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Empresas tiram vantagem de sistema federativo dos EUA para driblar leis

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19 de dezembro de 2015, 8h02

Não é novidade que, em contratos, corporações de países diferentes incluem uma cláusula de eleição de foro, para o caso de disputas judiciais. Nos Estados Unidos, porém, esse é um recurso jurídico usado pelas corporações dentro do próprio país. Nos contratos de trabalho, por exemplo, elas elegem o foro em estados cujas leis são mais favoráveis às corporações, o que lhes permite simplesmente ignorar a legislação dos demais estados.

Isso é possível porque, nos EUA, a estrutura federativa é mais forte do que na maioria dos países. Cada estado tem sua própria estrutura política, econômica e jurídica — respeitada a influência limitada do poder federal.

Na área jurídica, cada estado tem suas próprias leis e seu próprio sistema judiciário, com tribunais estaduais em todos os níveis, da primeira instância a tribunais de recursos e um tribunal superior, que na maioria deles é chamado de Suprema Corte do Estado, que exerce, em nível de legislação estadual, as mesmas funções da Suprema Corte do país. É claro que a Suprema Corte dos EUA tem a última palavra, quando é acionada.

Às corporações também é atribuído o status de cidadã. Isso já foi confirmado pela Suprema Corte dos EUA. Assim, muitas delas estabelecem suas sedes em Dakota do Sul, Delaware, Geórgia e outros estados cujas leis são mais favoráveis a elas. E, de acordo com outra decisão da Suprema Corte dos EUA, de 2013, elas têm direito de eleger o foro para disputas em contratos no estado em que está sua sede — e também seu “exército” de advogados.

Com essa facilidade, se torna difícil para um funcionário ou um consumidor processar uma corporação multiestadual. Por exemplo, um funcionário de um banco na Califórnia, se quiser processá-lo, terá de fazê-lo na jurisdição eleita na Geórgia, a 3,8 mil km de distância. E a lei que servirá de base para a disputa será a da Geórgia, não a da Califórnia.

Um caso que está em disputa, atualmente, fica a menor distância: 670 milhas (cerca de mil quilômetros). Em março de 2015, o analista de crédito Bill Miller, de Maryland, que trabalhava para o Suntrust Mortgage, com sede na Geórgia, assegurou o melhor volume de vendas de sua vida, no valor de US$ 7,4 milhões, o que lhe garantiria comissões de quase US$ 60 mil.

Ele praticamente finalizou as transações, antes de deixar o banco para um novo emprego. Quando apresentou o relatório de suas vendas ao banco, veio a surpresa. Disseram a ele que não iriam pagar comissão alguma, segundo o jornal The Washington Post.

Maryland é um dos estados americanos com leis mais amigáveis aos trabalhadores. A lei estadual estabelece, por exemplo, que o vendedor tem direito a comissões de todos os negócios que concluiu substancialmente, mesmo que o fechamento seja feito depois que ele tenha deixado a empresa.

Miller apelou ao Departamento do Trabalho, Licenciamento e Regulamentação de Maryland e o órgão concordou que o banco deveria lhe pagar comissões de US$ 56.967,81. “Determinamos que seu empregador violou a Lei de Pagamento de Salários de Maryland (…) por deixar de pagar suas comissões”, escreveu o Departamento em sua decisão.

O Suntrust discordou. Em uma carta enviada ao advogado de Miller, os advogados da corporação apontaram uma cláusula no contrato padrão de trabalho para todos os analistas de crédito: “O Plano será governado e interpretado de acordo com as leis do estado da Geórgia (…), independentemente da localidade do emprego do participante”.

Em uma declaração enviada por e-mail ao The Washington Post, o porta-voz do banco, Mike McCoy, escreveu: “Como muitas empresas multiestaduais, escolhemos a lei que governa esses documentos para assegurar consistência de interpretação e aplicação e, em nosso caso, essa lei é a da Geórgia, onde nossa matriz é sediada”.

Como a Suprema Corte já decidiu que as corporações podem incluir cláusulas de “escolha de foro” em seus contratos e que, nesse caso, a lei válida é a do estado onde a matriz da empresa está sediada, isso também torna difícil para consumidores processarem uma companhia que atua em todo o país.

No caso dos empregados, tal cláusula no contrato dificilmente é discutível. Com a alta disponibilidade de mão-de-obra, uma corporação pode colocar para o candidato a emprego a condição: ou aceita o contrato, como está escrito, ou vá procurar emprego em outro lugar.

Essa faculdade de escolher o estado e as leis que irão governar seus contratos cria outras vantagens para as corporações. Por exemplo, há estados em que a lei proíbe empregados de trabalhar para empresas concorrentes, por um período de alguns anos, quando pedem demissão ou são demitidos. Mas, há estados que tal lei não existe. Mesmo assim, as corporações podem executar a lei mais vantajosa em todo o país, porque a lei que vale é a que escolheram.

O caso de Miller, no entanto, ainda vai render mais disputas judiciais, porque os tribunais de Maryland não gostam dessa “manobra” das corporações para ignorar leis locais. Em agosto, um juiz federal do Distrito de Maryland decidiu que as avaliações formais do tribunal estadual eram suficientes para determinar que as leis de Maryland têm precedência.

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