Olhar Econômico

Direito Canônico é aplicável no Brasil, por força de tratado ou de regras conflituais

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

10 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
Os tratados internacionais são acordos entre pessoas jurídicas de direito internacional, que detêm o poder de concluí-los (jus tractuum), versando sobre qualquer assunto lícito e regidos pelo Direito Internacional Público. O poder de concluir tratados é apanágio dos Estados e de algumas outras pessoas jurídicas de direito internacional. A mais singular dessas pessoas é a Santa Sé. Em finais dos anos 700, passaram a ser reconhecidos territórios sob o domínio do Papa, que se tornou Estado de importância sob a soberania temporal do Pontífice Romano.

Essa soberania territorial foi interrompida, quando os estados pontifícios foram incorporados ao Reino da Itália, a partir da unificação italiana, em 1870. A Santa Sé somente viria a recobrar território e soberania temporal, a partir do Tratado de Latrão, de 1929, entre ela e a Itália, que criou a Cidade-Estado do Vaticano. Entretanto, mesmo nas décadas em que esteve privada de poder temporal, a personalidade internacional da Santa Sé não se extinguiu, tendo continuado a exercer direitos estatais, como, por exemplo, o delegação (enviar e receber embaixadores) e concluir tratados. Esse fato mostra a importância do costume e do princípio da efetividade no direito internacional. Na realidade, em uma só pessoa coexiste duas personalidades internacionais: a Santa Sé, que sobreviveu à perda de seus territórios em 1870; e a Cidade-Estado do Vaticano, criada, em 1929. Na atualidade a diplomacia pontifícia é presente no cenário internacional, sendo ator sui generis, mas de grande relevo.

Variegada é a nomenclatura dos tratados: convenção, pacto, carta, modus vivendi etc. Normalmente o nome não explicita grandemente o conteúdo do tratado, sendo utilizada, no mais das vezes, intercambiavelmente. Há um nome, entretanto, que é específico: concordata: tratado feito com a Santa Sé, geralmente sobre tema religioso.

O Brasil império, cuja religião oficial era a católica, possuía laços efetivos com a Santa Sé, a ponto de ter exercido o padroado. Com a República, decreto de 1890 separou a Igreja do Estado, tornando-se mais rarefeito o relacionamento do Brasil com a Santa Sé. Dos poucos acordos concluídos desde então, o mais recente foi o Tratado entre Santa Sé e Brasil, de 2008, que, após ratificado, promulgado e publicado, tornou-se executório no país. Esse tratado não ostenta o nome concordata e é da espécie tratado bilateral. Os tratados quando surgiram na remota antiguidade eram concluídos entre dois senhores territoriais e tinham por objeto regular assuntos de interesse entre eles. Somente muitos séculos depois, apareceria a espécie tratado multilateral. jungindo vários Estados e criando regras internacionais uniformes.  

Em primeiro lugar, o tratado sob exame demonstra que, inobstante a relevância do tratado multilateral em um mundo globalizado, o tratado bilateral não perdeu sua importância, justamente por ser meio apropriado para desenvolver a diplomacia bilateral entre os mais de duzentos Estados e assemelhados hoje existentes. Por intermédio do bilateral, os Estados podem criar obrigações novas entre si ou apenas reestruturar e dar contornos para obrigações já existentes entre eles.

Como todo acordo, o tratado em tela possui duas partes: o preâmbulo e o articulado. O primeiro sem valor legal, mas útil para orientar o trabalho hermenêutico. No articulado estão as regras jurídicas pactuadas, que deverão, por força do vetusto princípio pacta sunt servanda (os acordos devem ser observados), ser cumpridas de boa fé.

Longe de ser repositório de privilégios para a religião católica, o Acordo entre Brasil e Santa Sé não consagra exclusividades, podendo mesmo dizer-se que abre possibilidade para que outras religiões possam conseguir prerrogativas semelhantes. Muito do que é assegurado pelo tratado advém de convenções internacionais que beneficiam igualmente outras pessoas jurídicas, como, exemplificativamente, os privilégios e imunidades para o núncio papal no Brasil e para o Embaixador brasileiro junto à Santa Sé (artigo 1º), que vigoram param todos os países reconhecidos, desde tempos imemoriais em razão de costume internacional e, desde 1961, por força da Convenção de Viena Sobre Relações Diplomáticas.

Reitera-se, praticamente, direitos anteriormente aceitos, por lei, costume ou praxes assentes (alguns extensíveis a outras instituições): possibilidade para desempenhar sua missão religiosa e espiritual (artigos 2º e 8 º); reafirmação da personalidade da Igreja Católica e das instituições eclesiásticas (artigo 3º); garantia da Santa Sé de não dependência externa de circunscrição eclesiástica brasileira (artigo 4º); reconhecimento das pessoas jurídicas católicas de assistência social (artigo 5º); cooperação e salvaguarda do patrimônio histórico, artístico e cultural e da Igreja, quando sejam reconhecidos como parte do patrimônio brasileiro (art. 6º); permissão de acesso ao patrimônio cultural da Igreja (artigo 6º, parágrafo 1º); proteção dos lugares de culto e símbolos, contra violação, desrespeito e uso ilegítimo (artigo 7º); reconhecimento mútuo das escolas e seminários, graus e títulos, observadas as leis (artigos 9º e 10, parágrafos 1º e 2º);  permanência das instituições de ensino religioso a serviço da sociedade (artigo 10º); assistência espiritual aos fiéis hospitalizados ou detidos (artigo 8º); efeitos civis para casamentos religiosos, possibilitando a homologação de sentença em matéria matrimonial (artigo 12); garantia do segredo do ofício sacerdotal (artigo 13); empenho na destinação de espaços para templos em novas urbanizações (artigo 14); imunidade tributária para patrimônio, renda e serviços relacionados com suas finalidades (artigo 15); declaração que, inexistindo desvirtuamento, não há vínculo trabalhista no relacionamento entre ministros ordenados e fieis consagrados etc., além da possibilidade de serviço voluntário (artigo 16); e possibilidade de bispos convidarem sacerdotes etc. estrangeiros para trabalhar no Brasil e solicitarem vistos brasileiros em nome deles (artigo 17).

A maior polêmica relativa ao tratado cifrou-se no dispositivo sobre o ensino religioso, muito embora a simples leitura do artigo 11 demonstre que o burburinho era infundado. Houve extrema cautela das partes contratantes: referência à liberdade religiosa, à diversidade cultural e à pluralidade confessional no caput, para somente no parágrafo 1º estabelecer a possibilidade da matrícula facultativa em disciplina de ensino religioso católico, no horário normal das escolas públicas de ensino fundamental, desde que assegurada diversidade religiosa, conformidade com a Constituição e leis e ausência de discriminação. Talvez não haja outro artigo de lei no ordenamento jurídico brasileiro, com tantas ressalvas!

A Santa Sé e o Brasil são duas pessoas de direito internacional detentoras de soberania, possuindo, portanto seu próprio ordenamento jurídico: a primeira o direito canônico e o segundo o direito brasileiro. Ambas ordens jurídicas de grande tradição e importância. O canônico, direito antigo que, haurindo do Direito Romano, criou, durante a Idade Média, um corpo jurídico, de que derivou grande parte do direito ocidental. O brasileiro, que herdou a influência germânica e francesa, que produzira importante corrente jurídica: o direito continental.

Normalmente, nos artigos do tratado em que o Brasil assume obrigações, há observações: “desde que não contrariem o direito constitucional e as leis brasileiras” (artigo 3º); “nos termos da legislação brasileira” (artigo 3º, parágrafo 2º); “previstas no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira” (artigo 5º); “nos termos de seu ordenamento jurídico” (artigo 7º); “nos termos da constituição brasileira” (artigo 7º parágrafo 1º); “observadas as exigências da lei” (artigo 8º); “em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação” (artigo 11 parágrafo 1º); “que atender também as exigências estabelecidas pelo direito brasileiro” (artigo 12); “nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentença estrangeira” (artigo 12, parágrafo 1º); “em conformidade com a constituição brasileira” (artigo 15º); e “observado o disposto na legislação trabalhista brasileira”  (artigo 16).

Quando as obrigações são recíprocas, as ressalvas tomam a seguinte forma: “às exigências dos ordenamentos jurídicos brasileiro e da Santa Sé” (artigo 9º) e “em conformidade com seus fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro” (artigo 10).

O exame detido da linguagem do tratado e das ressalvas mostra que a mens da Santa Sé e do Brasil, ao concluir o Tratado, foi organizar e regular suas relações, com base cada qual em seu próprio direito, não criando praticamente direito novo (o que teria sido possível por meio de tratado). O resultado ficou muito próximo a uma codificação de normas já existentes.

Com referência às pessoas jurídicas canônicas, o tratado, primeiramente, reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica (artigo 3º). Obviamente trata-se de mera reafirmação, pois a Santa Sé é personalidade jurídica de direito internacional público, mais antiga que Portugal e Brasil, tendo sido sempre reconhecida, por ambos os países. Dessa personalidade decorre o reconhecimento que as instituições eclesiásticas possuem personalidade, conforme o direito canônico, ou seja, pelo ordenamento jurídico da própria Igreja, podendo criar, modificar e extinguir as referidas instituições eclesiásticas (artigo 3º parágrafo 1º). Para tal reconhecimento, fixa-se a necessidade de inscrição em registro e averbação das respectivas alterações (artigo 3º, parágrafo 2º).

O tratado em estudo nada acrescentou ao reconhecimento das pessoas eclesiásticas, que não fosse existente desde os primórdios do ordenamento jurídico brasileiro e reconhecido, a todas as pessoas jurídicas de direito estrangeiro.

Como os ordenamentos jurídicos dos Estados e pessoas assemelhadas são soberanos, estanques e não têm necessidade de ser coerentes entre si, a rigor, pessoa jurídica estabelecida segundo um direito teria validade unicamente dentro de suas próprias fronteiras. O Brasil, desde suas origens, entretanto, filiou-se à tendência dominante que reconhece personalidade em nosso país, às pessoas jurídicas estabelecidas segundo ordenamento estrangeiro (o que inclui o direito canônico). Elas seriam consideradas como tendo, em princípio, personalidade também no Brasil.

Para finalizar, o tratado entre Santa Sé e Brasil teria criado alguma possibilidade de aplicação do direito canônico a atos ou fatos que ocorrem no Brasil ou a pessoas jurídicas brasileiras? Da leitura e da exegese dos dispositivos do tratado, isso não acontece, pois além de inexistir regras nesse sentido, como se viu acima, o tratado é pontilhado por  observações preservando o Direito Brasileiro. Entretanto, o Direito Canônico, da mesma maneira que os demais direitos estrangeiros, pode ser aplicado no Brasil, caso seja competente segundo as normas brasileiras de direito internacional privado, também conhecidas como normas conflituais, que indicam as leis da nacionalidade, do domicílio etc. , desde que não haja razão legal (ordem pública, fraude à lei etc.) para se afastar a aplicação dessas normas estrangeiras.

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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