Opinião

STF não determinou em quais situações cabe invasão de domicílio sem mandado

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19 de dezembro de 2015, 6h30

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu matéria sensível àqueles que militam na área criminal. No julgamento de recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida (RE 603.616), por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.”

A questão não causaria perplexidade alguma se atentássemos para o fato de a Constituição já excepcionar a garantia da inviolabilidade domiciliar, independentemente de mandado judicial e do horário, na hipótese de flagrante delito (art. 5o, XI, CF). A celeuma fica por conta dos pressupostos de fato que autorizam a ação policial. A decisão demanda fundadas razões, que podem ser justificadas a posteriori.

Ninguém duvida que a invasão a domicílio em caso de flagrante delito se justifica diante de fundadas razões.[1] Todavia, o STF perdeu uma oportunidade excelente para estabelecer parâmetros mais seguros à atividade policial, já que a expressão “fundadas razões” é polissêmica e, na prática, corre-se o risco de encerrar noção meramente retórica, incapaz de inibir ações potencialmente abusivas. Não colocamos em xeque a atuação da polícia, que conta, em sua ampla maioria, com agentes responsáveis e cônscios de que o poder que exercem, apesar de essencialmente discricionário, somente se justifica se exercido nos limites da lei.[2]

A necessidade de serem densificados os parâmetros para a realização de buscas domiciliares independentemente de mandados judiciais decorre dos reclames estabelecidos pelo princípio da segurança jurídica,[3] ferramenta importantíssima para a coesão de nosso Estado de Direito, principalmente porque a garantia da inviolabilidade domiciliar não se justifica apenas na proteção ao direito à propriedade, mas, sobretudo no direito à privacidade e à intimidade, todos de índole fundamental.

Nesse aspecto, talvez faça sentido traçarmos um paralelo com o Direito dos EUA, por duas razões principais: a uma, porque desde à época da independência, por razões históricas ligadas à metrópole inglesa, reconheceu-se a necessidade de as buscas e apreensões serem razoáveis, além de que nenhum mandado seria expedido sem que houvesse causa provável (probable cause); a duas, porque foram estabelecidos parâmetros mais ou menos seguros para que houvesse buscas e apreensões sem mandado, a partir de duas teorias (open view doctrine e plain view doctrine).

Pois bem. Em linhas gerais, nas duas décadas que antecederam a independência dos EUA, a Inglaterra passou a intensificar sua política de arrecadação de receitas, prática que contou com a resistência dos patriotas, que se negavam a pagar os impostos. Com isso, rotineiramente, a Coroa expedia os chamados writs of assistance, ordens dadas aos xerifes locais para que auxiliassem os agentes britânicos na busca de mercadorias contrabandeadas.[4] Esses writs eram uma espécie de mandados genéricos, porque não especificam o lugar, coisas a serem apreendidas ou os indivíduos que seriam abordados. Pelo contrário, eles conferiam poder para que os agentes realizassem as buscas onde quer que se encontrasse o ilícito e, além disso, sua validade era indefinida, vigendo por todo o lapso daquele reinado existente no período em que foi expedido, mais 6 meses.

Essas ordens genéricas eram veículo ideal para o cometimento de abusos e arbitrariedades por meio de agentes policiais mal-intencionados. Obviamente, contaram com o repúdio dos líderes revolucionários de então, que a tinham como uma prática opressiva, irrazoável e injusta.[5] Por isso, não é surpresa que a Bill of Rights se ocupou de garantir a inviolabilidade contra buscas irrazoáveis. A 4ª emenda à Constituição estabelece que: “O direito do povo de ser inviolável em seus corpos, casas, papeis e propriedades contra buscas e apreensões irrazoáveis não deve ser violado, e nenhum mandado deve ser expedido se não houver causa provável, embasada em juramento ou afirmação, com descrições particularizadas do lugar em que haverá a busca, e indicação das pessoas ou coisas a serem apreendidas.[6]  Naquela época, a maioria dos estados editou cartas de direitos fundamentais e em todas elas havia previsões semelhantes à da 4a emenda.[7]

Nos EUA, diferentemente do Brasil, por força da 4ª emenda, a necessidade de mandados judiciais não se verifica apenas nas buscas domiciliares,[8] mas sempre que existir uma “expectativa legítima de privacidade”.[9] Com base nesse fundamento, a Suprema Corte já decidiu que buscas efetuadas em uma mala de mão de um passageiro de um ônibus devem ser precedidas de mandado judicial.[10]

Ainda segundo a Suprema Corte, as provas obtidas ilegitimamente, em violação à 4ª emenda, não podem ser usadas em processos criminais.[11] Trata-se da conhecida exclusionary rule, forjada durante a Corte de Warren[12] e duramente criticada nos EUA, porque dá margem à impunidade. Seus defensores, contudo, veem nela um efeito pedagógico, argumentando ser instrumento valioso para coibir práticas policiais abusivas.[13]

Em alguns casos, ainda que presente essa expectativa de privacidade, as buscas e apreensões independerão de mandados judiciais. Basicamente, isto ocorre em duas situações, que deram margem às duas doutrinas já mencionadas: (1) teoria da visão aparente (plain view doctrine); e (2) teoria da visão aberta (open view doctrine). No primeiro caso, os agentes já estão munidos de mandados judicias, ou mesmo realizam alguma busca que independem de mandado e, no curso dessa diligência, visualizam algo aparentemente ilícito, que esteja à mostra.[14] Por exemplo, policiais obtêm mandado de busca domiciliar para a apreensão de bens que possam ser produto de furto. Ao ingressarem à residência, visualizam entorpecentes sobre a mesa. A teoria do plain view confere licitude a essa apreensão.

Por outro lado, de acordo com a teoria do open view, pode haver a busca e apreensão independentemente de mandado quando agentes policiais visualizarem algo aparentemente ilícito, desde que estejam em um lugar que lhes seja permitido estar (calçada, rua, sobrevoo de céu aberto etc.).[15] Seu fundamento reside na premissa de que a proteção da 4ª emenda não obriga que agentes públicos tapem seus olhos diante do cometimento de infrações.[16] Por exemplo, em via pública, policiais enxergam certo morador entregar aparentemente drogas para certo usuário e decidem agir, adentrando a residência do suposto traficante.

No Brasil, a construção de teorias semelhantes em sede jurisprudencial é insipiente. A Constituição admite que exista a invasão domiciliar, sem mandado judicial, no caso de flagrante delito. É óbvio que se alguém estiver passando defronte a uma residência, ouvir gritos de horror e verificar que o esposo está prestes a matar sua mulher, pode invadir a residência e intervir. Mas o mesmo raciocínio, por exemplo, autorizaria o ingresso de policiais na casa de pessoas conhecidas pelo envolvimento com o tráfico de drogas, sem que visualizem, do lado de fora, atos de efetivo comércio? Nessas condições, se fosse encontrado entorpecente, ele poderia ser usado validamente como prova? O crime achado convalidaria o suposto abuso policial originário? São questões que ainda não foram respondidas satisfatoriamente em nosso Direito.

Com o devido respeito, acreditamos que o STF, ao julgar o RE 603.616, deixou de traçar as diretrizes a respeito da legitimidade da atuação policial (“quando” e “como” agir) e matérias correlatas,[17] situação que se afinaria mais propriamente à necessária segurança jurídica, principalmente em uma área tão sensível quanto as liberdades individuais.

[1] Nesse sentido já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “[d]izer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita da prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio” (TJ-RS, Ap 0105880-83.2014.8.21.7000, relator desembargador Jayme Weingartner Neto, 3ª Câmara Criminal, DJ 08.08.2014).

[2] Celso Antônio Bandeira de Mello bem lembra que não existe poder absolutamente discricionário no Estado de Direito, mas, sim, atos praticados pela Administração Pública que manifestam competência discricionária, porção de liberdade conferida ao administrador para que verifique a medida mais conveniente e oportuna ao interesse público (Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 723.

[3] Pelo mesmo fundamento, em nosso Neoconstitucionalismo e súmulas vinculantes (safE, 2012), sustentamos a necessidade de serem estabelecidos efeitos vinculantes a todas as súmulas dos Tribunais, diante da profunda insegurança jurídica gerada pelo neoconstitucionalismo,  marcado, em linhas gerais, pela normatividade dos princípios, pela constitucionalização do direito e pelo protagonismo do Judiciário. 

[4] Na própria Inglaterra, era prática comum a expedição de mandados genéricos (general warrants) para a apreensão de publicações sediciosas ((FRAENKEL. Concerning searches and seizures, 34 Harv. L.Rev., 361, 362-63 (1920).

[5] BRADLEY, Gerard V., "The Constitutional Theory of the Fourth Amendment" (1989). Scholarly Works. Paper 773. Disponível em: http://scholarship.law.nd.edu/law_faculty_scholarship/773. Acesso em 11.12.2015.

[6] Tradução livre. No original: “The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no warrants shall issue, but upon probable cause, supported by oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized.”

[7] BRADLEY, Gerard V, ob. cit. Curiosamente, ao mesmo tempo em que havia a repudia generalizada a mandados genéricos, muitas leis estaduais admitiam uma série de situações que poderiam ser objeto de buscas, apreensões ou prisões, independentemente de mandado. Por exemplo, havia uma lei de Connecticut (1751 Act) que autorizava sheriffs, policiais de menor autoridade (constables), jurados e outras autoridades locais (seriam os tithing men, chefes de família encarregados de fiscalizar o comportamento de seus vizinhos) a prenderem sem mandado quando vissem ou soubessem que alguém viajou desnecessariamente aos sábados (idem, ibidem).

[8] Em nosso País, o art. 244 do CPP é expresso: “A busca pessoal independerá de mandado…”. Nos EUA, admitem-se buscas pessoas independentemente de mandado judicial nos casos de suspeita razoável de que a pessoa cometeu, está cometendo ou está prestes a cometer um crime e esteja armada e apresente perigo (Terry v. Ohio, 392 U.S. 1, (1968)).

[9] Katz v. United States, 389 U.S. 347 (1967).

[10] Bond v. U.S., 529 U.S. 334 (2000).

[11] Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961). A decisão também aclarou a imperatividade da 4ª emenda para todos os Estados da Federação, por força do disposto na 14ª emenda (incorporation doctrine).

[12] Earl Warren exerceu a presidência da Suprema Corte entre 1953 e 1969, período conhecido como o de maior ativismo judicial já visto na histórica dos EUA. Foram decididos casos emblemáticos, que marcaram a história do direito constitucional daquele país e do mundo todo, como Brown v. Board of Education (347 U.S. 483 (1954)), que reconheceu inconstitucional a separação de crianças brancas e negras em escolas públicas e determinou a adoção de política pública inclusive, a fim de que se corrigisse essa distorção, afastando-se a regra do “separados, mas iguais”, reconhecida em Plessy v. Ferguson (1896); o próprio caso Mapp, que adotou a extremada exclusionary rule, para coibir abusos policiais; Miranda v. Arizona (384 U.S. 436 (1966)), que estabeleceu a necessidade de o investigado ser advertido de seu direito de permanecer calado e se consultar com seu advogado, entre tantos outros.

[13] MORAN, David A. The end of the exclusionary rule, Among other things: the Roberts court takes on the Fourth Amendment. In: “The Fourth Amendment: Searches and Seizures”, Cynthia Lee (coord.). Amherst: Bill of Rights Series, 2011, pp. 215-21.

[14] HUBBART, Phillip A. Making sense of search and seizure law: a fourth amendment handbook. Durham: Carolina Academic Press, 2005, p. 219. A plain view doctrine foi discutida com mais profundidade em Coolidge v. New Hampshire, 403 U.S. 443 (1971).

[15] Idem, ibidem, pp. 155-6.

[16] Texas v. Brown, 460 U.S. 730 (1983).

[17] O papel do STF em matéria constitucional, assim como do STJ quanto à legislação federal, deve ser modernamente compreendido, sob a nossa ótica, essencialmente como o de promoção da unidade do Direito, mediante a formação de precedentes. Daniel Mitidiero faz alusão preciosa ao modelo de Cortes, separando as Cortes Supremas (STF e STJ) das Cortes Superiores (os demais Tribunais) (MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 32). 

Autores

  • é juiz de Direito da 2ª Vara Criminal, do Júri e da Infância e Juventude da Comarca de Assis. Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

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