Opinião

Passivo tributário não pode ser usado como estratégia competitiva

Autor

  • César Peres

    é sócio do Cesar Peres Advocacia Empresarial especializado em Direito Empresarial e membro da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial da OAB-RS e da Turnaround Management Association – TMA Brasil.

31 de dezembro de 2015, 5h29

A ordem econômica brasileira se assenta na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa privada, princípios expressos no artigo 170 de Constituição, visando assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da Justiça social. Entende-se por livre iniciativa a liberdade de entrar num mercado e nele competir com as empresas já estabelecidas. Para se desincumbir desse desiderato, o inciso IV do referido artigo diz que o regime a ser observado é o da livre concorrência. E por bons motivos.

Do ponto de vista do consumidor, se há concorrência num determinado nicho de mercado, os preços praticados tendem a ser fixados nos menores patamares possíveis. Os fabricantes de bens e serviços, por seu turno, só oferecem preços razoáveis quando conseguem aumentar a eficiência operacional. A livre concorrência significa, então, de um lado, menores preços para os consumidores e, de outro, estímulo à criatividade e inovação nas empresas. Assim, tudo o que impede a livre concorrência depõe contra os ideais de eficiência econômica e de Justiça social.

Postas as premissas básicas, causa grande preocupação o uso, cada vez mais frequente, do passivo tributário como estratégia competitiva para minar o postulado da livre concorrência. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) analisa atos lesivos à concorrência que apresentam clara ligação com a tributação de alguns agentes econômicos. Além dos cases clássicos da chamada guerra fiscal, o órgão detectou o uso de imunidade tributária e de incentivos fiscais como fatores de vantagem competitiva em algumas cadeias mercadológicas.

Tal fenômeno não ocorre só com grandes empresas, financeiramente sadias, com alto poder de mercado para aniquilar seus concorrentes.

Empresas em dificuldades, que buscam o abrigo da recuperação judicial para sair do sufoco, vêm explorando a falta de regulamentação da questão tributária na Lei 11.101/2005, que a instituiu. É que o legislador não editou, até hoje, a norma reguladora complementar para o artigo 68 da lei recuperacional, que acena com o parcelamento de débitos fiscais de forma diferenciada para empresas em recuperação. Diante desse vácuo legislativo, o juiz não pode aplicar o artigo 57 da mesma lei, que exige a apresentação de certidões negativas de débitos como conditio sine qua non para se habilitar à recuperação. 

A omissão tem levado o Poder Judiciário, na maior parte das vezes, a desobrigar a empresa em dificuldades de apresentar essas certidões quando se habilita judicialmente ao benefício da recuperação. E, no curso da reorganização, não há poder coercitivo que obrigue a empresa em recuperação a manter a sua obrigação tributária em dia. Pura insegurança jurídica que reflete falta de isonomia e, claro, prejuízo aos legítimos interesses do fisco, que fica de mãos amarradas, sem poder agir para recuperar os seus créditos — que pertencem à sociedade. No efeito prático, o Judiciário vem se equilibrando na corda bamba, tentando compatibilizar o soerguimento empresarial com o interesse público para recebimento dos tributos devidos.

Tomemos como exemplo o caso de dois players que operam no mesmo ramo, um sob o abrigo da recuperação, e o outro, não. A empresa recuperanda — protegida pelo espírito da lei — passa a ser mais competitiva, pois a moratória susta todas aquelas obrigações que pesam significativamente no desempenho final da operação. Embora os tributos estejam fora da recuperação, o juiz recuperacional não vai autorizar nenhum ato que signifique expropriação financeira ou patrimonial — e aqui se incluem as execuções fiscais. Tudo para satisfazer o princípio da preservação empresarial.

Há casos identificados, inclusive em apreciação no Judiciário, que configuram claro abuso ou desvirtuamento da legislação. À custa do inadimplemento de tributos, muitos negócios cambaleantes, sem qualquer possibilidade de reorganização, vêm sendo mantidos vivos pela bondade judicial. Ou melhor: o Judiciário vem sendo usado para manter vivos negócios sem nenhuma viabilidade.

Ora, a recuperação judicial tem um propósito muito mais nobre e não se presta a esse papel. A lei objetiva a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa em dificuldade, a fim de permitir a continuidade dos negócios, a manutenção dos empregos e os interesses dos credores, o que constitui a sua função social. É um meio para que a reorganize seus negócios, redesenhe o passivo e se recupere de momentânea dificuldade financeira.

Assim, o emprego dessa estratégia, com o auxílio da lacuna legal, não é uma conduta comercial ética com os competidores nem socialmente justa com consumidores. É hora de acabar com esse vazio normativo, para não ferir de morte os preceitos constitucionais.

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