Estado da Economia

Propriedade que descumpre função social não tem proteção constitucional

Autor

  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

6 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição

Uma das grandes questões trazidas pelo debate sobre a função social da propriedade está ligada à possibilidade de um instituto jurídico, sem que haja qualquer modificação da lei, mudar a própria natureza econômica. Houve inegavelmente uma mudança do substrato da propriedade, apesar das normas civis não terem se modificado, ao contrário, pois os códigos civis definem propriedade com o conceito liberal ainda hoje. O instituto jurídico da propriedade teve um rico desenvolvimento em um tempo relativamente curto, ocorrendo uma total mudança econômica e social sem que houvesse mudado consideravelmente sua definição jurídico-legislativa, ao menos sob o ângulo do direito civil[1]. Podemos perceber, assim, uma dupla possibilidade de evolução jurídica: a mudança da norma e a mudança da função. Para Karl Renner, a ciência jurídica deve estudar no presente de que modo isso ocorre, de que modo um condiciona o outro, com que regularidade ocorre.

O fato é que aos institutos jurídicos de uma época cabe cumprir funções gerais. Se considerarmos absolutamente todos os efeitos que um instituto jurídico exercita sobre a sociedade em seu complexo, as funções particulares se fundem numa única função social. Dessa maneira, podemos concluir, ainda de acordo com Karl Renner, que o direito é um todo articulado, determinado pelas exigências da sociedade, cujo ordenamento é dotado de caráter orgânico. Os institutos jurídicos, enquanto parte do todo, estão, por esse motivo, em uma relação de conexão mais ou menos estreita uns com os outros. Tais conexões não se travam apenas no complexo normativo, mas também em uma função. A natureza orgânica do ordenamento jurídico, assim, demonstra que todos os institutos do direito privado estão em conexão com o direito público, sendo que não podem ser eficazes e não podem ser compreendidos sem considerações de direito público. A propriedade é ineficaz sem o ordenamento jurídico à sua volta, sendo conformada pelas disposições de direito público[2].

Quando se fala em função social, não se está fazendo referência às limitações negativas do direito de propriedade, que atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua substância. As transformações pelas quais passou o instituto da propriedade não se restringem ao esvaziamento dos poderes do proprietário ou à redução do volume do direito de propriedade, de acordo com as limitações legais. Se fosse assim, o conteúdo do direito de propriedade não teria sido alterado, passando a função social a ser apenas mais uma limitação. A mudança ocorrida foi de mentalidade, deixando o exercício do direito de propriedade de ser absoluto. A função social é mais do que uma limitação. Trata-se de uma concepção que se consubstancia no fundamento, razão e justificação da propriedade.

A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A função social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a. A função é o poder de dar à propriedade determinado destino, de vinculá-la a um objetivo. O qualificativo social indica que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo, não ao interesse do proprietário. A função social corresponde, para Fábio Konder Comparato, a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica. Desta maneira, há um condicionamento do poder a uma finalidade. A função social da propriedade impõe ao proprietário o dever de exercê-la, atuando como fonte de comportamentos positivos[3].

O artigo 186 da Constituição da República[4] especificou o sentido constitucionalmente conferido ao princípio da função social da propriedade, já previsto nos artigos 5º, XXIII e 170, III, dotando-o de conteúdo positivo mais preciso. A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição.

A utilização adequada dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e a observância da legislação trabalhista são, portanto, requisitos essenciais para o cumprimento da função social da propriedade. Nem poderia ser diferente, pois a valorização do trabalho humano é fundamento da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput) e a defesa do meio ambiente é também princípio desta mesma ordem econômica (artigo 170, VI). A Constituição nada mais faz no artigo 186 que projetar espacialmente os fundamentos e princípios da ordem econômica na regulação da propriedade rural.

Deste modo, a função social da propriedade rural está vinculada à tutela do meio-ambiente, prevista também no artigo 225 da Constituição. Caso a propriedade seja explorada em detrimento da preservação do meio-ambiente, estará sendo utilizada em prejuízo de toda a sociedade, o que é constitucionalmente inadmissível.

No tocante ao respeito à legislação trabalhista, devo ressaltar a importância da valorização do trabalho humano, como corolário da dignidade da pessoa humana, como fundamento da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput) e do valor social do trabalho como fundamento da República (artigo 1º, IV). A República Federativa do Brasil está fundada, entre outros, na dignidade da pessoa humana e no valor social do trabalho. A proteção constitucional da propriedade só pode se realizar enquanto respeitadora e garantidora destes fundamentos.

Propriedade na qual não se respeita a legislação trabalhista, ou na qual se atenta, na exploração da mão de obra, contra a dignidade da pessoa humana, como no caso da propriedade rural em que se emprega o inadmissível trabalho escravo, não tem proteção constitucional, pois não cumpre com sua função social. Não fosse suficiente o disposto no artigo 186, o artigo 243 da Constituição de 1988[5] reforça ainda mais o objetivo de combater todas as formas de exploração do trabalho análogas à escravidão no meio rural no Brasil.

A observância dos requisitos do artigo 186 da Constituição, portanto, é essencial para que a propriedade rural cumpra sua função social e que tenha direito à proteção constitucional. Estes requisitos, como prescreve o próprio texto constitucional, devem ser observados simultaneamente, não parcialmente, para configurar a realização do preceito constitucional da função social da propriedade rural. Deste modo, o imóvel rural que desrespeita a legislação ambiental e trabalhista, de acordo com o disposto no artigo 186, II, III e IV da Constituição da República de 1988, não cumpre sua função social, sendo passível de desapropriação para fins de reforma agrária, nos termos do artigo 184.

Em relação à propriedade produtiva, prevista no artigo 185, II[6] da Constituição, a discussão é mais complexa. José Afonso da Silva, por exemplo, entende que a Constituição garante um tratamento especial para a propriedade produtiva, estabelecendo uma proibição absoluta de desapropriação para fins de reforma agrária[7].

Discordo deste posicionamento do ilustre constitucionalista. O próprio conceito de “propriedade produtiva” da Constituição de 1988 não é puramente econômico. A produtividade protegida pelo texto constitucional não é apenas a produtividade econômica, mas esta no que significa de socialmente útil, no que contribui para a coletividade, em suma, no que efetivamente cumpre de sua função social.

Analisando o texto constitucional anterior, Celso Antônio Bandeira de Mello já destacava que a função social da propriedade não comporta apenas conteúdo econômico, associado exclusivamente à produtividade, mas tem seu conteúdo vinculado a objetivos de justiça social, buscando uma maior igualdade material e a ampliação das oportunidades para todos[8]. Se a Carta de 1969 tinha esta interpretação, com muito mais razão deve-se entender o aproveitamento racional e adequado, previsto no artigo 186, I da Constituição de 1988, como produtividade e utilidade social.

A função social da propriedade, cujo conteúdo essencial está determinado pelo artigo 186, deve ser observada por todos os tipos de propriedade de bens de produção[9] garantidos pela Constituição de 1988. Não há propriedade, enquanto bem de produção, que escape ao pressuposto da função social, nem mesmo a propriedade produtiva do artigo 185, II. Afinal, a própria Constituição de 1988 determina que a propriedade produtiva deve cumprir sua função social, ao determinar a função social da propriedade como um dos princípios da ordem econômica (artigo 170, III) e, ao prever, no parágrafo único do mesmo artigo 185, que a lei deverá fixar normas para o cumprimento dos requisitos relativos à função social da propriedade produtiva. E estas normas não podem, de forma alguma, contrariar o disposto no artigo 186 da mesma Constituição.

Não basta, portanto, que a terra seja produtiva para ser garantida constitucionalmente. A propriedade, mesmo produtiva, tem que cumprir sua função social. A propriedade rural está garantida constitucionalmente contra a desapropriação para fins de reforma agrária se for produtiva e cumprir sua função social. A produtividade é apenas um dos requisitos da garantia constitucional da propriedade. A propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação por cumprir as exigências constitucionais, ou seja, desde que cumpra sua função social.

Pode-se afirmar que nem toda propriedade privada constitui um direito fundamental garantido pela Constituição. A função social da propriedade consiste no dever fundamental de o proprietário dar à propriedade privada uma destinação social adequada constitucionalmente, ou, nas palavras de Fábio Konder Comparato, consiste em um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica[10]. A propriedade que não cumpre sua função social não se justifica, portanto, não é passível de proteção constitucional.


[1] Cf. Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion: Ein Beitrag zur Kritik des Bürgerlichen Rechts, Stuttgart, Gustav Fischer Verlag, 1965, pp. 46-47, 73-81, 172-174 e 202-204.
[2] Vide Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion cit., pp. 68-71.
[3] Vide, por todos, Fábio Konder COMPARATO, “Função Social da Propriedade dos Bens de Produção”, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro nº 63, julho/setembro de 1986, pp. 75-76 e Orlando GOMES, “A Função Social da Propriedade”, Boletim da Faculdade de Direito: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. A. Ferrer-Correia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1989, pp. 424-426 e 431-432.
[4] Artigo 186 da Constituição de 1988: “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
[5] Artigo 243 da Constituição (redação alterada pela Emenda Constitucional nº 81, de 05 de junho de 2014): “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”.
[6] Artigo 185 da Constituição de 1988: “São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II – a propriedade produtiva. Parágrafo único – A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”.
[7] José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª ed, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 794. Esta argumentação é reproduzida literalmente no recente comentário à Constituição publicado por este autor. Vide José Afonso da SILVA, Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 747.
[8] Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, “Novos Aspectos da Função Social da Propriedade no Direito Público”, Revista de Direito Público nº 84, outubro/dezembro de 1987, pp. 43-45.
[9] Para a distinção entre bens de consumo e bens de produção, vide Fábio Konder COMPARATO, “Função Social da Propriedade dos Bens de Produção” cit., pp. 72-73 e 75-76.
[10] Fábio Konder COMPARATO, “Função Social da Propriedade dos Bens de Produção” cit., pp. 75-76 e 79 e Fábio Konder COMPARATO, “Direitos e Deveres Fundamentais Em Matéria de Propriedade” in Alberto do AMARAL Junior & Cláudia PERRONE-MOISÉS (orgs.), O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, São Paulo, EDUSP, 1999, pp. 382-383.

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