Opinião

PGR não pode dirimir conflito de atribuição entre MPs dos estados

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29 de dezembro de 2015, 5h51

O procurador-geral da República não tem atribuição para dirimir conflitos de atribuições entre os ministérios públicos dos estados, segundo decidiu o ministro Celso de Mello, ao julgar um pedido do chefe do Ministério Público da União, que pretendia ter reconhecido o direito de definir qual unidade da federação deve proceder a investigação de um determinado crime.

O pedido foi feito em uma Ação Cível Originária em curso no Supremo Tribunal Federal em que se discutia qual Ministério Público, se o do Rio de Janeiro ou o de São Paulo, deveria apurar um caso de falso sequestro. Na manifestação, o chefe do Ministério Público da União requereu que fosse reconhecida "sua atribuição para dirimir o presente conflito negativo de atribuição”.

Ao negar o pedido, o ministro Celso de Mello afirmou “implicar ofensa à autonomia institucional do Ministério Público dos estados, exigir-se que a sua atuação processual se faça por intermédio do senhor procurador-geral da República, que não dispõe de poder de ingerência na esfera orgânica do ‘parquet’ estadual, pois lhe incube, unicamente por expressa definição constitucional a chefia do Ministério Público da União”, acrescentando que “o Ministério Público estadual não é representado, muito menos chefiado, pelo senhor procurador-geral da República, eis que é plena a autonomia do ‘parquet’ local em face do eminente chefe do Ministério Público da União”. 

O relator frisou ainda que o Ministério Público dos estados não está vinculado nem subordinado, no plano processual, administrativo ou institucional, à chefia do Ministério Público da União, por isso tem direito de postular, autonomamente, em sede originária, perante o Supremo: “Tais são as razões pelas quais também não compete ao eminente senhor procurador-geral da República o poder para dirimir conflitos de atribuições entre membros de Ministérios Públicos estaduais entre si ou, ainda, entre integrantes do Ministério Público da União e agentes do Ministério Público dos estados-membros, eis que, em referidas situações de antagonismo, a atribuição originária para resolver eventuais conflitos (positivos ou negativos) pertence ao Supremo Tribunal Federal.”[1]

O acerto do ministro salta aos olhos. Já o pedido do Procurador-Geral da República foi de todo equivocado, pois antes de se iniciar a ação penal, com o oferecimento da denúncia, não se pode falar em conflito de competência, mas, tão somente, de atribuições entre membros do Ministério Público a ser dirimido pelo procurador-geral de Justiça (ou pela Câmara de Coordenação e Revisão — artigo 62, VII da Lei Complementar 75/93, conforme o caso), salvo em caso de requerimento de alguma medida cautelar.

O que diferencia o conflito de atribuição do conflito de competência não são exatamente as autoridades em "confronto", mas o tipo de ato (processual ou procedimental) a ser praticado. Assim, o fato de dois juízes declararem não ser competentes, não implica necessariamente que tenha surgido entre eles um conflito negativo de competência, pois o que importa para a identificação do problema é visualizarmos em cada caso concreto qual a natureza do ato praticado e não a autoridade que o praticou.

Ora, quando se está diante de uma investigação preliminar não há, ainda, evidentemente, processo instaurado, sequer ação penal iniciada. Nestas condições, os atos judiciais exarados em um procedimento investigatório revestem-se de caráter eminentemente investigatório (salvo as medidas de natureza cautelar, as provas técnicas e as provas produzidas antecipadamente), não podendo ser considerados atos jurisdicionais, nem gerar, por conseguinte, qualquer vinculação do ponto de vista da competência processual.

Aliás, admitindo-se o contrário estaria ferida de morte a autonomia dos membros do Ministério Público, pois a atribuição ministerial seria ditada pelo ato do Juiz, o que é inconcebível no sistema acusatório. Sendo persecutório o ato a ser praticado, e exclusivo do Ministério Público, não pode se admitir que o órgão jurisdicional, antes de iniciada a ação penal, decida sobre sua competência, visto que a análise de tal matéria ainda lhe é defesa.

Bem a propósito, vê-se que o artigo 109 do Código de Processo Penal refere-se a processo quando determina que o juiz se declare incompetente. E procedimento investigatório não é processo… Assim, impossível enxergar em tais hipóteses as feições de um conflito negativo de competência, pois os atos judiciais proferidos em inquérito policial (ou em qualquer outra peça informativa) não se caracterizam como decisões de positivação ou de negação de suas respectivas competências.

Afrânio Silva Jardim, discorrendo sobre o tema, assim se pronunciou há tempos:

“Como se sabe, o inquérito policial tem natureza administrativa, sendo atividade investigatória do Estado-Administração, destinada a dar lastro probatório mínimo a eventual pretensão punitiva. Se tal é a natureza do procedimento policial, outra não pode ser a natureza dos diversos atos que o compõem. Mesmo os atos praticados pelo Juiz no curso do inquérito têm a natureza administrativa, sendo, por isso, chamados pelo professor Fernando da Costa Tourinho Filho de anômalos, tendo em vista o sistema acusatório. Não são jurisdicionais, pois sem ação não há jurisdição. Inexiste possibilidade de conflito de competência ou jurisdição na fase inquisitorial, pela própria natureza dos atos que aí são praticados. Ficam expressamente ressalvadas as hipóteses de jurisdição cautelar, como, por exemplo, a decretação de prisão preventiva ou concessão de liberdade provisória (contracautela).O simples fato de os Juízes, no inquérito, terem encaminhado os respectivos autos, a requerimento do MP, para outro órgão judicial não implica em afirmar ou negar a sua competência, tratando-se de despachos de mero expediente ou ordinatórios. Note-se que o art. 109 do CPP permite que o Juiz declare sua incompetência ‘em qualquer fase do processo’, não do inquérito policial.”[2]

Da mesma maneira, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: “O juiz, quando determina o encaminhamento dos autos do inquérito para outro órgão do Ministério Público, o faz exercitando unicamente atividade administrativa, como chefe que é dos serviços administrativos do cartório. (…) o despacho de encaminhamento tem natureza simplesmente administrativa). Não existe nenhuma atividade jurisdicional e mesmo judicial na hipótese. Uma vez que, na prática, existe um despacho administrativo, lacônico que seja, não podemos transformá-lo de uma penada, sem um exame mais cauteloso de cada hipótese, em declinação da competência de um juízo, sob pena de subvertermos toda a ordem processual, além dos demais e gravíssimos inconvenientes e ilegalidades que tal medida acarretaria.”[3]

Pois bem. Qual a outra questão?

Caso surja (e não é incomum, muito pelo contrário) um conflito de atribuições entre membros de Ministérios Públicos de estados diversos (ou mesmo entre representantes do Ministério Público Federal e Estadual), quem deve dirimi-lo?

Não será o Superior Tribunal, pois, como se disse acima, não se trata de um conflito de competência; ademais, não se encontra esta competência elencada no artigo 105 da Constituição Federal, e “a competência expressa determinada pela Constituição Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim o pretendia.”[4]

Também, e evidentemente, estão excluídos o procurador-geral de Justiça respectivo e o procurador-geral da República, pois ambos chefiam instituições independentes (inclusive do ponto de vista constitucional) e não há falar-se em hierarquia entre elas, de modo que o chefe de uma não poderá impor ao membro da outra o seu posicionamento.

Resta-nos, então, considerando que, in casu, estamos possivelmente diante de um conflito federativo instaurado entre a União (via Ministério Público Federal) e o Estado (através do respectivo Ministério Público Estadual), ou entre este Estado e um outro, entendermos que é o Supremo Tribunal Federal o órgão judiciário competente para dirimir este conflito, pois a ele cabe processar e julgar originariamente “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta” (artigo 102, I, “f”).[5] Esta é uma posição defendida há mais de duas décadas pelos Professores Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[6] e Afrânio Silva Jardim[7].

O Supremo Tribunal Federal decidiu neste sentido pela primeira vez no julgamento da Petição 3.528-3 – BA, tendo como relator o ministro Marco Aurélio. A partir deste julgamento, várias outras decisões se sucederam.

Nada obstante este entendimento já consolidado na Corte Suprema, de lege ferenda, entendemos que seria mais adequado, seja do ponto de vista do acima analisado sistema acusatório (artigo 129, I, da Constituição Federal), seja sob o prisma institucional (artigo 127, §§ 1º e 2º, da Carta Magna), seja sob o aspecto constitucional (artigo 130-A, § 2º da Constituição Federal), que tais conflitos de atribuição fossem decididos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, órgão constitucionalmente legitimado para o controle do “cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”.

Para tanto, acrescentar-se-ia ao artigo 130-A, § 2º da Constituição Federal, o inciso VI, com a seguinte redação: “dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público de Estados diversos e entre estes e os membros do Ministério Público da União”. Fica a sugestão para um Projeto de Emenda à Constituição.


[1] http://www.conjur.com.br/2015-dez-24/nao-compete-pgr-decidir-conflito-atribuicao-entre-mps-decide-stf

[2] Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. ed., 2001, p. 225 e seguintes.

[3] O Ministério Público no Processo Civil e Penal, Rio de Janeiro: Forense, 5ª. ed., 1995, págs. 190 e seguintes.

[4] Gomes, Luiz Flávio, Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 157.

[5] Na verdade, do ponto de vista da Constituição Federal, só há conflito federativo quando houver “intensidade do risco de ruptura da harmonia entre os entes federados”, conforme afirmou o Ministro Joaquim Barbosa, na Ação Cível Originária (ACO) 1110.

[6] O Ministério Público no Processo Civil e Penal, Rio de Janeiro: Forense, 5ª. ed., 1995, pp. 211 e seeguintes.

[7] Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 10ª. ed., 2001, p. 233.

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