Constituição violada

Publicação reúne críticas de criminalistas a medidas anticorrupção do MPF

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9 de dezembro de 2015, 18h21

Antes de o processo de impeachment de Dilma Rousseff ser deflagrado, o noticiário no Brasil tinha a operação “lava jato” como dona do posto de assunto mais comentado. O combate à corrupção passou a ser quase um mantra e o Ministério Público Federal se apressou em apresentar à população uma proposta de dez medidas para, segundo o órgão,  combater os atos ilícitos de agentes públicos. Uma pesquisa do Datafolha, inclusive, diz que pela primeira vez a corrupção foi apontada pela população como sua maior preocupação.

A apresentação das 10 Medidas Contra a Corrupção foi tema de uma longa reportagem no programa Fantástico, da Rede Globo, com entrevistas com os procuradores. A posição de protagonista ficou para Deltan Dallagnol (“seguidor de Jesus, marido e pai apaixonado, procurador da República por vocação e mestre em Direito por Harvard”, segundo sua biografia no Twitter).

O conjunto de medidas, segundo o MPF, já recebeu mais de 908 mil assinaturas de apoio até esta quarta-feira (9/12), mas especialistas na área apontam risco nesse apoio incondicional ao projeto. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) dedicou toda a edição de dezembro de seu boletim para analisar e apontar violações legais e muitas vezes constitucionais presentes nas propostas .

O texto original falava expressamente em incluir o “aproveitamento de prova ilícita” no artigo 157 do Código de Processo Penal. O MPF recuou e mudou a redação depois que a revista Consultor Jurídico apontou a ideia.

Flagrante forjado
A primeira proposta do MPF propõe que o Brasil passe a usar o flagrante forjado. Nas palavras exatas: simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública.

Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, professor de Direito Processual Penal, a proposta soa “absurda”, é “imoral”, “inconstitucional e ilegal”. Ele ressalta que o Estado Moderno se fundou na presunção de que o cidadão é honesto e inocente até que se prove o contrário. Segundo ele, um país que aprove o flagra forjado está indo “no caminho da barbárie”, conforme escreveu em seu artigo.

O tema foi também abordado pelo juiz federal Flavio Antônio da Cruz: “Ao empregar o aludido teste, o Estado acaba por deitar por terra um compromisso importantíssimo das democracias liberais: a crença de que o sistema de Justiça criminal está destinado a garantir que nenhum inocente seja punido. A culpa deve ser aferida pela efetiva prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, ilícita e culpável, apurada sob devido processo.”

Inversão do ônus
Outra proposta do MPF é punir criminalmente servidores públicos que enriquecerem de forma não compatível com os ganhos do cargo e não conseguirem provar que o dinheiro veio de meio lícito. Para os procuradores não é necessário provar a origem criminosa dos valores; não provar que tem fonte legal basta. “Com base na experiência comum por todos compartilhada, se a acusação prova a existência de renda discrepante da fortuna acumulada e, além disso, nem uma investigação cuidadosa nem o investigado apontam a existência provável de fontes lícitas, pode-se concluir que se trata de renda ilícita”, estabelece a proposta.

A medida foi criticada por Luís Greco, professor de Direito Penal: “A proposta do MPF de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada. Ela se baseia em considerações policialescas de facilitação da prova, incompatíveis com a ideia de culpabilidade e a presunção de inocência, e que, ainda por cima, parecem ser de duvidosa eficácia”. E ele conclui ressaltando que a proposta não deve ser aprovada automaticamente por ser apoiada por grande parte da população: “Coletar assinaturas não tornam desnecessários argumentos”.

Sem trânsito em julgado
Outra proposta é a reforma no processo criminal, visando limitar a possibilidade da defesa utilizar recursos. O MPF também quer que a pena passe a ser cumprida antes de decisão da última instância: “É proposta emenda constitucional para autorizar a execução provisória da decisão penal condenatória após julgamento de mérito por tribunal de apelação, ainda que pendam recursos especial e extraordinário”.

Aury Lopes Junior, doutor em Direito Penal, foi duro ao analisar essas medidas em seu artigo para o IBCCrim. Classifica a medida como "oportunista e de efeito sedante da opinião pública" e afirma que as regras seriam danosas para a população pobre.

“Se o problema é a demora nos julgamentos, a solução constitucionalmente orientada é melhorar as condições da administração da Justiça e não limitar os acessos democraticamente construídos para se chegar até ela. A (de)mora deve ser combatida com 'mais jurisdição' e não com 'menos acesso à jurisdição'. Do contrário, que se rasgue a Constituição de uma vez por todas e desistamos do projeto democrático”, escreveu Lopes Junior.

Extensão da preventiva
Sobre a proposta de aumentar as hipóteses de prisão preventiva para incluir encarceramento que tem por objetivo fazer com que o acusado devolva produto de um crime, trata-se de um “retrocesso civilizatório”. A opinião é de Rubens Casara, coordenador de Processo Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, que apresentou uma argumentação filosófica em sua conclusão.

“Se o ser humano é um fim em si mesmo e nunca pode ser instrumentalizado, a liberdade é um valor e direito único, que compete a todo indivíduo pelo simples fato de sua humanidade. A liberdade não pode ser afastada em desacordo com o projeto constitucional de vida digna para todos, mesmo que a pretexto de combater a corrupção, caso contrário ter-se-ia a corrupção do sistema de garantias fundamentais”. 

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