Opinião

Luta contra o Estado Islâmico exige uma persecução penal justa

Autor

  • Kai Ambos

    é catedrático de Direito Penal Direito Processual Penal Direito Comparado e Direito Penal Internacional na Georg-August Universität Göttingen (Alemanha) além de diretor do Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latino-americano da universidade e juiz do Tribunal Provincial de Göttingen.

13 de dezembro de 2015, 8h42

O presidente Obama chamou os atentados de Paris de um “ataque à humanidade”. Dessa maneira, toca o núcleo dos chamados crimes de lesa humanidade (CLH). Um delito que se dirige não apenas contra pessoas individualmente, mas também contra a humanidade como um todo, em razão de sua dimensão quantitativa e qualitativa e do menosprezo absoluto a valores fundamentais.

Desistiu-se do vínculo estatal, o mais tardar em 1998, com a definição dos CLH no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (ETPI). Desde então, os atores não estatais também podem ser autores de CLH. Com isso, a fundamentação tradicional vinculada ao Estado — o castigo dos representantes do Estado pervertido moralmente, que aplica sem escrúpulos o poder estatal contra seus próprios cidadãos — pode ser aplicada também a autores não estatais. Quando estes, como o chamado Estado Islâmico (EI), enviam autores de atentados suicidas a uma sala de concertos para executar civis inocentes, evidencia-se a perversão moral típica de CLH. O fato de os autores, no momento exato do ataque, invocarem a Deus, torna a questão ainda mais perversa. O criminoso de lesa humanidade motivado religiosamente priva suas vítimas não só do direito de existência, mas se coloca ainda sobre nós, os “não crentes”, por mandato supostamente divino; esse criminoso atua assim como fizeram os integrantes das cruzadas, os mesmos que ele pretende combater.

O criminoso de lesa humanidade é hostis humani generis, inimigo da humanidade. Os piratas foram designados dessa maneira, inclusive quando não existiam os CLH. Os terroristas do EI são ainda mais perversos que os piratas e seus atos desenvolvem todas as características dos CLH. Antes de Paris, podiam se fazer objeções, mas depois de Paris todas as dúvidas dissiparam-se ao vento. Os atentados representam, na linguagem técnica do chamado fato global do tipo penal internacional, um ataque sistemático e generalizado contra a população civil, já que o ataque se dirigiu a uma multidão de civis e foi planejado premeditadamente. O homicídio premeditado de mais de 100 pessoas representa o fato individual necessário. Com isso, o Tribunal Penal Internacional é competente materialmente (ratione materiae). Não é necessário recorrer aos crimes de guerra. Isso torna a questão mais simples, pois é bastante controvertido se pode existir um conflito armado, no sentido do direito de guerra (Direito Internacional Humanitário), entre um ator transnacional não estatal e um Estado.

Seria o TPI competente também formalmente? Quanto aos fatos cometidos pelo EI na Líbia, o é, pois essa situação foi remetida pelo Conselho de Segurança da ONU no ano de 2011. Isso foi confirmado em várias ocasiões pela procuradora do TPI, Fatou Bensouda, pela última vez em outubro, em seu informe ao Conselho de Segurança. Por outro lado, em 8 de abril de 2015, rechaçou a abertura de um exame preliminar contra o EI à falta de um fundamento suficiente de competência (ver declaração). O mesmo Conselho de Segurança não conseguiu chegar a um acordo, dias antes, em 27 de março, sobre a remissão da “situação do EI” ao TPI. Os atentados de Paris transformam a situação fática e jurídica, e a procuradora do TPI e o conselho deveriam reagir frente a essas novas circunstâncias.

A procuradora do TPI observou antes como único fundamento de competência o chamado princípio de personalidade ativa, uma vez que alguns membros do EI são nacionais de Estados-parte do ETPI, entre outros, França e Alemanha, e isso fundamenta a competência da corte. O problema de tal fundamentação de competência vinculada a pessoas é que as respectivas investigações não se podem dirigir contra nacionais de Estados não parte do estatuto. Então, a liderança do EI, que provém em sua maioria da Síria e do Iraque, não se veria afetada.

O segundo ponto de partida de uma possível competência do TPI, o princípio da territorialidade, requer, por sua vez, que exista uma determinada conexão territorial com o Estado do lugar dos fatos (nesse caso, França). Quão forte deve dar-se esse vínculo é, sem embargo, controvertido. Uma postura estrita confirmaria isso somente se ditos crimes são cometidos em Estado-parte por meio do mesmo ou de um ator não estatal residente ali. O caso de um ator que se move a nível transnacional e em rede, como o EI, não se ajusta exatamente a esses requisitos, pois o mesmo não tem nenhum domínio territorial estável ou, em todo caso, somente no território de um Estado que não seja parte do ETPI (Iraque, Líbia, Síria, Turquia). Desde outro ponto de vista, sem embargo, deveria ser suficiente que os fatos tenham ocorrido em um Estado-parte, ou seja, que pelo menos ali se haja produzido o resultado (por exemplo, a morte de civis). Este ponto de vista é de se aprovar, pois se embasa na doutrina dos efeitos reconhecida no Direito Internacional desde o famoso caso Lotus da Corte Permanente de Justiça.

Com os atentados em Paris, em todo caso, deveria estar satisfeita a exigência de uma suficiente conexão territorial a um Estado-parte do ETPI, em razão da magnitude do ataque e da combinação de atos e resultados em território francês. Dessa forma, a procuradora do TPI possui um fundamento suficientemente sólido de competência para iniciar de ofício investigações contra o EI. Fora isso, a França, como Estado-parte afetado, pode assim mesmo remeter a situação “atentados de Paris” à corte.

Porém, também uma remissão por meio do Conselho de Segurança da ONU poderia ser agora legalmente mais fácil, pois a mesma não necessitaria referir-se mais de maneira geral ao EI— um ator transnacional —, senão de maneira direta aos atentados de Paris. Isso satisfaria as exigências desenvolvidas pela jurisprudência acerca da remissão de situações que devem ser restringidas por meio de critérios territoriais, temporais e possivelmente pessoais. Também se considerariam os reparos a respeito de um mandato de investigação demasiado indeterminado, pois com os atentados de Paris se teria um ponto de referência mais concreto. Com isso, estaria o Tribunal delimitado muito mais exatamente que nas anteriores remissões do Conselho de Segurança nos assuntos Darfur (Sudão) e Líbia. Em ambos os casos — investigações de oficio ou remissão do Conselho de Segurança — poderiam dirigir-se as investigações do gabinete do procurador contra a estrutura de mando do EI.

Semelhante tratamento concreto do TPI com o EI, proporcionado pelos atentados de Paris, é também adequado desde o ponto de vista político criminal. É evidente que a luta militar do EI tem que ser complementada desde muitos níveis não militares. Um desses níveis é uma efetiva persecução penal justa acatando as regras do devido processo, que, sem embargo, só pode ser exitosa se levada a cabo de maneira supranacional e coordenada entre Estados. O eixo e ponto crucial de tal persecução penal concertada só pode ser o TPI. Isso exige obviamente o respectivo respaldo não só de Estados-parte, senão, antes de tudo, de importantes Estados não parte, como EUA, Rússia e China. Trata-se, em essência, de uma coordenada operação de persecução penal internacional, que vai mais além do que nós conhecíamos até agora em processos perante o TPI — cooperação fundamentalmente só com os Estados-parte afetados — e que exige por esse motivo uma respectiva vontade de persecução e cooperação de uma verdadeira comunidade internacional.

*Tradução de Diego Reis, estudante de mestrado na Georg-August Universität Göttingen.

Autores

  • Brave

    é Professor de Direito Penal, Processo Penal, Direito Comparado e Direito Penal Internacional na Georg-August Universität Göttingen, Alemanha. Juiz do Tribunal estadual de Göttingen (Landgericht) e Preside o CEDPAL - Centro de Estudos de Direito Penal e Processual Penal Latinoamericano, do Instituto de Ciências Criminais da Facultade de Direito da Universidade Georg-August de Göttingen, e tem por objetivo promover a investigação de ciências penais e criminológicas na América Latina e fomentar o ensino e a capacitação nestas áreas.

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