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Família de Nazaré é exemplo de parentalidade socioafetiva

20 de dezembro de 2015, 7h02

Por Rodrigo da Cunha Pereira

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A família de Nazaré foi, é, e continuará sendo uma das mais expressivas formas de família socioafetiva.  José, o carpinteiro não era o pai biológico de Jesus, mas era o marido de sua mãe Maria, e o criou como se filho fosse. Ninguém na face da terra duvida que José é o pai de Jesus, mesmo sabendo que ele não era o genitor.

A expressão paternidade socioafetiva é uma criação do Direito brasileiro e traduz a realidade vivida por milhares de pessoas. Aquilo que tradicionalmente chamávamos de posse de estado de filho, complementados pela expressão tractus, fama e nomem, já está reconhecida em dezenas de decisões dos tribunais brasileiros, inclusive no Superior Tribunal de Justiça com a denominação de socioafetividade. Em 2016, Supremo Tribunal Federal deve julgar a Ação RE 898060-SC (relator ministro Luiz Fux), cuja discussão central é a paternidade/maternidade socioafetiva . Pela primeira vez o STF se posicionará sobre este assunto.

Não há como negar a realidade das relações afetivas que se constituem ao longo da vida e se tornam ato-fato jurídico, seja para constituição de famílias conjugais ou parentais. É obvio que isto não é tão simples e corre-se até mesmo o risco da banalização deste importante e saudável instituto jurídico com interpretações apressadas e distorcidas. Mas, por outro lado, ninguém pode negar que os laços de sangue não são suficientes para garantir um parentesco. A verdadeira paternidade/maternidade é adotiva, isto é, se eu não adotar meu filho, mesmo biológico, jamais serei pai. E a paternidade socioafetiva é uma categoria da paternidade adotiva.

A concepção da socioafetividade começa com a paternidade, mas obviamente se estende à maternidade e a todos os vínculos de parentesco. Daí termos ampliado a sua ideia para parentalidade socioafetiva. Em breve, esta concepção doutrinária e jurisprudencial deve se tornar lei com a aprovação do PLS 470/2013 (Estatuto das Famílias), de autoria da senadora Lídice da Mata (PSB-BA) e elaborado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), após uma longa discussão com a comunidade jurídica: “Os filhos independentemente de sua origem biológica ou socioafetiva, têm os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer desiguações ou práticas discriminatórias”. O Estatuto das Famílias, que deve substituir todo o livro de Família do Código Civil, neste aspecto estará apenas fazendo um desdobramento do artigo 1593 do CCB quando diz que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (grifamos).

A parentalidade socioafetiva embora exista desde sempre, ao receber esta nomeação ganha nova roupagem e amplia seus horizontes, inclusive, com a ajuda da Psicanálise, ao dizer que paternidade e maternidade são funções exercidas. Ou, como diz o jurista mineiro João Baptista Villela, que lançou as bases da compreensão da paternidade socioafetiva com o seu texto de 1979, “A desbiologização da paternidade”, ao escrever que a paternidade/maternidade está muito mais no serviço, no amor, do que nos laços de sangue ou no liame jurídico.

A compreensão da parentalidade socioafetiva tal como a concebemos hoje, revolucionou o nosso sistema jurídico. Primeiro porque ela pode mudar os rumos de uma investigação de paternidade, já que o investigado pode ser o genitor, mas não necessariamente será o pai; segundo porque a declaração judicial de uma parentalidade socioafetiva pode alterar completamente a partilha de bens post mortem, pois declara-se a existência de mais um filho e consequentemente mais um herdeiro; e terceiro, porque na evolução do conceito da paternidade/maternidade socioafetiva, vem a possibilidade de que uma pessoa pode ter mais de um pai ou uma mãe. Em outras palavras, a paternidade/maternidade socioafetiva não necessariamente exclui o(a) genitor(a), o que temos chamado de multiparentalidade ou pluriparentalidade, que também já é uma realidade nos tribunais brasileiros (a última decisão neste sentido está no Boletim IBDFAM – Jurisprudência do Dia – 17/12/15 – do TJ-SC).

E é assim que vamos evoluindo e incluindo novas parentalidades no ordenamento jurídico brasileiro, até pouco tempo atrás inimagináveis. Esta evolução e revolução começou quando as pessoas começaram a se casar por amor. E, como o amor às vezes acaba, para recomeçar em outros lugares, com outras pessoas, de outras formas, surgem novas possibilidade afetivas, seja para a conjugalidade ou parentalidade que podem nascer de novas conjugalidades ou não. Mas tudo isto só é possível porque na esteira da evolução do pensamento jurídico o afeto tornou-se um valor jurídico, e na sequência ganhou o status de principio jurídico. Enfim, o amor continua provocando revoluções.