Limite Penal

Delação seduz porque transforma réu confesso em arrependido purificado

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

18 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
Michel Foucault nos apresenta — a partir da repressão sexual — que desde a Idade Média a confissão se constitui como o ritual mais importante para produção da verdade, tendo sido reforçada pelo Concílio de Latrão (1215) e potencializada pela maneira inquisitória de obtenção da verdade. A confissão seria a maneira pela qual o sujeito reconheceria seus erros, pecados e desvios, sendo o fundamento de si mesmo. Por isso diz Foucault: “a confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização do poder.”[1] A obrigação, pois, do ocidental é confessar diante do Médico, do parceiro amoroso, do empregador, do analista, do delegado de Polícia, do Ministério Público e do juiz: “confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem.”[2]

Se o sujeito se nega a confessar, então, o aparato de “fazer confessar” é acionado, quer por instrumentos de torturas físicas, psicológicas e/ou midiáticas, como prisões no Jornal Nacional ou dilaceramento preventivo de reputações. Enfim, no Processo Penal do Espetáculo, como diz, Rubens Casara[3], a confissão/delação é extorquida, dada a lógica do “animal-objeto-confidente-delator”.

Alguns aplaudem, quem sabe por guardar a projeção da culpa nossa de todos os dias, não necessariamente por desvios criminais, mas sim pela culpa pressuposta de todo sujeito sob a Lei do Pai, como nos ensinava Freud e Lacan, tão bem indicado por Agostinho Ramalho Marques Neto: “Foi a experiência clínica com seus pacientes [Freud] que o levou à ‘surpreendente descoberta ´de que ações delituosas ‘eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava”[4]. E os que fomentam a “tortura soft” justificam-se em nome do interesse público.

A lógica é a do pecado, do arrependimento sincero, da confissão e da redenção, ou seja, do crime, do arrependimento sincero, da confissão/delação e da redenção/punição. Com isso articula-se a obrigação de confessar[5].

Claro que o julgador também adora uma confissão, pois ela lhe retira a culpa de punir, permitindo que inflija o mal com o pleno consentimento do punido. Nada melhor do que poder punir sem a necessidade de submeter ao contraditório, ao conflito ritualizado e possível gerador de dúvidas. Não existe qualquer tipo de dissonância no sistema cognitivo e tampouco estresse por ter que decidir entre duas teses conflitantes. Sem falar que representa um sedutor 'atalho para a verdade', reduzindo a quase nada o labor probatório e a axiologia decisória.

Aliás, o Facebook e as redes sociais talvez comprovem o desejo de se confessar, de expor sua vida, exibir-se, ganhando a compaixão dos demais e demonstrando que o sujeito é um confessante virtual. Neste contexto, a sedução pela redenção e o regozijo dos demais, possa ser uma chave interpretativa da sedução pelos delatores que, de um momento para o outro, depois de purificados pela delação, passam a ser “respeitáveis arrependidos”. Abandonados da malícia e arrependidos colaboradores, desfilam como novos incluídos ao exército do bem.

Uma vez mais Foucault: “Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; enfim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas consequências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas; inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação.”[6]

Esta leitura dialoga com o custo-benefício de confessar e delatar, próprio de uma lógica utilitarista e pragmática, como já foi abordado anteriormente[7], mas que cobra o preço das imagens manipuladas todos os dias. No ambiente interno, todavia, um traidor sempre será um traidor, mesmo com boas razões. Mas o arrependido está salvo e mostra que há um caminho imaginário de salvação, daí a sedução. Terminamos com a advertência de Freud: “Nisto a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos: todos nós não passamos de miseráveis pecadores”.[8] Bons pecados.


[1] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, vol. I – vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 58.
[2] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, vol. I – vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 59.
[3] CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[4][iv] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sentimento Inconsciente de Culpa e Necessidade Inconsciente de Punição: uma questão para o Direito Penal. In. PINHO, Ana Cláudia Bastos de; GOMES, Marcus Alan de Melo. Ciências Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 1-12.
[5] TEDESCO, Ignacio. F. El acusado em el ritual judicial. Buenos Aires: Del Puerto, 2007, p. 329-331.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, vol. I – vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 61.
[7] LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Processo Penal no Limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[8] FREUD, Sigmund. Totem e Tabu & outros trabalhos. Trad. Jayme Salomão. São Paulo: Imago, 1996.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!