Opinião

E se o Supremo Tribunal Federal do Brasil funcionasse de forma bicameral?

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27 de dezembro de 2015, 7h30

Reflexões decorrentes da filosofia do “como se fosse” (philosophy of As if[i]) e sobre a experimentação do “E se” (What if[ii]), além de inspirar humor de gags e de esquetes[iii], certamente auxiliariam bastante o imaginário jurídico. Basta fazermos uma tentativa inicial através da seguinte pergunta: E se o STF fosse Bicameral?

Sabe-se que o Tribunal possui duas Turmas (e que no passado já possuiu três), mas falamos da possibilidade de ele vir a possuir duas “casas distintas” como no parlamento, e não de “turmas” ou “câmaras” propriamente ditas, como as que comumente existem nos Tribunais, fracionados em colegiados menores que o Tribunal Pleno.

Conhecemos um Legislativo bicameral; mas e se o órgão de cúpula do ramo judicial do poder (STF) também fosse composto de duas casas? Uma casa dos representantes do povo e outra dos representantes técnicos do Direito. Uma casa que aprovasse o que a outra chancelou, e ambas com poder de iniciativa sobre a confirmação e revogação dos atos da outra. Excêntrico?

Nem tanto se pensarmos no Tribunado da Plebe[iv], ou na pretensão hodierna de que o STF seja um “canal do autogoverno democrático”[v] ou que possua um papel majoritário e também contramajoritário[vi], muito embora a forma adequada de dar vazão a estas duas últimas e “modernas” ideias seja com um “bicameralismo judicial” e não através das ficções jurídicas que pretendem.

Neste sentido, não poderíamos perder de vista o fato de que a Suprema Corte Americana já funcionou através do modelo de tribunal do júri[vii], embora em casos raríssimos, antigos e pouco documentados, e de que o júri não seria especificamente uma outra casa permanente, mas serviria para afastar preconceitos se observarmos que no Brasil o júri está destinado a julgar os casos de crimes graves contra a vida, e que bem poderia também julgar, por exemplo, crimes de responsabilidade das autoridades da república.

Evidentemente o júri possui muitas críticas, deficiências e dificuldades, mas se ele pode o mais (julgar crimes de homicídio) o que justificaria ele não poder o menos (julgar os crimes de responsabilidade das autoridades)? Esta não é uma pergunta retórica, e serve verdadeiramente a propósitos reflexivos, que podem levar inclusive a reflexões sobre a própria existencia do Tribunal do Júri (lateral neste texto).

Em todo o caso, a este propósito, sobre um bicameralismo no poder judicial, o instigante texto de Demian Zayat[viii], que precisa ser lido conjuntamente com o resgate histórico sobre o Tribunal do Júri na Suprema Corte americana feito por Lochlan Shelfer[ix], de modo a pensarmos em um universo possível e alternativo para o nosso país, pois nada é pior do que a falta de imaginação, e tanto pior se estiver dissociada de um necessário cotejo historiográfico com vistas a discutirmos proposições sobre o aprimoramento das instituições.

Se estivermos discutindo a alegação de que o Supremo representa a população, ou de que ele permite o “autogoverno”, então que seja proposto de fato o ingresso da população no seio do poder judicial. Tanto melhor se discutirmos aspectos, problemas e hipóteses do lado de fora da caixa ficcional proposta. Mas que Bicameralismo seria esse? Como ele realizaria o “controle de constitucionalidade das leis e atos normativos”? Quem seriam seus membros, e mais importante até: quem os indicaria, e sob quais critérios? O presente texto é apenas uma instigação inicial para o debate. Que ele seja profundo, aberto e democrático.

 


[i] A referência remonta ao filósofo alemão Hans Vaihinger e seu livro “The Philosophy of ‘As if’: A System of the Theoretical, Practical and Religious Fictions of Mankind”, na tradução de C. K. Ogden de 1924 (O livro decorre de sua dissertação de 1877, publicado em alemão em 1911 com o título “Die Philosophie des Als Ob”).

[ii] Quedamo-nos com a descrição das hipóteses contidas no livro “What if? Thought Experimentation in Philosophy”, de Nicholas Rescher (2005).

[iii] A este propósito, recordamos o Canal “Ixi”, um grupo de humor do Youtube, que possui um quadro específico destinado ao riso baseado no “E se…”.

[iv] Na Tese de Livre Docência de Manuel Figueiredo Ferraz, defendida na Universidade de São Paulo, autores que tratam sobre o tema do ‘Tribunado da Plebe’ “usam indistintamente ‘tribunado’ e ‘tribunato’. “O aparecimento em Roma, logo ao início de seu período republicano, do tribunado da plebe, constitui acontecimento singular; longe de pretenderem instaurar nova ordem política, os plebeus, através de seu magistrado, lutaram pela inserção de sua classe no quadro das magistraturas de origem patrícia e conseguiram tal objetivo após longa luta, cujas fases são conhecidas dos historiadores. O esforço da Plebe romana que formava antes espécie de burguesia, por sua equiparação política, assemelha-se, em parte, ao da Revolução Francesa com notável diferença, porém: enquanto aqui a obra revolucionária destruiu o Antigo Regime, lá a classe ascendente não mudou em nada as grandes linhas da ordem vigente, limitando-se a pleitear e conseguir participação nela. Teríamos, assim, no tribunado da Plebe romana, caso raro, senão único do que poderíamos chamar de revolução conservadora…” e “Os plebeus não gozavam dos mesmos direitos dos patrícios, (…) e esta situação desigual provocou duas tendências distintas e, à primeira vista, contraditórias (…) em 494 a.C., os plebeus retiraram-se para o Monte Sagrado e ameaçavam os patrícios de fundar ali uma cidade, que seria rival de Roma. O resultado desse gesto foi a concessão dos patrícios, que permitiram aos plebeus o direito de escolher magistrados próprios, dotados de poder extraordinário, até mesmo o de intercessão contra os cônsules e os demais magistrados”. Cfr. FERRAZ, Manuel M. de Figueiredo. Do Tribunado da Plebe. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1989, p. 15; 82.

[v] Cfr. MENDONÇA, Eduardo. A Jurisdição Constitucional como Canal de Processamento do Autogoverno Democrático. Em: SARMENTO, Daniel (org). Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[vi] Cfr. BARROSO, Luís Roberto. Razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o Governo da Maioria. Revista Brasileira de Políticas públicas, v. 5, 2015.

[vii] A previsão de "júris especiais" pela Suprema Corte é vislumbrada a partir da Sétima Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, proposta em 1789. Observamos que a Suprema Corte Americana julgou pelo menos 3 casos em modelo de Júri em 1870, dos quais apenas 1 restou efetivamente registrado (caso Georgia v. Brailsford, 3 U. S. [3 Dall], 1797. Cfr. SHELFER, Lochlan F. Special Juries in the Supreme Court. The Yale Law Journal 123, 2013.

[viii] ZAYAT, Demian. Jueces y Jurados. Hacia un “Bicameralismo” en El Poder Judicial. Em: GARGARELLA, Roberto (org). Teoria y Crítica del Derecho Constitucional. Tomo I – Democracia. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2009, p. 411-439..

[ix] Na já referida obra. Cfr. SHELFER, Lochlan F. Special Juries in the Supreme Court. The Yale Law Journal 123, 2013.

Autores

  • é advogado, doutorando e mestre em direito (UniCEUB), pesquisador-discente do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC) e dos grupos de pesquisa “Cortes Constitucionais, Democracia e Isomorfismo”, “Justiça Processual e Desigualdade (ISO)”, “Teoria(s) do Direito e seus Sentidos Contemporâneos”

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