Passado a Limpo

O caso da imunidade do imposto de renda para os juízes em 1929

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de dezembro de 2015, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Em 1929, a propósito de responder consulta decorrente de requerimento de juiz aposentado, que pretendia restituição do imposto de renda que lhe fora descontado, o Consultor-Geral da República firmou definitivamente a tese de que a imposição fiscal sobre a renda incide sobre todos. Não há privilégios para juízes. Estes, com respaldo em decisão do Supremo Tribunal Federal, invocavam que os descontos de imposto de renda redundavam em redução de vencimentos, o que vedado.

Getúlio Vargas enfrentou a decisão do Supremo, baixou ordem determinando que o imposto de renda fosse descontado de todos os magistrados, de onde uma nova discussão, de algum modo pacificada em favor do fisco. O parecer que segue dá muito bem as linhas do problema, centrado na compreensão iluminada e democrática de que seja da essência do imposto a universalidade consistente na exclusão de todo e qualquer privilégio; isto é, segundo o parecerista, é também axioma consagrado expressamente na Constituição a absoluta igualdade de todos perante a Lei; portanto, o mínimo de isenção estabelecido em favor dos mais pobres, constitui uma forma de beneficência pública, e nada mais.

“Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1929.

Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda – Com o presente parecer, tenho a honra de restituir o processo que Vossa Excelência se dignou enviar-me, relativo ao requerimento do Doutor Joaquim Xavier Guimarães Natal, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, pedindo restituição de impostos que lhe foram descontados em seus vencimentos.

A questão, objeto da consulta, é costume discuti-la enfileirando autoridades, principalmente publicistas americanos. Por evitar, porém, prolixidade escusada em se tratando de assunto já tão discutido, limito-me ao indispensável.

Pouco ou nenhum préstimo teria, em verdade, a magistratura federal, se não se lhe assegurasse absoluta independência, que certamente perigaria, facultando-se aos poderes legislativo e executivo diminuir os vencimentos dos juízes, quer diretamente, quer por meio de impostos. Tal o fundamento da irredutibilidade dos mesmos vencimentos, que em todos os tempos tem revestido caráter alimentar. Próprio é da natureza humana, disse Hamilton, não haver diferença entre o poder sobre a subsistência de alguém e o poder sobre a sua vontade.

De acordo com essas ideias, o Supremo Tribunal, em aresto de 15-10-1902, seguido em vários outros, unanimemente decidiu: “a irredutibilidade do estipêndio é uma das garantias do Poder Judiciário… a competência porventura deferida ao Poder Legislativo (exercida pelo Congresso Nacional e com a sanção do Presidente da República), para tributar o estipêndio dos juízes federais . . . envolve a faculdade de reduzi-lo a zero e o jus vitae et mortis sobre o Poder Judiciário, o que se não dá quanto aos subsídios do Presidente e do Vice-presidente da República, bem como dos Senadores e Deputados, visto que a lei é de sua feitura”

É, portanto, sem dúvida a irredutibilidade dos vencimentos dos juízes federais; e, consequentemente, não se permitiu criar, com o fim de obtê-la, um imposto sobre os mesmos vencimentos.

Não podiam, porém, os legisladores constituintes ter por necessário à independência dos juízes, estabelecer, em favor deles, contra o princípio da universalidade do imposto, e com violação do art. 72, § 2º, um privilégio que a mesma natureza do regime repelia.

Não lhes lembraria de prevenir a hipótese, irrealizável, de pretender o governo atentar contra a independência dos juízes, lançando um imposto geral. Tão longe não iriam, por mais que soltassem as velas ao talento inventivo, no ilimitado das hipóteses inadmissíveis.

Certo não haveria mais desmarcado absurdo que os representantes dos outros poderes implorem a si e a todos o mesmo ônus, somente com o fim de causar prejuízo a alguns juízes.

Tem todo o juiz, como os demais homens, um círculo de relações a que o prendem interesses e vinculam afetos. Nesses, poderia facilmente o governo exercer hostilidade, ou vingança, tendo a vantagem de ajudar-se nisso com muitos que ignorassem o alcance do concurso prestado.

Assentado ser inadmissível lançar-se um imposto geral com o intuito de prejudicar a um ou mais juízes, deve-se ainda atentar em que o imposto é condição da existência mesma do Estado, que sem ele, não preencheria os seus fins, e viria fatalmente a desaparecer.

Indispensável para a formação do fundo destinado às despesas a que é obrigada a administração em benefício da comunidade em todo o estado de civilização, especialmente nos países organizados, o imposto o que na verdade representa é a cota devida para os encargos do Estado, entre os quais figuram também as despesas feitas com a administração da justiça.

É da essência do imposto a universalidade consistente na exclusão de todo e qualquer privilégio. E é também axioma consagrado expressamente no art. 72, § 2º, da Constituição, a absoluta igualdade de todos perante a Lei. O mínimo de isenção estabelecido em favor dos mais pobres, constitui uma forma de beneficência pública (…)

Pelas razões expostas, sempre entendi com Aristides Milton, Viveiros de Castro, Agenor de Roure, além de outros, que o legislador constituinte não pensou absolutamente em isentar dos impostos gerais os vencimentos dos juízes.

Nesse sentido várias vezes se manifestou o meu honrado antecessor, que, a 17 de abril do corrente ano, sustentou brilhantemente a sua antiga opinião em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, em cujas decisões vem colaborando com as luzes de seu saber.

O mesmo Tribunal, entretanto, já havia há muito firmado jurisprudência em sentido contrário; e a administração a vinha acatando, até que a reforma constitucional, sob o fundamento de não ser lícito “a quem quer que seja eximir-se do ônus de concorrer para as despesas indispensáveis à manutenção do Estado”, estabeleceu que “as disposições constitucionais assecuratórias da irredutibilidade de vencimentos civis ou militares não eximem da obrigação de pagar os impostos gerais criados em lei”.

Em virtude de consulta feita em novembro de 1926 à Subdiretoria da Despesa, submetida ao Ministro Getúlio Vargas, o mesmo, ouvindo previamente o Consultor da Fazenda Pública e o meu antecessor, determinou: “Em face dos pareceres dos Doutores Consultor-Geral da República e Consultor da Fazenda, e de acordo com o § 32 do art. 72 da Constituição, os vencimentos dos magistrados estão sujeitos a todos os impostos que atinjam, direta ou indiretamente, os vencimentos dos funcionários públicos, devendo ser feitos os respectivos descontos em folha de pagamento nos casos em que as leis ou os regulamentos o determinem. Baixe-se circular recomendando a cobrança dos impostos que recaírem sobre aqueles vencimentos a partir da promulgação de Constituição revista. ”

Baixou-se a Circular nº 44, de 25 de julho de 1927, nos seguintes termos : “De acordo com o § 32 do art. 72 da Constituição Federal, os vencimentos dos magistrados estão sujeitos a todos os impostos que atinjam, direta ou indiretamente, os vencimentos dos funcionários públicos, feitos os respectivos descontos em folha de pagamento, nos casos em que as leis ou os regulamentos o determinem; devendo ser efetuada a cobrança dos impostos que recaírem sobre aqueles vencimentos a partir da data em que entrou em vigor a reforma da Constituição de 24 de fevereiro de 1891.”

Já em março do mesmo ano, resolvendo a consulta sobre se os auditores das circunscrições militares estavam obrigados ao pagamento do imposto sobre a renda, havia o sobredito Ministro declarado que, “em face da reforma constitucional, as disposições assecuratórias da irredutibilidade de vencimentos civis ou militares não eximem da obrigação de pagar os impostos gerais criados em lei”.

Nova Circular desse Ministério, sob nº 64, de 25 de outubro de 1927 (…) declarou que “os vencimentos dos funcionários dos Estados e dos Municípios estão sujeitos ao imposto sobre a renda, em que incide toda e qualquer remuneração, proveniente de qualquer título que, quem quer que seja, perceba no território nacional”.

Assim, a administração vem observando o disposto na reforma constitucional, cujo pensamento está bem claro nas considerações com que o justificavam as comissões especiais na Câmara e no Senado. O primeiro desses pareceres o justifica nos seguintes termos: “Não é lícito a quem quer que seja eximir-se do ônus de concorrer para as despesas indispensáveis à manutenção do Estado. Como o exercício de alguns cargos é protegido pela irredutibilidade de vencimentos, se tem entendido não poderem ser atingidos pela taxação os detentores desses cargos. A emenda considerando-os libertos da incidência de impostos especiais que os alcance, sujeita-os, entretanto, à obrigação de pagar os impostos gerais criados em lei”.

Reza o segundo por este teor: “O imposto geral é a contribuição em dinheiro a que são obrigados os membros da comunhão social para a manutenção dos serviços como o de polícia e outros, em benefício de toda a população. Se os que gozam de vencimentos irredutíveis são também beneficiados com tais serviços, é justo que também paguem impostos. Mas impostos gerais, e não especiais, que poderiam constituir meios indiretos para a redução de vencimentos”.

Sem embargo, porém, do novo dispositivo, assim fundamentado, há, sobre a sua inteligência e aplicação, divergências entre os honrados membros do Supremo Tribunal Federal, segundo testifica o acórdão em que se baseia o requerente. Nesse Acórdão se lê, a respeito do citado dispositivo: “E do seu exame em confronto com outros mandamentos mantidos no mesmo Estatuto Político resulta evidente que o legislador constituinte não conseguiu realizar o que talvez pretendesse. Efetivamente: 1º Dispondo o poder revisor por aquela forma, todavia manteve íntegro o preceito que continua a assegurar à magistratura federal a certeza da intangibilidade de suas remunerações. Os seus vencimentos, rezam o § 1º do art. 57 da Const., serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos. Ora se não podem ser reduzidos como permitir a possibilidade de redução? E desse ajuste do § 32 do art. 72 com o § 1º do art. 57 já referidos, decorre, como solução única capaz de remover o absurdo ou incongruências, que as rendas dos magistrados em apreço ficaram sujeitas a todos os impostos gerais, menos aqueles que direta ou indiretamente tragam diminuição aos seus vencimentos”.

A conclusão desse Acórdão teve o apoio da maioria por fundamentos diferentes, havendo alguns juízes fundamentado os seus votos vencidos.

Temos, pois, de um lado o texto da reforma constitucional e a jurisprudência administrativa em tudo ao mesmo conforme; e de outro, decisão do Supremo Tribunal Federal contraria ao ato desse Ministério que, em virtude da mesma reforma constitucional, mandou fazer descontos nos vencimentos de um Ministro do mesmo Tribunal.

Fundado nessa decisão, obrigatória em espécie, outro Ministro, aposentado em abril de 1927, pretende se lhe estenda o mesmo benefício dela resultante.

Além das considerações opostas ao requerimento pelo ilustrado Consultor da Fazenda Pública, cumpre-me ponderar que, nos termos da decisão do Superior Tribunal de São Paulo, publicada (…), o respeito devido aos juízes que fundamentaram os seus votos vencidos faz com que os julgados em que figuraram não possam constituir jurisprudência.

De acordo com o parecer do mesmo Consultor da Fazenda Pública, penso não ser de deferir o pedido.

Tenho a honra de renovar a Vossa Excelência os meus protestos de elevada estima e particular consideração.

Solidonio Leite”

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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