Direito Civil Atual

STJ concede preferência a condôminos na compra de coisa divisível

Autor

  • Fernando Speck de Souza

    é juiz de direito do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) professor de Direito Civil no Centro Universitário Católica de Santa Catarina mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

14 de dezembro de 2015, 9h57

Inicio minha participação nesta importante coluna, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, agradecendo ao honroso convite formulado pelo professor Otávio Luiz Rodrigues Jr.. Escrever para a ConJur e para a coluna Direito Civil Atual é motivo de muito orgulho.

Tratarei do direito de preferência do condômino na compra de fração de imóvel indiviso à luz do artigo 504 do CC/2002, tendo por base a recente decisão proferida pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.207.129/MG, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, julgado no dia 16 de junho de 2015.

O artigo 504 do CC/2002 dispõe que “não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto […]” (grifou-se).

Com base em tal premissa, a Justiça de Minas Gerais negou o direito de preferência a um casal que pretendia adquirir parte de uma fazenda da qual já era coproprietário. Segundo o Tribunal de Justiça mineiro, o imóvel era passível de cômoda divisão, razão pela qual a regra do artigo 504 do CC/2002 seria inaplicável.

O litígio chegou ao STJ e relembrou a discussão que era travada em torno do tema por suas turmas de Direito Privado. Ambas, sob a égide do CC/1916, sustentavam posições diametralmente opostas.

A 3ª Turma, influenciada por Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues e Carvalho Santos, adotava interpretação restritiva. Entendiam seus membros que admitir a preferência aos proprietários de imóveis meramente indivisos aumentaria extraordinariamente a restrição estabelecida na norma. Fosse essa a vontade do legislador — ressaltou o ministro Eduardo Ribeiro no julgamento do REsp 60.656-0/SP, ocorrido em 1996 —, teria consignado que ao condômino não era dado vender sua parte a estranhos. Na oportunidade, acrescentou que a inconveniência de se introduzir um estranho na comunhão não se verifica quando o bem pode ser dividido. E lembrou que no projeto do CC/1916 não havia alusão à coisa indivisível, cuja modificação resultou de emenda introduzida no Senado por Rui Barbosa.

De fato, uma análise literal dos artigos 504 do CC/2002 e 1.139 do CC/1916, aliada à ideia de divisão cômoda, faz supor que o direito de preferência ali previsto seja restrito aos imóveis indivisíveis. Aliás, Carvalho Santos, com apoio em Melquíades Picanço, sustentava que a possibilidade de divisão era razão suficiente para afastar os dissabores da entrada de um estranho na comunhão[1].

Contudo, para Clóvis Beviláqua, os inconvenientes decorrentes da entrada de um estranho no condomínio são os mesmos, seja o bem divisível ou indivisível. Segundo deixou assente em sua obra, a distinção não se justifica, porque no estado de comunhão as coisas estão indivisas. E acrescentou que a emenda de Rui Barbosa não foi feliz[2].

Pontes de Miranda, a despeito de defender a interpretação restritiva, teceu críticas ainda mais severas à emenda. Destacou que Rui Barbosa, sem refletir suficientemente sobre o tema e com superficialidade de argumentos, fez constar a expressão “coisa indivisível” para afeiçoar o texto ao artigo 1.566 do CC português de 1867. Este, todavia, era defeituoso e, por obra da doutrina, foi complementado, passando a constar “coisa indivisível ou indivisa[3].

Imperativo consignar que após a publicação da obra de Pontes de Miranda, o legislador português promulgou seu atual CC (Decreto-lei 47.344, de 25/11/1966[4]), o qual foi além. A norma deixou de fazer referência a imóvel indivisível ou indiviso[5], estendendo, com isso, a preferência ao comunheiro de condomínio pro diviso. E em outro dispositivo, ainda concedeu o direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes[6].

Nesse contexto, a 4ª Turma do STJ, influenciada por Clóvis Beviláqua, Caio Mário da Silva Pereira, Carvalho de Mendonça, e, mais recentemente, por Otávio Luiz Rodrigues Junior, José Osório de Azevedo Júnior[7] e Nelson Rosenvald, consagra a interpretação mais abrangente.

Um dos fundamentos constantes de seus julgados está em que a finalidade da norma é impedir que estranhos ingressem no condomínio. Para o ministro Luis Felipe Salomão, ao conceder o direito de preferência aos demais condôminos, pretendeu o legislador conciliar os objetivos do vendedor com o intuito dos demais proprietários, evitando desentendimentos decorrentes da entrada de um estranho no grupo.

Aliado a isso, deve-se manter a coerência do sistema, sobretudo com o disposto no artigo 1.314, parágrafo único, do CC/2002, segundo o qual “nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros”. A leitura desse dispositivo, conjugada com a do artigo 504 do CC/2002, induz à conclusão de que a venda de parte ideal do bem a estranhos depende do consenso dos demais comunheiros, haja vista que a posse, o uso e o gozo, nas palavras do ministro Luis Felipe Salomão, são “um minus em relação à transferência de propriedade”.

Essa tese já havia prevalecido quando do julgamento do REsp 489.860/SP pela 2ª Seção. No seu voto, a relatora, ministra Nancy Andrighi, também defendeu que a leitura do artigo 1.139 do CC/1916 (atual artigo 504 do CC/2002) deveria ocorrer de acordo com o artigo 633 do CC/1916 (artigo 1.314, parágrafo único, do CC/2002). Referido recurso havia sido distribuído à 3ª Turma, mas foi afetado à 2ª Seção justamente em razão do desacordo existente entre as turmas de Direito Privado. O julgamento ocorreu em 2004, mas o litígio era regido pelo CC/1916.

Um outro aspecto corrobora a conclusão supra. O artigo 623, inciso III, do CC/1916[8] havia sido modificado pelo Decreto Legislativo 3.725/19, que fez inserir no primeiro, próximo da expressão “indivisa”, uma menção ao artigo 1.139 do mesmo diploma (atual artigo 504 do CC/2002). Tal mudança sugere a intenção de corrigir a impropriedade da restrição prevista no último, ampliando o conceito de indivisibilidade para incluir as coisas indivisas.

Malgrado a expressão “parte indivisa” tenha sido substituída por “parte ideal” na versão atual do dispositivo (artigo 1.314, caput, do CC/2002), não se tem notícias de maiores debates em torno da alteração[9], muito menos que esta tenha ocorrido com o objetivo de restringir o alcance do artigo 504 do CC/2002. Tal rigidez, aliás, não se verificou no legislador de 2002, que, inclusive, estendeu o direito de preferência ao coerdeiro (artigos 1.794 e 1.795 do CC/2002).

Além das interpretações teleológica e sistemática, a atual 4ª Turma recordou de outro fundamento, de ordem pragmática. No julgamento do REsp 9.934/SP, ocorrido em 1993, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira sustentou que provar a indivisibilidade, muitas vezes, é tarefa dificílima, pois nem sempre há consenso entre os coproprietários sobre a espécie de condomínio, se divisível ou indivisível.

De fato, a comprovação da divisibilidade econômico-jurídica — que não era prevista no CC/1916, mas já era assimilada pela jurisprudência[10] — não é tarefa fácil.  Há casos em que a demonstração da divisibilidade demanda intensa atividade probatória, com avaliações, pesquisas de preço e contraprova de ambas as partes, dificultando sobremaneira a solução do litígio.

Com base em tais fundamentos, a 4ª Turma do STJ, por meio do REsp 1.207.129/MG, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, cassou as decisões proferidas pela Justiça Mineira e determinou a remessa dos autos ao primeiro grau para exame dos demais requisitos da ação de preferência. Com isso, manteve a coesão de seus precedentes, em consonância com a posição da Segunda Seção, agora sob a égide do CC/2002.

Acredita-se que tal decisão influenciará a jurisprudência dos demais tribunais pátrios, pois é o primeiro precedente do STJ a tratar especificamente do tema após a entrada em vigor do CC/2002.

É bem verdade que a divergência em torno do tema impede que se arrisque uma previsão para o futuro. A prudência impõe que se aguarde a posição da 3ª Turma, cujos membros atuais não participaram dos julgamentos anteriores, nem atuaram na Segunda Seção quando da uniformização do entendimento em 2004.

De todo modo, o precedente representa uma excelente razão para que se reflita sobre o tema. Quiçá os legisladores venham a propor a exclusão da expressão “em coisa indivisível” do artigo 504 do Código Civil, a exemplo do que fez o Parlamento Português, cuja norma influenciou a redação do dispositivo correspondente no Código Civil brasileiro de 1916.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado (principalmente do ponto de vista prático). 9. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1972. v. 16: arts. 1.122-1.187. p. 169.
[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. ed. histórica. 7. tiragem. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1984. v. 2: IV-VI. p. 249.
[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. 39: direito das obrigações: compra-e-venda, troca, contrato estimatório. p. 308.
[4] Disponível em: <http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf>.
[5] Art. 1409º, item 1, do CC português de 1966.
[6] Art. 1380º, item 1, do CC português de 1966.
[7] Referido autor, a propósito, formulou proposta de enunciado sobre o tema na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/jornadas-cej/volume_I.pdf/view>.
[8] “Art. 623. Na propriedade em comum, compropriedade, ou condomínio, cada condômino ou consorte pode: […] III – alhear a respectiva parte indivisa, ou gravá-la (art. 1.139)”.
[9] Segundo Carlos Alberto Dabus Maluf, o art. 1.314 do CC 2002 “não foi alvo de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara de Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do projeto” (Código civil comentado. SILVA, Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.). 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1246).
[10] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Código civil comentado. AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). São Paulo: Atlas, 2008. v. 6, t. 1: compra e venda, troca, contrato estimatório: artigos 481 a 537. p. 290.

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