Opinião

Proposta de privatizar a Dívida Ativa não é boa solução para crise

Autor

  • Simone Anacleto

    é pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS mestre em Direito do Estado pela UFRGS e procuradora da Fazenda Nacional.

19 de dezembro de 2015, 11h02

Analistas políticos e econômicos têm dito que o Brasil está enfrentando a pior crise política e econômica de sua história. Ainda que se possa reputar tal afirmação como exagerada, porque outras crises graves já ocorreram, o fato que ninguém pode negar é que a presente crise é, sim, de extrema gravidade.

Nesse contexto, buscam-se saídas para incrementar com a maior rapidez possível a arrecadação de recursos para os combalidos cofres da União, visto que, segundo algumas estimativas, o déficit das contas do governo federal para 2015 deve ultrapassar cem bilhões de reais.

Uma das saídas propostas está no PL 3.337/15 e no PLC 181/15, cuja justificação foi redigida nos seguintes termos:

A presente proposição objetiva conferir à Fazenda Pública um meio alternativo de cobrança da dívida ativa, no intuito de aumentar o aproveitamento de créditos de difícil recuperação.

A cobrança da dívida ativa pela estreita via da execução fiscal muitas vezes dificulta a recuperação de créditos, justamente por se submeter às formalidades dos procedimentos administrativo e judicial.

O que se propõe é que a Fazenda Pública possa ceder a instituições financeiras esses créditos que ela própria tem dificuldade de recuperar, tornando mais econômica e eficiente sua cobrança pelo setor privado. Evidentemente, a remuneração será devida ao ente privado, mediante a aplicação de um valor de deságio…

Como já analisei em artigos anteriores, está equivocada a premissa de que o sistema de cobrança hoje existente é ineficiente. Simplesmente, a eficiência não pode ser medida apenas pelo quanto se arrecada depois que um crédito já foi inscrito em Dívida Ativa.

Ao revés, a eficiência do sistema deve ser analisada a partir de uma visão mais global, que leve em conta os níveis da arrecadação dita “espontânea”, que, aliás, é muito alta no Brasil. Nesse cenário, é conveniente privatizar-se no todo ou em parte a Dívida Ativa da União?

Veja-se que nem estou indagando se é possível proceder-se a essa privatização, porque, na realidade, entendo que tal medida padece de irremediável inconstitucionalidade, por todas as razões muito bem enfrentadas no Parecer PGFN/CDA 1.505/2015.

Em especial, destaco que admitir-se a privatização da Dívida Ativa implica afronta ao próprio conceito de tributo, que foi positivado pelo art. 3º do Código Tributário Nacional (tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.)

Por outro lado, mesmo que esse conceito não fosse positivado, simplesmente é ínsita à noção de tributo a exigência de que, além da observância da legalidade e dos critérios de isonomia no momento de sua instituição, igualmente sejam observados a legalidade e os critérios de isonomia no momento de sua cobrança. Se não for assim, de tributo não se tratará.

Quanto mais não fosse, só por tal razão já se deveria rechaçar a proposta de privatização da Dívida Ativa da União. Contudo, ainda que se pudesse superar a questão da constitucionalidade, o que se admite apenas para argumentar, o que se verificaria, a partir de uma análise um pouco mais aprofundada, é que a cessão dos créditos inscritos ao setor privado não atingiria os objetivos almejados, nem em curto prazo, mas muito menos no médio e longo prazos.

Em primeiro lugar, a cessão pura e simples dos créditos inscritos em Dívida Ativa da União só seria possível com deságios enormes. É que o legislador pode não compreender, mas os analistas de mercado sem dúvida alguma compreendem que tais créditos são de baixa recuperabilidade. Portanto, sua aquisição por entidades de direito privado envolve um risco altíssimo que se reflete no deságio, que deverá ser superior a 95% do valor inscrito.           

Nesse sentido, confira-se o que já está sendo divulgado em relação a iniciativa semelhante feita quanto aos créditos de responsabilidade da Emgea (Empresa Gestora de Ativos), como publicado em notícia da Folha de S.Paulo.

Os analistas de mercado estimam que os créditos decorrentes de financiamentos não pagos e administrados pela Emgea não alcancem mais do que 3 a 5% de seu valor originário, justamente pela baixa possibilidade de recuperação de tais valores. Mas o efeito mais deletério da privatização da Dívida Ativa da União nem é esse de um relativamente baixo retorno financeiro da medida no curto prazo. O problema mais sério ressairá no médio e longo prazos. 

Ocorre que a privatização vai associar-se a outras medidas igualmente equivocadas que foram adotadas no país nos últimos 15 anos, desde a instituição do primeiro parcelamento especial, o conhecido Refis, pela Lei 9.964/00.

Veja-se que a crítica não é ideológica, até porque tais políticas foram adotadas em âmbito federal, estadual e municipal, por governos de todos os matizes partidários.

Apenas num rápido esforço de memória restrito ao âmbito da União:

Recorrentes parcelamentos especiais, a partir do Refis (2000), tais como o Paes (2003), Paex (2006), Refis da Crise (2009), etc;

Incentivos fiscais a alguns setores econômicos, tais como a redução das alíquotas de IPI para automóveis e eletrodomésticos da linha branca após a crise econômica mundial (a partir de 2009).

Provavelmente não se conseguirá jamais mensurar o impacto disso tudo para os cofres públicos e para a economia, mas, indubitavelmente, os governos abriram mão, com essas políticas de benesses fiscais, de bilhões de reais, trocando arrecadações momentaneamente elevadas pelo não recebimento, no futuro, de significativas parcelas de créditos tributários.

Pior: criaram uma cultura equivocada, sinalizando aos contribuintes que, de tempos em tempos, viriam descontos superespeciais, dêsincentivando, assim, a manutenção, em patamares regulares, da arrecadação “dita” espontânea.[1]

Infelizmente, não há soluções mágicas. E passos errados dados no passado cobram seu preço no futuro – que, no caso, é o nosso presente. Assim, a primeira coisa a fazer é reconhecer que estamos pagando hoje pelos sucessivos equívocos incorridos num passado recente. E naturalmente tentar não incorrer nos mesmos equívocos.

Privatizar a Dívida Ativa, porém, é incorrer mais ou menos no mesmo erro acima apontado: quer-se liquidar, praticamente por qualquer preço, os direitos de crédito existentes para fazer um “caixa” momentâneo.

O “preço” disso, entretanto, é mais uma vez dar o sinal errado à sociedade, na medida em que se cria a expectativa de que não há mais necessidade de os empresários se preocuparem nem com a Dívida Ativa da União, já que seus débitos poderão depois ser negociados com um banco, com descontos superiores aos já permitidos por uma legislação excessivamente benevolente.

Em outras palavras, estaremos apenas fazendo mais do mesmo que já foi feito até aqui. Estaremos novamente inovando o sistema jurídico para, afinal, chegarmos a uma situação fiscal pior do que esta em que já nos encontramos.

Talvez seja hora de parar e reconhecer que um sistema tributário saudável só funciona se houver irrestrito respeito ao princípio da isonomia, dentre tantos outros. Uma vez instituído um tributo, ele deverá ser satisfeito por todas as pessoas que pratiquem o seu fato gerador.

Parcelamentos especiais, incentivos fiscais e mesmo a privatização da Dívida Ativa da União bagunçam o princípio basilar da isonomia, pois deixam claro que os contribuintes que pagaram em dia são uns bobos, visto que é possível deixar para pagar depois e ainda ter descontos por remissões e anistias! Ou seja, quem não paga em dia pode, afinal, vir a pagar menos.

Como antes explicitado, a privatização da Dívida Ativa da União é, inclusive, inconstitucional. Já os parcelamentos especiais e os incentivos fiscais são mecanismos possíveis, mas devem ficar restritos a situações excepcionais, como catástrofes naturais (secas, enchentes, etc.) ou situações de guerra.

No mais, é de crucial importância, para que a economia funcione adequadamente, que haja um sistema tributário justo, para o que a observância do princípio da isonomia é essencial.

Por fim, vale relembrar, aqui, o trabalho de um autor norte-americano chamado Douglass North, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1993, que é considerado um dos pais do chamado “Neo-institucionalismo”, uma das escolas do “Law and Economics”, para a qual o desenvolvimento econômico não é uma decorrência de incrementos populacionais, avanços tecnológicos e outros fatores usualmente apontados pelos economistas. Esses são, na verdade, sinais do próprio desenvolvimento econômico, o qual depende, em grande medida, das instituições do País considerado. Tanto que North, ao ser indagado, por ocasião do recebimento do Nobel, como resumiria sua teoria, afirmou: “Institutions matter” (literalmente: instituições importam).

No primeiro livro a partir do qual passou a desenvolver sua teoria, escrito em co-autoria com Robert Paul Thomas e publicado em 1973, intitulado The rise of the western world: a new economic history, os autores fazem considerações surpreendentes. Eles comparam, nesse livro, o desenvolvimento de quatro países ao longo de toda a Idade Média: Espanha, França, Holanda e Inglaterra.

Mostram que havia ciclos de desenvolvimento econômico: quando o comércio voltava a se intensificar, isso proporcionava pessoas se alimentando melhor e as populações cresciam, até que se sucedia uma grande peste ou guerra, dizimando-se grande parte das populações, com o consequente declínio do comércio.

Esses ciclos só foram interrompidos no final da Idade Média na Holanda e na Inglaterra, onde, pela primeira vez na história, uma grave peste não afetou tão dramaticamente suas populações.

Por quê? Porque, segundo os citados autores americanos, ao contrário do que acontecia na Espanha e na França absolutistas, tanto Holanda quanto Inglaterra tinham … limites à tributação pelos respectivos reis! Isso fez toda a diferença.

Quando a tributação deixou de ser fixada ao arbítrio do rei, garantiu-se maior igualdade entre os contribuintes, maior segurança jurídica e o que passou a predominar, ao invés da vontade de agradar ao rei, foi a capacidade de cada um de produzir mais e ganhar mais por isso. Ou seja, privilegiou-se a eficiência econômica. Isso garantiu automaticamente uma mais eficiente distribuição de alimentos e as populações holandesa e inglesa suportaram melhor uma nova onda de doenças, que as populações espanhola e francesa.

Depois, a Inglaterra ainda foi o primeiro país a aprovar uma lei de proteção aos direitos autorais e, não por acaso, foi lá que começou a Revolução Industrial, mas esta já é outra história.

O que pretendi evidenciar aqui é que definições claras, mesmo que rígidas, são preferíveis a outras que afetem a necessária exigência de igualdade, que é o que dá a base necessária para um ambiente de livre concorrência. Só assim todos podem saber o que esperar das regras, e a diferença entre um empresário e outro decorrerá de sua maior ou menor eficiência econômica, não de benesses fiscais.

* Aqui se usa o termo “privatização” ao invés de “securitização”, propositalmente. É que securitização envolveria a emissão de títulos públicos. Nos projetos de lei em análise, todavia, há a pura cessão dos créditos inscritos na Dívida Ativa da União a pessoas de direito privado, o que importa propriamente em privatização.

 


[1] Vários estudos econômicos comprovam que é muito equivocada a política de se concederem parcelamentos especiais, com o intuito de se obter aumentos esporádicos da arrecadação. Tal política afeta gravemente a arrecadação espontânea. Nesse sentido, confira-se exemplificativamente: “Os efeitos sobre a espontaneidade são sempre negativos, e perduram por longo tempo, enquanto os contribuintes nutrirem expectativas sobre novos parcelamentos futuros. No lado das receitas, as simulações sugerem que a arrecadação na presença do parcelamento tributário é sempre inferior àquela que seria obtida se não houvesse parcelamento durante toda a etapa de concessão. Os ganhos de arrecadação posteriores, quando as parcelas são pagas, dependem da inadimplência e da expectativa de novos parcelamentos pelos contribuintes. Conclui-se que o mecanismo de parcelamentos tributários é inadequado como forma de aumentar as receitas e prover os incentivos corretos aos contribuintes.” PAES, Nelson Leitão. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-41612014000200004&script=sci_arttext

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