela conclusão imediata — negociação e assinatura —, pela sua extraordinária flexibilidade, os acordos em forma simplificada multiplicaram-se também em outros países. Da mesma forma que nos Estados Unidos, em geral, não se notaram protestos contra tal expediente. A prática demonstra a grande variabilidade desses acordos, o que dificulta sua caracterização. Nem sempre são vazados em um único instrumento; há acordos que preveem ratificação por uma das partes e não pela outra etc. Normalmente, a única distinção é a ausência de alguma das características dos tratados em forma devida.

Três aspectos merecem registro. Primeiramente, poucas são as Constituições que regulam a conclusão dos acordos em forma simplificada; em segundo lugar, não se notaram, nem se notam protestos diplomáticos contra tal expediente; e, por último, não se tem notícia de que os Judiciários dos Países tenham anulado tais acordos por inconstitucionais!

As Constituições brasileiras republicanas asseveram ser a conclusão de tratado ato complexo, em que colaboram o Poder Executivo e o Poder Legislativo[1], não prevendo a possibilidade de acordos em forma simplificada. Pelo contrário, cada nova Constituição parece querer reforçar mais essa ideia, a ponto de a atual, não se referir somente a tratados, convenções etc., mas a atos internacionais, o que interpretado literalmente incluiria os atos internacionais unilaterais do Estado, comumente, pela prática internacional, não submissíveis ao Parlamento.

O debate doutrinário brasileiro sobre a questão iniciou, em 1948, quando Hildebrando Accioly, afirmou a possibilidade de se concluir acordos internacionais sem a participação do Poder Legislativo. Segundo ele, não estariam sujeitos à aprovação do Congresso:

  • os acordos sobre assuntos de competência do Executivo;
  • os concluídos por agentes ou funcionários competentes para tanto, sobre assuntos de importância restrita ou interesse local;
  • os que unicamente interpretam cláusulas de tratados já vigentes;
  • os decorrentes e complementares de tratados vigentes; e
  • os de modus vivendi, na medida que deixem as coisas no estado em que se encontram ou estabeleçam bases para futuras negociações.

Haroldo Valladão, em 1950, filiou-se à interpretação clássica, dos constituintes de 1891 e seguida por Clóvis Beviláqua e João Barbalho, pela não distinção quanto à matéria e a importância dos ajustes internacionais. A Constituição norte-americana refere-se somente a tratados, exigindo o consentimento do Senado; enquanto que a Constituição de 1891, em seu artigo 48, XVI, previa o referendum do Congresso para “ajustes, convenções e tratados”.

Replicou Accioly, demonstrando que na vigência da Constituição de 1891, foram concluídos acordos internacionais sem aprovação do Congresso e que tal praxe continuou durante a vigência das Constituições de 1934 e 1946; que, consoante a prática, a doutrina e a jurisprudência internacionais inexiste princípio que obrigue a ratificação de todos os tratados; que, há no Brasil costume extra legem, no sentido de não se exigir aprovação do Congresso, para certos ajustes internacionais etc.

Para Pereira de Araújo, a inexistência nas constituições posteriores a de 1891, das palavras “sempre” e “ajustes”, nesta constantes, criou as condições para a superveniência de uma norma extra legem, no sentido de que os atos internacionais de menor importância estariam imunes à necessidade de aprovação legislativa. O número crescente de atos internacionais concluídos pelo Brasil sem a participação do Legislativo, a começar na vigência da primeira Constituição republicana e num crescendo sob os textos constitucionais posteriores, fornece o elemento material para a verificação da regra consuetudinária. O elemento subjetivo corporificou-se por meio do Poder Executivo, que sempre considerou legal a exceção ao princípio constitucional, sob o silêncio contínuo e complacente do poder interessado, isto é, o Congresso Nacional, conclui pela possibilidade constitucional, bem como pela existência no Brasil de uma regra consuetudinária, segundo a qual, dentro do critério da competência privativa dos poderes do Estado, os atos internacionais que versem matéria de atribuição do Poder Executivo prescindem do referendum do Congresso Nacional”.

A redação dos textos constitucionais de 1967 e 1969 reacendeu a controvérsia, fazendo com que Valladão reafirmasse sua opinião sobre a indispensabilidade da aprovação do Congresso. A Emenda Constitucional de 1969, ao repetir o texto de 1946, acrescentando a “tratados e convenções”, a expressão “e atos internacionais”, provocou duas posições doutrinárias, que podem ser exemplificadas, de um lado por Albuquerque Mello e, de outro, por Rezek. O primeiro acredita na permanência da possibilidade da conclusão dos acordos em forma simplificada, pois a expressão “ato internacional” foi utilizada como sinônimo de tratado; interpretar diferentemente seria entravar a política externa. Já Rezek, considera que a partir do momento em que a Constituição fala em, “ato internacional”, defender a convalidação de atos internacionais destituídos de aprovação parlamentar, passa a ser um exercício contra legem e não mais extra legem; sendo inaceitável costume internacional contrário à letra da Constituição. Para ele, um pacto internacional carente da aprovação individualizada do Congresso somente é possível se tiver sustentação na própria lei fundamental. Os acordos “que consignam simplesmente a interpretação de cláusulas de um tratado já vigente” e os de modus vivendi, “quando têm em vista apenas deixar as coisas no estado em que se encontram, ou estabelecer simples bases para negociações futuras” estão no domínio da diplomacia ordinária e embasam-se na norma constitucional referente à celebração de tratados. Nos acordos “que decorrem, lógica e necessariamente, de algum tratado vigente e são como que o seu complemento”, há o assentimento prévio do Congresso Nacional, que cobre os acordos de especificação, de detalhamento e de suplementação, desde que haja para tanto previsão no texto[2].

A prática de se concluir acordos internacionais que entram em vigor pela assinatura, geralmente sob a forma de memorando, protocolo de entendimento, declaração conjunta, troca de notas ou troca de cartas vem desde os primórdios da República. Houve exemplos de acordos em forma simplificada ocorridos sob as Constituições de 1891 e 1934. No período abrangido pelas Constituições de 1946, 1967 e da Emenda Constitucional 1/69, tal prática foi incrementada. Continua a haver grande número de acordos do Executivo desde o início da vigência da atual constituição. Desse modo, a prática desses acordos no Brasil é mais que centenária, embora nenhuma de nossas Constituições reconheça a existência desse tipo de acordo. A questão foi discutida em nossa última Assembleia Constituinte, mas afinal nada foi concluído. Além de continuar inexistindo previsão constitucional para tal tipo de acordo, o inciso VIII do artigo 84, ao se referir não somente a tratados e convenções, mas a atos internacionais, parece, em interpretação literal, querer sujeitar todo e qualquer ato internacional à aprovação parlamentar.

No que tange às formalidades necessárias para a executoriedade do acordo em forma simplificada no ordenamento brasileiro, a promulgação pelo Poder Executivo é dispensada, respeitando-se apenas a formalidade da publicação no Diário Oficial da União. A prova de sua vigência interna é feita, portanto, por tal publicação.

As regras constitucionais sobre tratado, inclusive as da vigente constituição, estritamente, o consideram como sendo possível, unicamente, com a participação dos Poderes Executivo e Legislativo; não havendo, nem mesmo, menção aos acordos em forma simplificada. O embate doutrinário sobre a problemática desses acordos, embora antigo, não dá mostras de ter arrefecido. Por outro lado, a prática brasileira, inclusive no âmbito do Ministério das Relações Exteriores, milita em favor de sua aceitação, ao menos em casos específicos. Entretanto não se tem notícia de jurisprudência a respeito, inobstante se trate de problema de grande importância. Não seria o caso de os advogados, ao tratarem de casos em que o fundamento de um direito seja um acordo em forma simplificada e em interessando para a sua tese, levá-lo ao Judiciário, para que, finalmente, tivéssemos precedentes sobre essa magna quaestio? Afinal, os acordos em forma simplificada veiculam importantes temas econômicos e comerciais; e a inércia e o conformismo nunca fizeram o direito progredir.


1 Rodas, João Grandino, “Tratado internacional solene só é executório no Brasil, depois da promulgação e publicação”, Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 24 de dezembro de 2015.

2 Rodas, João Grandino, “Tratados Internacionais”, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1991, p.28/47.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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