Embargos Culturais

Em defesa da vulgaridade pedante do personagem Conselheiro Acácio

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

20 de dezembro de 2015, 7h01

Spacca
O escritor português Eça de Queiróz (1845-1900) deixou-nos um tipo inesquecível, por intermédio do qual satirizou e lamentou o pedantismo e a vulgaridade do bacharel: refiro-me ao Conselheiro Acácio.

Personagem aparentemente menor no contexto dos caracteres do Primo Basílio (livro publicado em 1878), o Conselheiro Acácio primava pelas obviedades; nesse sentido, e por tudo que envolve esse esboço humano tão realista, o Conselheiro transformou-se em um personagem maior; foi elevado pelo tempo. É mais citado e lembrado do que o próprio Basílio, patife e aproveitador, do que o bem-comportado Jorge, do que a ingênua Luísa; também é mais lembrado do que Juliana, a empregada amargurada que chantageou a patroa, Luísa, de cuja traição sabia.

É de seu nome próprio (Acácio)  que se construiu um adjetivo, “acaciano”, identificador de tautologias e redundâncias. O Conselheiro Acácio é, na essência, o próprio cerne do bacharelismo oco. Ocupo-me no presente ensaio, basicamente, da apresentação que Eça nos propicia ao descrever essa curiosa figura, que teimo em defender. Algum plágio segue, pelo que honestamente aviso ao leitor.

Eça descreve o Conselheiro como alto e magro. Veste-o recorrentemente de preto. Adorna-o com um colarinho entalado no pescoço. Marca-o com um rosto aguçado. De algum modo pendura no Conselheiro cabelos tingidos, que transitavam de uma orelha à outra, colando-os por trás da nuca. A calva então brilhava, em contraste com o cabelo escuro, na descrição de Eça de Queiróz. O bigode, no entanto, prossegue Eça, não era tingido; assim, grisalho e farto o bigode caía-lhe pelos cantos da boca. Segundo Eça, o Conselheiro era muito pálido, vivia com as lunetas no queixo; o escritor português conta-nos que o Conselheiro possuía grandes orelhas, “muito despegadas do crânio”. Uma caricatura.

Formalista, gongórico, pedante, ainda que delicado e educado, o Conselheiro fora Diretor-Geral do Ministério do Reino. É um burocrata, daqueles que adoram carimbos, despachos, fichas e relatórios que não servem para nada. Toda vez que o nome do Rei era pronunciado, moteja Eça, o Conselheiro erguia-se um pouco da cadeira. Dono de gestos medidos, calculava inclusive o modo como inalava o inseparável rapé. Era histriônico.

O vocabulário do Conselheiro, segundo Eça, era absolutamente excêntrico; não usava palavras triviais. Por isso, lê-se no Primo Basílio, que o Conselheiro ao invés de dizer “vomitar”, utilizava o verbo “restituir”, acompanhado de um gesto indicativo. Para o Conselheiro, Almeida Garret era “o nosso Garret”, Alexandre Herculano era “o nosso Herculano”.

O Conselheiro, prossegue Eça, citava o tempo todo. Vivia, ao que consta, “amancebado com uma criada”. O Conselheiro resistia às investidas de Dona Felicidade, por ele apaixonada, porém mantinha um romance clandestino como a criada que de suas coisas cuidava. Preocupado com a Economia Política, o Conselheiro, sempre segundo Eça, teria escrito uma obra intitulada “Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e sua Distribuição Segundo os Melhores Autores”; esse imaginário e maravilhoso livro era acompanhado de um subtítulo: “Leituras do Serão”.

Segundo Eça, o Conselheiro teria também publicado outra obra de tomo, e de muito interesse, denominada de “Relação de Todos os Ministros de Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos dias, com Datas Cuidadosamente Averiguadas de seus Nascimentos e Óbitos”. Esse livro deveria ser interessante, rico em pormenor, e em informações de utilidade nenhuma.

Ao longo do Primo Basílio as inserções e intervenções do Conselheiro nos indicam uma figura absolutamente moralista; esse moralismo contrastava com a curiosidade que se desperta em torno desse personagem, que Eça assemelha ao próprio ridículo, cuja vida particular e íntima sugere uma fonte inesgotável de taras e de superstições. A resistência para com as investidas de Dona Felicidade e o romance subterrâneo mantido com a ajudante doméstica sugerem essa dubiedade que antepõe pautas morais internas e externas. O Conselheiro Acácio também pode ser o exemplo do bacharel, que muito fala, pouco diz, nada pensa, tudo reproduz.

Porém, de algum modo essa triste figura — porque em sua moderada alegria o Conselheiro parece-me incomensuravelmente infeliz — demanda um defensor. O Conselheiro Acácio, a respeito de quem sempre se censurou, criticou, e de quem sempre se riu, não passa, além dos limites que lhe dão o aspecto de uma criação literária, da síntese identificadora das frustrações e ressentimentos que todos somos e vivemos. É uma abatida figura que demanda ajuda, compreensão e carinho. É um homem triste, como às vezes triste foi também Eça, como triste foi às vezes Portugal no século XIX, e como tristes somos na inutilidade dos conhecimentos que pensamos que possuímos.  

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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