Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo angolano (parte 36)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

6 de janeiro de 2016, 17h04

Spacca
1. A graduação em Direito em Angola
Na sequência das colunas anteriores sobre a formação jurídica em Angola (veja mais em http://www.conjur.com.br/2015-dez-23/direito-comparado-produz-jurista-modelo-angolano-parte-34 e http://www.conjur.com.br/2015-dez-30/direito-comparado-produz-jurista-modelo-angolano-parte-35), inicia-se esta terceira parte da série sobre a graduação em Direito.

Os alunos ingressam na faculdade de Direito por duas formas. Nas instituições públicas, faz-se o equivalente a um exame vestibular, como no Brasil. Na Universidade Agostinho Neto, que é pública, as provas compreendem conhecimentos de língua portuguesa, matemática, história geral e de Angola.

Se o interessado pretender cursar uma faculdade privada, ele será selecionado de acordo com suas notas no ensino pré-universitário e, em algumas universidades, como a Católica de Angola, o candidato submete-se a provas de ingresso abrangendo o conteúdo de língua portuguesa e cultura geral, além de haver comprovado a conclusão do ensino médio[1].

O curso de Direito tem duração de cinco anos. As avaliações seguem o modelo português, com exames para cada disciplina ao final do período letivo. As notas também são atribuídas à moda portuguesa, com o sistema de valores (20 valores correspondem à nota 10 no Brasil, e assim de modo decrescente). 

As aulas seguem o modelo magistral, no que não se diferenciam muito do padrão usual seguido na Europa.

Segundo informações gentilmente oferecidas pelo professor Lino Diamvutu, da Universidade Agostinho Neto, os estudantes angolanos valem-se de manuais para as disciplinas básicas do curso. São exemplos de obras de reconhecido destaque na bibliografia jurídica angolana os livros de Carlos Alberto Burity da Silva (Teoria Geral do Direito Civil. Luanda: Faculdade de Direito da UAN, 2004), Maria do Carmo Medina (Direito de Família. Lobito: Escolar Editora, 2011), Raúl Carlos Vasques Araújo (Constituição da República de Angola: Anotada. Luanda: Dos Autores, 2014. t.1, em coautoria com Elisa Rangel. Luanda) e Luzia Bebiana de Almeida Sebastião (Sobre o tipo de ilícito: Contributo para uma aproximação à evolução da doutrina penal contemporânea. Luanda: Faculdade de Direito da UAN, 2005).

No campo bibliográfico, as relações com a cultura jurídica portuguesa seguem muito profundas. Autores como José Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, António Menezes Cordeiro, Carlos Alberto da Mota Pinto, Antunes Varela e Dario Moura Vicente têm seus trabalhos divulgados e estudados em Angola, além de sua participação pessoal em cursos, bancas examinadoras e seminários nas instituições de ensino superior angolanas. Esses vínculos permanecem fortalecidos tanto na graduação quanto na pós-graduação. Em contraponto, não há semelhante conhecimento de livros jurídicos brasileiros, e, salvo em relação a ministros de cortes superiores lusófonas, não há também uma maior interação com juristas brasileiros no âmbito universitário. 

2. A matriz curricular da graduação em Direito
À semelhança dos modelos europeus do continente, o ensino jurídico angolano defere autonomia para a formação das matrizes curriculares pelas instituições de ensino superior. A estrutura dessas matrizes, conhecidas como “plano de estudos”, uma expressão também tipicamente europeia, é variável conforme a universidade pesquisada.

Veja-se a estrutura curricular da Universidade Agostinho Neto[2]:

a) Primeiro ano: Ciências Políticas (primeiro e segundo semestres); Introdução ao Estudo do Direito (primeiro e segundo semestres); Filosofia (primeiro semestre); História das Ideias Políticas e Jurídicas (segundo semestre) e Economia Política (segundo semestre);

b) Segundo ano: Teoria Geral do Direito Civil (primeiro e segundo semestres); Direito Administrativo (primeiro e segundo semestres); Direito Internacional Público (primeiro e segundo semestres); Finanças Públicas (primeiro semestre);

c) Terceiro ano: Direito Processual Civil (primeiro e segundo semestres); Direito Penal (primeiro e segundo semestres); Direito das Obrigações (primeiro e segundo semestres); Direito Econômico (primeiro semestre); Direitos Reais (segundo semestre);

d) Quarto ano: Direito Comercial (primeiro e segundo semestres); Direito da Família (primeiro semestre); Direito Processual Penal (primeiro semestre); Direito Fiscal (segundo semestre); Direito do Trabalho (segundo semestre) e Direito das Sucessões (segundo semestre).

No quinto ano, os alunos devem cursar duas chamadas “disciplinas gerais”, que são Direito Internacional Privado (primeiro e segundo semestres) e Medicina Legal (primeiro semestre). Nessa última etapa do curso, o estudante de Direito pode escolher três áreas de especialização, com disciplinas específicas. A primeira delas é a relativa às Ciências Jurídico-Políticas, compreensiva de Direito Constitucional II (primeiro semestre), Direito Administrativo II (segundo semestre) e Direito Internacional Público II (segundo semestre). A segunda área é denominada de Ciências Jurídico-Civis, integrada por Direito Processual Civil II (primeiro semestre), Direito Processual Civil III (segundo semestre) e Direito Penal II (segundo semestre). A terceira área denomina-se de Ciências Jurídico-Econômicas, integrada pelas disciplinas Direito dos Recursos Minerais (primeiro semestre), Direito do Comércio Internacional (segundo semestre) e Moeda, Crédito e Bancos (segundo semestre).   

O exame dessa matriz curricular é interessante sob vários aspectos. Pode-se aprender com a experiência de um país africano, lusófono e que saiu parcialmente de uma de organização econômica marxista. Olha-se para além da perspectiva europeísta e de uma economia desenvolvida para uma realidade mais próxima da nossa, seja em termos étnicos, seja em termos econômicos. E, ao final, encontra-se uma estrutura de formação discente organizada, sóbria e com distribuição equilibrada de disciplinas, prestigiando-se as disciplinas-eixo (Direito Civil e Direito Público, em suas diferentes emanações) com uma preocupação com as áreas metadogmáticas, sem, no entanto, desviar o foco de um curso jurídico, que é dotar o aluno de conhecimentos operacionais para sua profissão.        

No modelo angolano não há também, como de resto ocorre em Portugal e Itália, uma contraposição entre disciplinas obrigatórias e optativas, como se entre estas houvesse uma preeminência qualitativa para a formação discente. Por igual, não existem disciplinas metajurídicas para além das que usualmente dialogam com o Direito no âmbito axiológico (Filosofia e Economia).

Comparativamente com outra instituição respeitada no país, a Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola, o plano de estudos da Universidade Agostinho Neto não apresenta maiores diferenças. Na Católica, sobressaem algumas disciplinas específicas, como Direito Romano, Direito Comparado e Direito Eclesiástico, reveladoras de um perfil peculiar dessa universidade, que não se pretende alheia de suas origens religiosas e do papel de sua mantenedora, a Igreja Católica[3].   

A matriz curricular do curso de Direito da Universidade Metodista de Angola aproxima-se do perfil de sua homóloga católica. A instituição metodista apresenta como diferenciais um maior número de matérias optativas ao longo dos anos (e não concentradas no final da faculdade) ou de caráter confessional, como Informática para Juristas (primeiro ano, um semestre), Inglês para Juristas (segundo semestre), Bioética e Biodireito, além de Metodismo e Doutrina Social[4]. Em Angola, os cursos confessionais parecem não ter vergonha de suas origens.

 3. Profissões jurídicas em Angola
Como já salientado na coluna anterior, o Direito não ocupa um espaço de centralidade em Angola. A tendência é que essa realidade mude com o passar do tempo, dado o movimento quase universal de substituição dos militares (em países economicamente mais atrasados) e do Parlamento ou do monarca (nas nações mais ricas) como árbitros dos conflitos políticos. Chega a ser visionário — ou freudianamente curioso — o dístico da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto: cedant arma togae (cedam as armas seu espaço às togas).

São profissões admitidas ao exercício de egressos das faculdades de Direito a advocacia, a consultoria jurídica (atividade de parecerista), o conservador (equivalente no Brasil ao registrador), o notário, o professor de Direito, o membro de carreira diplomática, o integrante de carreiras administrativas no serviço público e o magistrado, que pode exercer suas funções no Poder Judiciário ou no Ministério Público.

Na próxima e última coluna, examinar-se-ão essas carreiras, com especial ênfase no papel do professor de Direito.


[1] Informações disponíveis em: http://www.ucan.edu/www14/index.php/2014-07-23-23-38-34/informacoes-licenciatura-direito. Acesso em 3-1-2016.
[2] Informações disponíveis em: http://www.fduan.ao/licenciatura.php. Acesso em 6-1-2016.
[3] Informações disponíveis em: http://www.ucan.edu/www14/index.php/2014-07-23-23-38-34/plano-licenciatura-direito. Acesso em 3-1-2016.
[4] Informações disponíveis em: http://www.uma.co.ao/Ensino/Cursos/Licenciaturas/Direito/(ver)/plano/(codigo)/20. Acesso em 2-1-2016

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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