Conspiração para fraude

Tribunal nos EUA vê exceção ao privilégio de confidencialidade advogado-cliente

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12 de dezembro de 2015, 11h01

Um tribunal de recursos de Massachusetts decidiu, nesta semana, que o privilégio de confidencialidade entre o advogado e seu cliente não se aplica no caso de empresário que fraudou um órgão público, (supostamente) com a orientação de um escritório de advocacia.

Existe uma previsão na lei, chamada “exceção para cometer crime ou fraude”, que extingue tal privilégio, se for suficientemente comprovado que houve uma conspiração entre o cliente e o advogado para cometer crime ou fraude.

O empresário David Gorski fundou uma empresa de construção em janeiro de 2006, a Legion Construction, colocando como sócio majoritário e presidente da construtora um “laranja” muito conveniente para seus planos de fraudar o governo: um veterano de guerra inválido.

Ele criou uma “pequena empresa de propriedade de veterano inválido para o serviço [militar]”, uma SDVOSB (Service-Disabled Veteran Owned Small Business), qualificada para obter contratos do governo. Por lei, pelo menos 3% de todos os contratos governamentais devem ser destinados a SDVOSBs. E isso significa muito dinheiro.

Segundo a decisão, o esquema funcionou desde a fundação da empresa até novembro de 2010. E Gorsky, que era vice-presidente e efetivamente tocava a empresa, não era nem veterano nem inválido.

No entretempo, mais exatamente em 8 de fevereiro de 2010, houve uma mudança na lei. Até então, o veterano inválido podia passar apenas parte do dia na empresa. E a única comprovação de que era ele quem geria o negócio e de que trabalhava por um tempo razoável era satisfeita por uma declaração da própria empresa.

A nova lei estabeleceu que, para a empresa ter direito aos contratos governamentais, o veterano inválido teria de trabalhar em tempo integral e controlar todas as suas operações. E a fiscalização passou a ser feita de maneira formal por uma entidade governamental de fiscalização, não mais por declaração da própria empresa.

Nessa altura, Gorsky havia feito uma reestruturação da empresa e o veterano A, que era proprietário de 55% da empresa, passou a ser proprietário de apenas 11% (sem receber nada pela perda de propriedade). Entrou na história o veterano B, também inválido, com 40%. E Gorsky se atribuiu a propriedade de 49% da empresa.

Os dois veteranos assinaram contratos que atribuíram ao empresário o poder de demiti-los por justa causa. E colocou sua mulher na folha de pagamentos, apesar de ela ter um outro emprego em tempo integral.

Foi uma reestruturação que se tornou incompatível com a nova lei, aprovada em fevereiro de 2010. O empresário contratou, então, a banca Mintz, Levin, Cohn, Ferris, Glovsky and Popeo, mais conhecida como Mintz Levin, para adequar a estrutura da construtora à nova lei, de forma que a construtora continuasse a obter contratos do governo — obviamente, de forma fraudulenta.

A Mintz Levin fez uma operação simples: transferiu os 11% do veterano A para o veterano B, que passou então a ter 51% na propriedade da empresa. Gorsky continuou com seus 49%. A operação foi fechada em 23 de março de 2010, mas a data colocada nos documentos foi a de 1º de fevereiro — ou seja, alguns dias antes da data de aprovação da nova lei.

Para isso, teve muitas comunicações com o cliente, produziu muita documentação e prestou serviços jurídicos à empresa.

Em 8 de março de 2010, um concorrente da Legion, que havia perdido uma concorrência, denunciou a estrutura fraudulenta da construtora de Gorsky à Administração das Pequenas Empresas (SBA – Small Business Administration) dos EUA.

A Mintz Levin, que preparou todos os documentos da restruturação da empresa com data falsa, também preparou documentos para defender a Legion na SBA. Entre os documentos, havia uma declaração juramentada da banca, dizendo que toda a operação fora concluída em 1º de fevereiro — o que, mais tarde, se comprovou ser uma declaração falsa.

Em outubro de 2012, Gorski foi denunciado por um grand jury, com uma acusação de conspiração para fraudar os Estados Unidos e quatro acusações de fraudes eletrônicas.

Em julho de 2014, a Promotoria intimou a Legion e a Mintz Levin a apresentar uma série de documentos, relacionados à propriedade da empresa desde sua fundação e a qualificação da construtora como SDVOSB, para receber contratos do governo, entre outros.

A Mintz Levin e a Legion se negaram a produzir alguns dos documentos essenciais, alegando que eles faziam parte das comunicações garantidas pelo privilégio de confidencialidade entre o advogado e seu cliente. Isso disparou um processo separado, o que foi julgado pelo tribunal de recursos em Massachusetts.

A questão principal do processo era se a “exceção para cometer fraude ou crime” se aplica a esse caso, o que extinguiria o privilégio advogado-cliente e, por consequência, obrigaria a banca e a empresa a entregar todos os documentos solicitados pela Promotoria.

Em primeira instância, o juiz decidiu que o indiciamento de Gorski pelo grand jury produziu provas conclusivas de que o empresário cometeu um crime ou fraude. E “bases razoáveis” para se acreditar que ele usou os serviços de seus advogados para, nos termos da lei, “promover crime ou fraude”. Para o juiz, há razões para se acreditar que Gorsky usou os serviços da banca para “perpetuar um esquema de fraude”.

Um painel de três juízes do tribunal de recursos decidiu que o juiz de primeiro grau concluiu corretamente que há bases razoáveis para se acreditar que as comunicações advogado-cliente “tinham a pretensão de facilitar ou dissimular a atividade criminosa ou fraudulenta”.

“Também é razoável inferir que a Mintz Levin foi contratada com a intenção de criar uma aparente compliance com a nova legislação, de forma que Gorsky pudesse continuar com o esquema em andamento, para reter a propriedade e o controle da empresa”, escreveram os juízes.

“Assim, há uma base razoável para se concluir que houve uma concordância total entre tudo que a Mintz Levin fez e o propósito fraudulento de Gorsky, o que dispara a “exceção para cometer crime ou fraude”.

Nos Estados Unidos, para examinar se as comunicações entre o advogado e o cliente ou mesmo o produto do trabalho do advogado estão protegidos pelo privilégio advogado-cliente, a questão tem de ser vista sob a ótica do tempo: crimes ou fraudes cometidas no passado versus as que podem estar em andamento e ou serão cometidas no futuro.

As comunicações e o trabalho do advogado que se relacionam a “crimes ou fraudes” que já aconteceram são definitivamente protegidas pelo privilégio advogado-cliente. Porém, no caso de “crimes ou fraudes” que estão em andamento ou que o cliente planeja cometer no futuro, as comunicações e o trabalho dificilmente são protegidos por esse privilégio.

Em um processo para discutir essa questão, o juiz irá examinar se há razões suficientes para se acreditar que o advogado orientou o cliente, para que ele cometa o “crime ou fraude” ou se ele sabia que isso estava acontecendo ou poderia acontecer.

Porém, há situações em que o advogado tem de presumir que, se o cliente está pedindo uma determinada orientação, é porque ele pretende cometer um “crime ou fraude”. Se for comprovado que o cliente fez isso depois de ser orientado pelo advogado, a “exceção para cometer crime ou fraude” pode ser disparada.

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