Opinião

Processo de impeachment tem natureza mista: política/jurídica

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18 de dezembro de 2015, 7h37

Em razão do recebimento da denúncia pelo presidente da Câmara dos Deputados do pedido de impeachment contra a presidente da República, Dilma Rousseff, instalou-se na sociedade e, em especial, na academia jurídica, um debate sobre a natureza jurídica do processo de impeachment.

Alguns sustentam que o processo de impeachment tem uma natureza eminentemente política já que no processo bicameral e de acordo com a Constituição da República (CR) cabe primeiramente à Câmara dos Deputados, por 2/3 dos seus membros, admitir a acusação contra a Presidenta da República (artigo 86 da CR). Caso seja a acusação admitida em relação aos crimes de responsabilidade a presidente será julgada perante o Senado Federal, no qual se dá a instauração do processo. (artigo 86, II da CR).

Como se pode constatar, a decisão sobre o impeachment em caso de crime de responsabilidade é de competência do Congresso Nacional e, especificamente, o julgamento é do Senado Federal. Deste modo, determinados políticos e juristas argumentam no sentido de que o referido processo é essencialmente político. Político, não somente porque é julgado pelo Congresso, mas porque, em eventual decisão dos deputados e dos senadores, os aspectos políticos prevalecerão sobre os jurídicos. Decidirão os parlamentares conforme suas conveniências políticas e partidárias.

Lado outro, há os que defendem que o julgamento do processo de impeachment deve ser estritamente jurídico. Os defensores desta tese sustentam que, embora a decisão seja do Congresso Nacional, os deputados e senadores devem decidir conforme as normas jurídicas, de acordo com a Constituição da República, com a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 e, subsidiariamente, com o Código de Processo Penal.

No seu âmago todo processo e todo julgamento tem, inegavelmente, um viés político, quer seja um processo e julgamento que tramite no Congresso Nacional, quer seja no Supremo Tribunal Federal ou mesmo em uma pequena comarca no interior das Minas Gerais. O julgador, seja ele político ou não, decide também politicamente. Em toda decisão há — para o bem ou para o mal — certa dose de subjetivismo e de discricionariedade política. Afinal, como proclamou Aristóteles “o homem é um animal político”.

Um julgamento apolítico é impossível, até porque os julgadores (juízes de direito ou políticos) não são neutros.

A neutralidade, como bem assevera Rubens R. R. Casara[1], “é impossível, porque o julgador está sempre em relação com o seu meio social, com a tradição em que se insere sua história de vida etc. Em termos heideggarianos, presença (dasein): o juiz é ser-no-mundo”. Prossegue o culto processualista, agora em consonância com a afirmação do ex-ministro Eros Grau, para quem “a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre”.

Assim, também, Alexandre Morais da Rosa[2], para quem embora o juiz ignore os fatos, não é neutro, “já que possui suas conotações políticas, religiosas, ideológicas, etc.”, mas deve ser imparcial (imparcialidade objetiva e subjetiva).

Mesmo para aqueles que entendem que a natureza do impeachment é necessariamente política, para se evitar qualquer flerte com o golpismo, o julgamento deve ser guiado pelos princípios fundamentais do direito, hipótese outra representaria afronta ao próprio Estado democrático de direito. Seria, portanto, neste contexto, inimaginável e igualmente absurdo o Parlamento julgar a Presidenta da República por conduta que não esteja prevista em lei (princípio da legalidade) como crime de responsabilidade.

O julgamento, qualquer que seja sua natureza, na concepção do Estado democrático de direito, que ao invés de julgar o fato do agente (direito penal do fato), julga o agente do fato (direito penal do autor), em nítida violação ao princípio da culpabilidade, atenta contra a dignidade humana. Necessário, ainda, salientar que em decorrência do princípio da culpabilidade o homem responde pelo que faz ou deixou de fazer e jamais pelo que é ou deixou de ser. O princípio da culpabilidade afasta, na esfera penal, qualquer hipótese de responsabilização objetiva ou responsabilidade pelo resultado. Mas, conforme Nilo Batista[3], “deve igualmente ser entendido como exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável”.

Contudo, entende-se aqui, que o processo de impeachment tem natureza mista: política/jurídica. Embora caiba ao Congresso Nacional, conforme já dito, processar e julgar a presidente da República deve tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, submeterem-se aos princípios constitucionais, às leis e às normas pertinentes à matéria. Necessário ressaltar que estamos diante de um Estado de direito que originariamente apresentava como características básicas: i. submissão ao império da lei; ii. separação harmônica dos poderes; iii. enunciado e garantia dos direitos individuais[4].

O termo “Estado de direito”, na concepção de Luigi Ferrajoli[5], é apresentado como sinônimo de “garantismo” e designando, assim e por esse motivo, “não simplesmente um ‘Estado legal’ ou ‘regulado pelas leis’, mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo poder público — legislativo, judiciário e administrativo — está subordinado às leis gerais e abstratas que lhes disciplinam as formas de exercício e cuja observância é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes (…); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações legais de lesão aos direitos de liberdade e das obrigações de satisfação dos direitos sociais (…)”

De tal modo, tendo como prevalente os princípios do próprio Estado de direito, o Congresso Nacional deveria e deve se ater, desde o momento em que foi recebida a acusação contra a presidente da República até o final do julgamento do impeachment ou do seu arquivamento, a Constituição da República, a Lei 1.079/50 no que lhe couber e subsidiariamente ao Código de Processo Penal.

Assim, os princípios constitucionais, principalmente, da legalidade estrita, da taxatividade, do devido processo penal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência devem nortear os julgadores deputados federais e senadores da República.

No dizer dos eminentes professores Juarez Tavares e Geraldo Prado[6] em substancioso e culto parecer contra o impeachment da presidente Dilmar Rousseff “o ‘processo político’ ou o ‘processo de impeachment’ haverá de ser, necessariamente, um método ‘racional-legal’ de determinação da responsabilidade política conforme parâmetros estabelecidos na Constituição da República. Não haveria garantias para a democracia se pudesse ser de outra forma. Os reflexos práticos dessa configuração são percebidos: a) na exigência de que os comportamentos que caracterizam ‘crime de responsabilidade’ possam ser demonstrados empiricamente — meros juízos de valor ou de ‘oportunidade’ não constituem o substrato fático de condutas ‘incrimináveis’; b) na consequente estipulação de procedimento que permita confirmar ou refutar a tese acusatória, em contraditório, com base em dados empíricos. Não é demais recordar o que ficou assentado linhas atrás: o processo de impeachment não equivale à moção de censura ou ao veto (recusa do voto de confiança) do Parlamento ao governo, institutos que são pertinentes ao sistema parlamentarista”.

No processo democrático é imprescindível que se garanta isonomia, publicidade, ampla defesa e contraditório, “princípios fundamentais sem os quais a sua deslegitimidade aflora e macula a decisão”[7].

Por fim, se hodiernamente o processo penal e com ele os seus princípios, “possui destacado lugar e função na democracia”[8], qualquer natureza que se queira dar ao processo de impeachment da presidente da República, com muito mais razão, pela importância e natureza do cargo, pela própria sobrevivência da democracia e, sobretudo, em razão do próprio Estado democrático de direito, posto que em eleições livres, diretas e democráticas não se pode desprezar em nome de uma insatisfação política um mandato presidencial obtido por 55 milhões de votos .


1 CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

2 ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

3 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

4 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

7 ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal … ob. cit.

8 Idem.

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