Cultura do justiçamento

"Aumentar prazo para prescrição permite que Estado continue funcionando mal"

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13 de dezembro de 2015, 8h04

Spacca
Crítico do “ativismo” do Ministério Público brasileiro — que tem feito campanha para angariar assinaturas de apoio ao seu “pacote anticorrupção” — o conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil e advogado criminalista Fernando Santana Rocha acredita que o Brasil vive a cultura do justiçamento.

Na avaliação dele, as propostas do MPF “atentam rigorosamente contra direitos e garantias fundamentais que estão na Constituição”. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Santana afirma que por um clamor popular e uma pressão midiática, às vezes, tem se a tipificação de novos crimes que poderiam ser punidos com legislações já existentes.  

No entanto, o advogado abre exceções: defende a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados. Para ele, muitos juízes, membros do Ministério Público e as autoridades policiais não têm consciência da relevância dessas das prerrogativas. “Pensam, por falta desta […] consciência, que tais prerrogativa são privilégios concedidos ao advogado.  E não são. São instrumentos para que possamos desempenhar bem o direito de defesa para quem assistimos”, ressalta.

Há mais de quatro décadas na advocacia, Fernando Santana observa que advogar na seara penal hoje é mais difícil. Segundo ele, por causa das deficiências do Judiciário brasileiro e, também, de um desapreço da sociedade pelo advogado criminal. Assim, o estudante de Direito tem, para ele, se desinteressado pela advocacia privada. “O aluno corre para concurso público, que é mais cômodo e tranquilo”, frisou.

Aos 69 anos, Fernando Santana é graduado em Direito e especialista em processo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde também leciona. É membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e autor de trabalhos jurídicos publicados em livros e periódicos especializados. Já foi membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Leia a entrevista:

ConJur – O senhor acha que o advogado tem que provar a origem dos honorários que recebe?
Fernando Santana –
Essa pergunta eu fiz recentemente em um determinado local em que estavam alguns médicos e dois empresários, que criticavam advogados por receberem dinheiro “dos ladrões da Petrobras”. Eu não recebo dinheiro de furto, de roubo… eu recebo honorários pelos serviços que presto.  Não me interessa de onde veio o dinheiro, porque o dinheiro não tem rótulo e nem carimbo. Aí perguntei aos médicos se um destes presos da Petrobras estivesse em uma situação de emergência, antes de operar, eles procurariam saber a origem do dinheiro que pagaria os seus honorários ou receberiam em paz? Não tenho que prestar contas dos meus honorários. O que não posso, como advogado, é ser partícipe de uma organização criminosa. Os honorários do advogado não devem ser investigados. E a Ordem luta contra isso. Se um advogado auxilia alguém a praticar uma lavagem de dinheiro, ele não está recebendo honorários, mas sim praticando crime. É uma outra coisa.

ConJur – O senhor acha que o direito de defesa foi diminuído no Brasil?
Fernando Santana –
O que temos observado hoje é uma certa dificuldade para exercitar a defesa, haja vista ter sido criado, no Brasil, uma cultura de “justiçamento”. Não estou fazendo defesa da corrupção, da criminalidade, mas hoje se criou essa cultura, e o ativismo, tanto do Poder Judiciário quanto do Ministério Público, se presta, um pouco, ao serviço dessa cultura do “justiçamento social”, o que acaba por dificultar o exercício da defesa. Isso exige do advogado criminal maior poder de enfrentamento, porque, no momento que tem os direitos e as prerrogativas de algum modo cerceado, temos que enfrentar essa questão para alcançarmos um resultado útil. E um pouco da culpa disso é dos meios de comunicação social, que prestam um desserviço, porque contaminam a opinião pública, que termina sendo a opinião publicada.

ConJur – A presunção de inocência é levada a sério no Brasil?
Fernando Santana –
Veja bem, existe como previsão constitucional, mas por conta desse consciente coletivo, o sujeito é condenado antes de ter sido julgado. Basta ter uma operação policial midiática que todas as pessoas envolvidas já estão condenadas. Ninguém espera ouvir o acusado, produzir as provas, ninguém espera a sentença. Basta o estardalhaço dos jornais e o sujeito já está com o estigma de uma condenação, pelo menos, social.

ConJur – O senhor criticou o vazamento de informações no processo da operação “lava jato”. Como avalia essas situações que têm ocorrido com frequência no Brasil? 
Fernando Santana –
Esses vazamentos são seletivos e são praticados por quem está no comando da operação e do processo.  Eles acabam atingindo a honra e a dignidade das pessoas.  Vimos, recentemente, operações policiais e processos judiciais da “lava jato” em que vieram a público conversas particulares entre uma mãe e as suas filhas, que não têm envolvimento com o caso. E essas conversas vazaram e foram publicadas na imprensa. Onde está o resguardo à individualidade das pessoas? Então, é processar, punir a qualquer custo e de qualquer modo? Os órgãos de repressão da criminalidade têm que ter cuidado no vazamento dessas informações, para não expor a honra, a dignidade e a vida das pessoas.

ConJur – Tramita hoje no Congresso Nacional um projeto de revisão do Código Penal. Essa legislação precisa de uma reforma?
Fernando Santana –
A revisão do Código Penal é importante, precisa ser feita, mas essa que está no Congresso Nacional vai tornar as coisas piores do que já estão hoje. Do ponto de vista conceitual, nós precisamos de uma revisão. Mas não a “toque de caixa”, sob o clamor e o calor da pressão midiática, que quer penas mais duras, redução da maioridade penal e aumentar o número de crimes. Isso é desvio. Essa proposta de código é muito mais punitivista. Esperava uma reforma em que o sistema, que já é alargado demais, fosse mais contido. Mas o projeto não vai nessa linha. Ele transforma em crime a atividade do cambista, por exemplo. Vamos acabar com a atividade do cambista através da criminalização daquela conduta?

ConJur – O que o senhor pensa sobre a codificação da legislação penal especial?
Fernando Santana –
É muito difícil fazer um Código de Direito Penal Especial. Muito difícil, porque a legislação especial cuida de determinados segmentos da atividade social, econômica, ecológica, tributária, financeira, e essas realidades são mutáveis, porque são fatos e fenômenos ligados à atividade econômica, de um modo geral, no mais diversos aspectos. Então, é muito difícil se ter uma legislação que seja inteiramente codificada. O melhor, talvez, fosse tirar da legislação codificada algo que é importante e deve existir, como previsão típica criminal, e trazer para o Código Penal. E não criar uma legislação penal especial, que já é um mundo que ninguém mais controla e domina. O Direito Penal foi concebido para resguardar o mínimo do mínimo ético, então deveria ser o mais contido possível. No Brasil, se alargou tanto que hoje tem Direito Penal para todo gosto.

ConJur – Há condutas precisam ser criminalizadas?
Fernando Santana –
Estamos precisando é descriminalizar condutas e deixar que elas sejam resolvidas em outro plano. Por exemplo, os crimes na relação de consumo são maluquice. Os conflitos e danos causados nas relações de consumo têm que ser resolvidos neste plano e não com uma providência de natureza criminal. Acho, por exemplo, que as infrações penais tributárias têm que ser resolvida no plano do Direito Tributário, com consequências de natureza civil, patrimonial, administrativa, porque hoje o Direito Penal tributário é um instrumento coativo de cobrança de imposto. Tanto que se o acusado pagar o imposto, ou parcelar a dívida, extingue-se a punibilidade ou a pretensão punitiva. Que crime é esse em que o acusado paga e acaba? Essa intervenção do Direito Penal em certas ordens sociais termina sendo injustificada.

ConJur – O que o senhor acha do pacote anticorrupção do Ministério Público?
Fernando Santana –
Garanto que a sociedade está aplaudindo. A sociedade acha que quanto pior, melhor. Mas esse pacote, que para mim é inconstitucional, traz previsões que atentam rigorosamente contra direitos e garantias fundamentais, previstos na Constituição. Querem flexibilizar até a presunção de inocência (ou a de não culpabilidade). Por este pacote, se houver uma condenação o réu iria para cadeia antes do trânsito em julgado da ação penal.

ConJur – Mas não se deveria reduzir o número de recursos?
Fernando Santana –
Isso já é outro problema. Se acharmos que o sistema processual penal está funcionando mal por causa de um retardo na legislação, devemos mudar a legislação, mas sem sacrificar o direito de defesa. O que não se pode é considerar a pessoa culpada logo quando há confirmação da condenação no segundo grau de jurisdição. E se ela for absolvida depois, quem vai restituir o dano causado?

ConJur – Uma das propostas dos pacotes é a tipificação do crime de enriquecimento ilícito. Qual a sua opinião?   
Fernando Santana – Não tenho nenhuma convicção formada sobre isso para dizer se é necessário ou não. Mas muitas vezes se propõem novos crimes quando essas mesmas condutas podem ser avaliadas e enfrentadas com normas penais já existentes, sem necessidade de inovações. Acho que, no caso do enriquecimento de agentes públicos, já se tem no sistema processual civil formas e meios adequados de se resolver este conflito. 

ConJur – O senhor acha que a OAB tem se posicionado de forma firme sobre esse pacote?
Fernando Santana –
Sim. O Conselho Federal tem se posicionado de forma pública contra esse pacote. Agora, o Ministério Público está em uma posição ativa, indo até procurar clubes de futebol e igrejas evangélicas para pedir adesão e assinatura da proposta, só falta ir ao Papa.

ConJur – O que o senhor pensa da atuação do Ministério Público atualmente?
Fernando Santana –
O Ministério Público é um órgão importantíssimo para as instituições democráticas. A função institucional principal do MP é a de ser titular da ação penal pública [no Direito Penal]. Mas ele também tem outra função, que é a de fiscal da lei. E fiscalizar a boa atuação, é garantir também os direitos do cidadão, do acusado. Mas, muitas vezes, os promotores e procuradores se esquecem que são também os guardiões dos direitos legais dos cidadãos. O Ministério Público se tomou de um ativismo enorme.

ConJur – O juiz brasileiro tem aplicado o Direito Penal do autor em vez do Direito Penal do fato?
Fernando Santana –
Depende muito do juiz. De forma genérica, há muito esse Direito Penal do Inimigo, uma ideia de “justiçamento”, transformando o outro em inimigo. Isso cria um sistema inoperante. O Direito Penal, que deveria ser mínimo, menos invasivo, acaba sendo máximo, em que tudo é crime. Por não se dar operacionalidade, cria-se a sensação de impunidade. O Direito Penal está reprimindo temas e lugares em que não deveria estar presente, deveria cuidar de outros assuntos.

ConJur – O senhor concorda com a crítica de que os juizados especiais criminais banalizam o Direito Penal?
Fernando Santana –
Em certos aspectos, sim. Há muita coisa que hoje chega aos juizados especiais criminais que no passado não chegava. Houve uma certa banalização das chamadas infrações de pequeno potencial ofensivo. Hoje, tudo o que vira uma ocorrência policial, por mais singelo que seja, termina indo para os juizados. Como os próprios conciliadores não têm muita capacidade de conter o conflito, isso gera processos judiciais.

ConJur – O senhor é a favor da ampliação do prazo de prescrição dos crimes?
Fernando Santana –
Aumentar o prazo para prescrever os crimes é dar um atestado de liberdade para o Estado continuar funcionando mal. É necessário que haja um tempo para o Estado atuar e aplicar a pena. Nós temos prazo de prescrição no Brasil, que é de 20 anos. Se não atuou em 20 anos para condenar alguém que cometeu um homicídio, vou deixar a pessoa com espada de Dâmocles sobre a cabeça para o resto da vida?

ConJur – O que pensa sobre essa nova legislação do Estatuto do Desarmamento?
Fernando Santana
– Sou, pessoalmente, contra a revisão da lei do Estatuto do Desarmamento.

ConJur – É mais difícil advogar hoje do que quando o senhor começou na carreira?
Fernando Santana – 
Muito mais, sobretudo na Bahia, pelas deficiências de funcionamento do Poder Judiciário, do ponto de vista institucional. E é mais difícil também advogar, nesses tempos históricos de crise, por uma cultura de desafeição ou desapreço que a comunidade criou em torno da figura do advogado criminal. Essa cultura vive influenciada por uma certa pressão dos meios de comunicação, que não sabem distinguir o papel fundamental do exercício do direito de defesa para regular o funcionamento da própria Justiça. Muitas vezes confundem a figura do advogado criminal com as pessoas que ele defende.

Quando essas coisas acontecem, há um desserviço à cidadania, porque nenhuma sociedade livre e democrática — em que as instituições atuem com pleno respeito às garantias individuais — sobrevive sem a plenitude do direito de defesa, porque esta não é uma garantia do advogado, é uma garantia do cidadão. Quando se respeita um advogado não é a sua pessoa que está sendo respeitada, é o cidadão que está sendo valorizado. Todo mundo tem direito a um julgamento justo e imparcial. Não para defender a culpa, nem para buscar impunidade, mas para que até a punição se faça com respeito aos direitos do cidadão.

ConJur – As universidades têm conseguido preparar os estudantes de Direito para esses desafios de advogar?
Fernando Santana – 
Não. Hoje há uma carência na formação do estudante de Direito por conta de uma terrível proliferação do ensino jurídico. E uma proliferação que muitas vezes não atende às próprias necessidades sociais do mercado. Tem formado tantos bacharéis em Direito que há um comprometimento do nível técnico dessa formação. E para se exercitar bem o direito de defesa não é preciso ter apenas uma boa formação técnica, mas uma grande dose de coragem, sobretudo, o advogado criminal. Ele está sempre fazendo a confrontação com o sistema de poder do Estado, através dos órgãos de repressão da criminalidade.

ConJur – O que o senhor propõe para melhorar esta formação?
Fernando Santana – 
A própria Ordem dos Advogados tem se empenhado muito em criar oportunidade de cursos de aperfeiçoamento e treinamento para o exercício da atividade profissional, exatamente para manter a reciclagem do advogado. Neste tempo atual, o grande problema do qual nos defrontamos é a necessidade de criar uma cultura de defesa das prerrogativas do advogado, que derivam da lei.

ConJur – O senhor defende a criminalização da violação da prerrogativa dos advogados?
Fernando Santana –
O Conselho Federal da OAB deu notícias de que tramitam no Congresso Nacional três projetos de lei que passam a punir, como crime, o desrespeito às prerrogativas dos advogados. Talvez não fosse necessária essa lei, mas para isso seria importante que todas as pessoas que instrumentalizam a atuação do Poder Judiciário e a polícia tivessem a consciência de que respeitar uma prerrogativa não é dar privilégio à pessoa do advogado, é garantir o direito do cidadão. A Constituição diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça e quem dá o fim tem que propiciar os meios — e os meios são as prerrogativas. Muitos estão longe de imaginar a quantidade de violações que acontecem no Brasil. Nesta atual gestão da OAB [da Bahia], foi criada a Procuradoria Nacional de Defesa das Prerrogativas, que recebeu 18 mil processos de violação.

ConJur – Que tipo de punição deve ter quem viola as prerrogativas?
Fernando Santana –
Por menos que eu goste, a sanção criminal. Pode-se até não punir com a pena privativa de liberdade, mas com medidas alternativas.

ConJur – Essas dificuldades para advogar têm criado um desinteresse dos estudantes de Direito pela advocacia privada?
Fernando Santana –
Hoje tenho visto mais o estudante “concurseiro”. É o aluno que entra na faculdade já pensando em concurso público, para qualquer coisa, porque não quer enfrentar os embates da advocacia. A advocacia privada reclama muita coragem, em qualquer área, porque há enfrentamento. No meu tempo, o aluno chegava à sala de aula já sabendo que queria ser advogado. A proletarização da advocacia é um dos elementos para esse desinteresse. No momento em que se entupiu o mercado de trabalho com um número enorme de advogados, gerou-se a proletarização da advocacia. Então, o aluno corre para concurso público, que é mais cômodo e tranquilo.

ConJur – O senhor integrou a comissão especial da OAB que analisou se caberia impeachment da presidente Dilma Rousseff. Na ocasião, votou contra o impedimento. O senhor vê alguma razão para o impeachment?
Fernando Santana –
A meu juízo, nenhuma. Foi uma comissão da qual participei com cinco membros. Destes, três se manifestaram contra. Só tem argumentos políticos neste pedido de impeachment. Essa situação de agora é completamente diferente da época de Collor. Ninguém diz que a presidente da República se apropriou de bens do Estado.Nem que ela foi beneficiária de favores do Estado. Pode-se dizer que há má gestão, mau governo, há uma frustração política e social, mas isso não se resolve com impeachment. Nos Estados Unidos, se resolveria com o sistema de recall.

ConJur – A implantação do recall eleitoral seria interessante, então, para o país?
Fernando Santana –
Sim. No projeto de reforma política da OAB, isso está previsto.

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