Demanda em crescimento

"Recursos públicos para assistência jurídica devem ser investidos na Defensoria"

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20 de dezembro de 2015, 5h32

Spacca
Quando assumiu o comando da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no dia 5 de janeiro, André Castro não tinha ideia dos desafios que teria que enfrentar. Nesse período de quase um ano, o país observou boquiaberto as sucessivas denúncias de corrupção e o recrudescimento da crise política e econômica, que se refletiu de forma direta no trabalho da instituição.

No Rio de Janeiro, a explicação está no fato de o Estado ser dependente da indústria do Petróleo. Com o fechamento de postos de trabalho no setor, a Defensoria viu a procura se multiplicar. “Um dos lugares onde o impacto da crise tem sido mais devastador é em Itaboraí, onde fica o Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, que teve a construção interrompida com os escândalos na Petrobras]”, constatou o defensor público-geral.

Se a demanda aumentou, o mesmo não se pode dizer das finanças do órgão. Apenas  para comparação, o orçamento da Defensoria Pública não chega a um terço das verbas destinadas ao Ministério Público. Neste ano, a instituição conquistou o direito de apresentar sua proposta orçamentária. Mas a conjuntura não é animadora. “Claro, o período é de crise, o orçamento global é menor que do ano anterior, mas a Defensoria já vem, há quatro anos, sofrendo redução e isso tem impactos”, lamenta Castro.

Na entrevista à ConJur, o defensor defende o reconhecimento da autonomia da Defensoria Pública da União, questionado em uma ação em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

O defensor público-geral fala também sobre a suposta rivalidade com o MP no que tange à tutela da sociedade. “A ação civil pública é uma ferramenta, assim como o mandado de segurança e o habeas Corpus. Não haveria sentido termos várias ferramentas para resolvermos problemas e não podermos usar uma delas. Todos podem usar a ação civil pública […]. Então, ninguém está disputando com o Ministério Público”, defendeu.

Leia a entrevista: 

ConJur — Qual é o tipo de caso que mais chega à Defensoria Pública?
André Castro —
A missão da Defensoria Pública é prestar assistência jurídica integral e gratuita a todos aqueles que precisam. Portanto, atuamos em todas as áreas do Direito, especialmente aquelas que têm relação com a Justiça Estadual. Atuamos na área de família, que é extremamente demandada. São milhares de atendimentos por ano sobre pensão alimentícia, divórcio e guarda [de filhos]. Também atuamos de maneira muito forte na área cível, em matérias de defesa do consumidor, direito à moradia. Atuamos na defesa da idoso e da criança e do adolescente. Enfim, é um leque muito grande.

Em quantidade, posso dizer que o atendimento é maior na área de família. Também temos atendimento pelos núcleos especializados de defesa coletiva dos direitos, tanto na esfera extrajudicial como judicial, com uma atuação menor, mas que abarca uma quantidade grande de pessoas. Um exemplo é o Núcleo de Defesa do Consumidor que, ao longo desse ano, tem atuado em episódios que envolvem a mobilidade urbana e o transporte público. Então, ocorreu algum acidente de transporte… A Defensoria vai buscar uma solução extrajudicial, mais imediata, para resolver a situação de todas as pessoas atingidas.

ConJur — A Defensoria Pública tem áreas estratégicas?
André Castro —
Não diria isso. Todas as áreas são estratégicas. No que diz respeito à atuação coletiva, temos fortalecido muito a nossa atuação extrajudicial, por exemplo, na área de defesa do consumidor e na área de saúde, por meio da busca de medicamentos e internações. A Defensoria Pública tem fortalecido sua atuação extrajudicial através de entendimentos com o Estado e prefeituras, para que tenhamos soluções adequadas e ágeis.

ConJur — A atuação extrajudicial é mais eficiente do que entrar com ação?
André Castro —
Depende sempre do caso. A própria legislação diz que a Defensoria Pública deve procurar, prioritariamente, a solução extrajudicial em todos os casos em que ela se mostrar mais adequada. Então, há casos que você vislumbra que o extrajudicial deve ser tentado porque pode gerar uma solução mais adequada e mais rápida. Em outros casos, se esgotada essa possibilidade, você parte para uma busca judicial. Já há casos em que se verifica imediatamente que é preciso partir para a judicialização. Então há uma análise, feita a partir da experiência dos defensores públicos. Mas o fato é que, naqueles casos em que cabe uma atuação extrajudicial, temos tido um êxito muito grande. Então, temos nos aprimorado nessa forma de solução justamente pela sua eficiência e velocidade.

ConJur — Como a crise econômica afetou a Defensoria?
André Castro —
O primeiro grande impacto da crise é o aumento da demanda pelos serviços da Defensoria Pública. Verificamos no estado inteiro, e em algumas cidades em particular, um momento muito significativo na procura pelos serviços da instituição. Um dos lugares onde o impacto da crise tem sido mais devastador é em Itaboraí, onde fica o Comperj [Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, que teve a construção interrompida com os escândalos na Petrobras]. Então, embora já fosse uma necessidade antiga, demos prioridade e inauguramos, naquele município, uma nova sede. Ampliamos o espaço e estamos reforçando nossa atuação para dar vazão a quantidade muito grande de pessoas que nos procuram, pelos mais diversos problemas, a maioria relacionados à perda do emprego, da renda. Já inauguramos, nesse ano, seis novas unidades no interior do estado, para justamente melhorar as condições de atendimento à população. E estamos fazendo isso com pouco recurso, pois a crise também impacta os recursos da Defensoria Pública.

ConJur — A Defensoria sofreu impacto no orçamento?
André Castro —
Sim, claro, mas nosso desafio é, com os recursos que temos disponíveis, otimizá-los cada vez mais a fim de investir na atividade fim, buscando ampliar a quantidade e a qualidade dos serviços prestados ao cidadão fluminense.

ConJur — Como vai ficar o orçamento do ano que vem?
André Castro —
Temos tratado esse tema diretamente com o governador [Fernando Pezão] e os respectivos secretários de planejamento e da fazenda. Uma vez apresentada a proposta de orçamento, trataremos com os deputados e o presidente da Assembleia Legislativa. Nos últimos quatro anos, a Defensoria Pública teve um decréscimo no seu orçamento, em termos atualizados. Claro, o período é de crise, o orçamento global é menor que do ano anterior, mas a Defensoria já vem, há quatro anos, sofrendo redução e isso tem impactos. Portanto, temos a expectativa de um orçamento um pouco melhor para o próximo ano, para poder fazer frente a todos esses desafios. Percebe-se claramente o esforço no sentido de se garantir à Defensoria Pública um orçamento mais adequado. Há, sem sombra de dúvidas, um diálogo e muita compreensão dos Poderes Executivo e Legislativo que nos faz ter a expectativa de que a gente pode ter um orçamento, mesmo diante desse cenário de crise, que nos dê condições para melhorar ainda mais o atendimento da Defensoria Pública.

ConJur — A estrutura atual dá conta de toda a demanda?
André Castro —
Temos alguns desafios a enfrentarmos. Um deles é estrutural: em muitas comarcas, não temos ainda condições minimamente adequadas para prestar um serviço para a população. Temos uma ordem de prioridades e temos enfrentado os casos mais urgentes. Por exemplo, a reforma de seis unidades [nas comarcas de Itaperuna, Duas Barras, Itaboraí, Porto Real, Alcântara e Três Rios]. Outra questão são as ferramentas tecnológicas. A Defensoria Pública não conseguiu acompanhar todo o desenvolvimento tecnológico dos últimos anos. Esse é um grande desafio. Nesse ano, estabelecemos uma parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro para desenvolver um sistema que possa interligar toda a Defensoria, com o cadastro dos usuários da instituição e a conexão com o processo eletrônico. Com isso, vamos otimizar e dar mais agilidade ao trabalho do defensor público. Naturalmente, isso tem um custo. Estamos buscando viabilizar o investimento nessa área de tecnologia de informação, que é uma meta prioritária para gente. Outro grande desafio diz respeito à estrutura de pessoal.  Somos a maior Defensoria Pública do país, mas temos, há algum tempo, a percepção de que o quadro não é suficiente para atender a toda a população. No início do ano, firmamos uma parceria com IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que está fazendo um levantamento para ver onde a demanda é maior e como podemos otimizar a distribuição dos nossos recursos financeiro e humano, verificando a necessidade de se abrir mais vagas de defensor. Um tema muito sensível é o quadro de apoio da Defensoria, que é muito pequeno.

Não conseguimos garantir um servidor para todos os órgãos da instituição. Em alguns, só há o defensor e os estagiários. Às vezes sequer conseguimos estagiários. Então é urgente a necessidade de ampliar o número de servidores. Ao longo desse ano, demos posse para mais de 120 servidores, que tinham sido aprovados em concurso há um ano atrás. Mas não é suficiente. Até porque é algo que esbarra em um outro problema que é evasão dos nossos servidores. Isso tem relação com a questão remuneratória. No ano passado, houve um incentivo remuneratório para os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Procuradoria do Estado; mas para Defensoria Pública, isso não aconteceu. Então, a gente vive um problema de alta rotatividade. Damos posse a 120, mas sai uma quantidade grande.Esse é um tema que a gente precisa resolver.

ConJur — Na sua opinião, a Defensoria continua sendo apenas uma etapa para aqueles que almejam seguir para outras carreiras jurídicas?
André Castro —
Isso não acontece com defensores, só com o servidor. No estado do Rio de Janeiro, há muitos anos atrás, nós vivemos uma taxa de evasão muito grande. Hoje isso não acontece mais. Hoje, um defensor público basicamente sai do quadro porque se aposentou. Essa é a regra.

ConJur — O defensor do Rio de Janeiro está satisfeito com o que a carreira oferece?
André Castro —
Essa é uma questão muito subjetiva. Mas o fato é que hoje a Defensoria Pública não tem uma taxa de evasão expressiva. Basicamente sai do quadro quem vai para a inatividade. Esse é um dado concreto. Também temos outro dado concreto: a grande taxa de evasão entre os servidores.

ConJur — A Defensoria Pública é desprestigiada em relação a outros órgãos, como o Ministério Público?
André Castro —
Posso dizer que o orçamento do ano passado da Defensoria Pública foi de quase um terço do orçamento do Ministério Público. E o ano passado não foi excepcional. Pegando a série histórica dos últimos 10 anos, o orçamento da Defensoria Pública varia entre metade e um terço do orçamento do MP. Entre 2008 e 2014, a despesa com pessoal na Defensoria Pública, em valores atualizados, foi inferior a 1,38%, enquanto a média nos poderes e nas instituições autônomas foi de 33,37%. Ou seja, o Poder Judiciário, o Poder Legislativo, o Ministério Público e o Tribunal de Contas, entre 2008 a 2014, registraram um aumento de 33,37% na despesa com pessoal. Esse é um dado que nos faz refletir o cenário em que a Defensoria Pública se encontra.

ConJur — Como o senhor avalia, de um modo geral, o investimento na Defensoria?
André Castro —
A Constituição foi um marco por garantir a assistência jurídica ao cidadão carente. Foi uma grande conquista que se tenha consagrado, entre os direitos fundamentais, o direito à assistência jurídica integral e gratuita, a ser prestada pelo Estado por meio da Defensoria Pública. Apesar de estar previsto no artigo 5º da nossa Constituição, passados muitos anos de sua promulgação, a Defensoria ainda não existia em muitos estados. Por isso, foi uma decisão sábia do Congresso, em 2004, elencar como um dos pontos essenciais da reforma do Judiciário a criação do Conselho Nacional de Justiça, a constitucionalização de tratados e convenções de Direitos Humanos e a autonomia da Defensoria Pública. Um dos eixos da reforma foi justamente ampliar o acesso da população à Justiça e para isso reconheceu-se como indispensável a autonomia da instituição. Graças a isso, tivemos, ao longo desses últimos 10 anos, um crescimento muito importante.

A Defensoria Pública hoje está instalada em todos os estados. Apesar disso, ainda estamos longe do necessário. O Ipea publicou, em 2013, o mapa da Defensoria Pública no Brasil, que revelou que apenas 26% das comarcas brasileiras eram atendidas pela Defensoria Pública. E foi justamente por isso que o Congresso Nacional aprovou uma nova emenda estabelecendo o prazo de oito anos para que todas as comarcas tivessem defensores. O Rio de Janeiro se destaca, tem a atuação assegurada em todas as comarcas, mas essa não é uma realidade nacional. A autonomia da Defensoria Pública é indispensável para a sua consolidação. No Rio de Janeiro, por exemplo, compreendendo essa necessidade, o governo assegurou, pela primeira vez, que a Defensoria Pública tome a iniciativa da sua proposta orçamentária. Esse é um avanço muito importante. Porém, em vários estados, isso não está acontecendo. O Supremo Tribunal Federal hoje tem a possibilidade, no julgamento de algumas ações que tramitam na corte, de concretizar o que foi proclamado na reforma do Judiciário em 2004, estendendo [a autonomia] também para a Defensoria Pública da União.

ConJur — Qual é a sua expectativa em relação ao julgamento dessa ação que trata da autonomia da DPU?
André Castro —
Minha expectativa é a melhor possível. O Supremo, como guardião da Constituição e como órgão de cúpula do Poder Judiciário, ao longo da última década, tem dado atenção à questão do acesso à Justiça. Por exemplo, a Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina só existe por causa de uma decisão do STF. Em outra decisão, sobre a Defensoria Pública de São Paulo, o STF deixou claro que os recursos para acesso à Justiça deveriam ser investidos prioritariamente no fortalecimento da instituição. Essa foi uma decisão absolutamente central. O Supremo, então, sempre se posicionou no sentido de cumprir a Constituição de 1988 ao assegurar à Constituição as condições necessárias para atender a população brasileira. Portanto, tenho muita confiança de que nesse julgamento será reconhecida a autonomia da Defensoria Pública da União. Uma decisão desfavorável à DPU pode resvalar na autonomia [das Defensorias] dos estados.

ConJur — Como o senhor avalia os convênios como a Ordem dos Advogados do Brasil para prestação de assistência jurídica?
André Castro —
Posso dizer, com a experiência que temos de décadas no Rio de Janeiro, que ela não é necessária nem sequer é producente. Está claro na Constituição que a missão de prestar assistência jurídica integral e gratuita à população é do Estado, por meio da Defensoria Pública. Isso está claro no texto constitucional. A advocacia tem um nobre e importantíssimo papel, é um pilar da Justiça, mas aquele que não tem condições de pagar um advogado tem que ser assistido pela Defensoria Pública. Então, os recursos públicos para prestar assistência jurídica gratuita devem ser investidos na Defensoria Pública. Essa, inclusive, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal nesse caso de São Paulo. No Rio de Janeiro, nunca tivemos [convênios]. Sabemos que há estados onde isso existe. Naturalmente, tem que ser de acordo com a decisão do Supremo: se você não pode encerrar esses convênios imediatamente, por questões de ordem prática, deve caminhar para reduzi-lo e para ampliar a Defensoria Pública. Recursos públicos para a assistência jurídica gratuita devem ser investidos na Defensoria Pública e não em convênios.

ConJur — A audiências de custódia era uma bandeira da Defensoria. Como o senhor avalia esses meses da iniciativa?
André Castro —
Posso falar sobre o estado do Rio de Janeiro.

ConJur — A Defensoria do Rio foi a primeira a pedir uma liminar pela audiência, antes mesmo de o projeto ser implantado no estado. 
André Castro —
Exatamente. Desde o início do ano, essa administração tem se empenhado bastante para que a audiência de custódia, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, se torne uma realidade no estado. O CNJ, com um protagonismo inegável, a partir do presidente Lewandowski, e com o presidente do TJ-RJ [desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho] e com o governador [Fernando Pezão], que também encamparam essa bandeira, conseguiu implantá-la no Rio de Janeiro. Em um mês, verificamos que 40% dos casos que foram à audiência de custódia, a prisão preventiva, que seria aplicada naturalmente, foi substituída por medidas cautelares diferentes da privação da liberdade. Esse dado é muito relevante, mostra que os casos não foram analisados com a frieza de um documento, mas com o juiz, o promotor e o defensor público olhando para a pessoa detida. Os casos são analisados com maior profundidade. A prisão não é necessariamente a medida mais adequada. Muito pelo contrário. Temos verificado que é possível aplicar medidas que não sejam a privação da liberdade.

ConJur — Há quem veja a audiência de custódia como um meio para evitar a prisão. Como o senhor vê essa crítica?
André Castro —
Existe a cultura do medo, por causa do problema da segurança pública. Isso faz com que muitas pessoas acreditem que quanto mais encarceramento houver, mais próximo de resolver o problema nós estaremos. Essa fórmula, cientificamente, não é verdadeira. Mais encarceramento não significa uma sociedade mais segura. A privação da liberdade é a última das medidas. Aplicá-la quando não é necessária é absolutamente desastroso para a construção de uma sociedade com mais paz e segurança. Cito como exemplo um caso, recentemente analisado em uma audiência de custódia, que tinha todo o perfil para que a prisão em flagrante fosse convertida em uma prisão preventiva. Tratava-se de uma mulher muito pobre, que havia furtado uma roupa íntima. Ela foi presa em flagrante. Na audiência de custódia, verificou-se que ela tinha problemas de dependência química, três filhos pequenos e que, no momento [do furto], estava menstruada. Ela furtou a roupa íntima em desespero por toda aquela situação. Então, o que se entendeu como uma medida mais adequada? Ela, com todos os problemas decorrentes da pobreza e de dependência química, ainda provia o sustento de seus três filhos, que dependiam dela. A família era desestruturada. Não havia ninguém com quem essas crianças pudessem contar. A solução típica do sistema penal punitivo, e que muitas pessoas querem, seria trancafiar essa moça. E o que seria das crianças? A solução da audiência de custódia não foi essa. Essa mulher foi encaminhada para o serviço social, para que tivesse acompanhamento em relação à dependência química e aos filhos. Esse é um exemplo muito poderoso que mostra que encarcerar, simplesmente, não é a solução.

ConJur — Na sua opinião, o Brasil caminha para uma onda de punitivismo exacerbado?
André Castro —
O Brasil vive um momento muito interessante para travarmos esse debate. Verificamos hoje o debate, que algum tempo atrás era tabu, que envolve a questão da guerra às drogas. Há mais de duas décadas, o Brasil aderiu à uma corrente dominante na política internacional, capitaneada pelos Estados Unidos, de criminalizar o uso de toda e qualquer substância entorpecente. E a resposta foi fortemente repressiva. Após 20 anos, verificamos que isso foi um fracasso. Tem crescido o debate quanto ao apoio a outras soluções para a questão das drogas que não sejam a repressiva, punitiva e penal. Por outro lado, verificamos ainda tendências de se tentar resolver situações de insegurança pública majorando as penas. Aqui também identificamos que a simples majoração da pena em nada ajudará a inibir a prática de delitos. Portanto, esse momento é muito importante para o debate. Eu não poderia dizer que o Brasil hoje caminha nesse sentido [para o punitivismo]. Espero que não caminhe. Há alguns movimentos nesse sentido, mas também há outros… A implantação da audiência de custódia, por exemplo, é uma grande conquista no sentido contrário. Então, há movimentos em diferentes sentidos. Espero que esse debate, sendo travado com a sociedade por meio de fóruns adequados, com o Congresso Nacional e com Supremo Tribunal Federal, se consolide realmente para um modelo que se garanta a segurança pública, a coesão social e os direitos fundamentais.

ConJur — A Defensoria pode propor ação civil pública?
André Castro —
A Defensoria Pública pode propor ação civil pública. Isso decorre da Constituição Federal de 1988, que diz que a Defensoria Pública presta assistência jurídica integral e gratuita. Diante disso, não é possível fazer qualquer interpretação que limite [o uso] de uma ferramenta importantíssima para a assistência jurídica integral a ser prestada à população. E isso foi expressado em 2007, como uma alteração à Lei da Ação Civil Pública; em 2009, com mudanças na Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública; e em maio desse ano, com um julgamento do Supremo Tribunal Federal em que, por unanimidade, foi reconhecida a legitimidade da Defensoria para manejar a ação civil pública.

ConJur — Na sua avaliação, a Defensoria disputa com o MP a tutela do cidadão?
André Castro —
Em hipótese nenhuma. O Direito Processual cria ferramentas para que você busque o direito. A ação civil pública é uma ferramenta, assim como o mandado de segurança, o habeas corpus. Não haveria sentido termos várias ferramentas para resolvermos problemas e não podermos usar uma delas. Todos podem usar a ação civil pública: o Ministério Público, o Poder Executivo, um grupo de pessoas que formar uma associação em defesa dos consumidores, por exemplo. Então, ninguém está disputando com o Ministério Público, que é apenas mais uma instituição que pode manejar a ação civil pública. A Associação Nacional de Defensores Públicos fez um estudo sobre as ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público e verificou que há uma tendência natural de cada um caminhar para a defesa de direitos em áreas diferentes. Então, o Ministério Público tem um olhar que é próprio da sua atuação e propõe ações civis públicas importantíssimas, mas que normalmente a Defensoria Pública não proporia, porque não atua naquelas áreas. E a recíproca é verdadeira. Quando há coincidência [nos direitos pleiteados], as ações civis públicas são propostas conjuntamente pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público. Então, a Defensoria propõe ações muito importantes em áreas de atuação que não são as do MP. Por exemplo, no Mato Grosso verificou-se que a linha de um ônibus não chegava até um presídio. Os defensores que faziam o atendimento naquele estabelecimento perceberam que os familiares, normalmente mães e esposas com crianças, desciam do ônibus e caminhavam até quatro quilômetros debaixo de um sol escaldante, carregando comida e roupa, para chegar ao presídio. Então, eles moveram uma ação civil pública para pedir que o ponto final da linha de ônibus fosse estendido. Isso é irrelevante para o transportador, mas absolutamente relevante para aquelas famílias que prestavam assistência familiar ao preso. Esse é o caso típico que mostra que a Defensoria Pública tem um olhar muito específico. Portanto, não há nenhuma competição. Muito pelo contrário, há uma soma e que quem ganha é a sociedade.

ConJur — Qual é a expectativa da Defensoria em relação ao novo CPC?
André Castro —
Que ele realmente possa atingir seus objetivos. Foi um trabalho feito com muito cuidado, que teve a participação de importantes juristas, foi debatido no Congresso Nacional em várias audiências públicas e que vem para fortalecer as soluções extrajudiciais e simplificar o processo, porém mantendo todas as garantias do devido processo legal e da ampla defesa. A prática vai ser muito importante. E se for necessário, acredito que o Congresso estará atento para fazer os ajustes que forem necessários. Nós temos uma grande expectativa, pois o CPC abre desafios. Por exemplo, a mediação: como iremos trabalhar a mediação pré-processual e judicial, a capacitação dos defensores e servidores. Será mais um desafio para o qual estamos buscando nos preparar.

ConJur — Tem algum outro ponto que queira destacar?
André Castro —
Se hoje a Defensoria Pública existe em todos os estados, isso se diretamente à reforma do Poder Judiciário e à conquista da autonomia. Pensar uma Defensoria Pública hoje que não tenha autonomia, é o mesmo que desmontá-la. Acreditamos que não é esse o caminho que os nossos poderes constituídos buscam. Em um país com tantas desigualdades sociais, ter efetivamente essa ferramenta de direito dos mais carentes é absolutamente essencial. E a autonomia é uma garantia da efetiva defesa dos direitos dessa população. Para defender os interesses da população carente, a Defensoria se contrapõe a interesses de grupos muito poderosos, nos mais diversos setores, e, eventualmente, até contra o próprio Poder Público. Portanto, pensar uma instituição que não tenha independência para atuar seria o desmonte desse belo projeto que a Constituição pensou para promover a proteção dos direitos das pessoas.

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