Opinião

Entendimento do Supremo sobre presunção de inocência é equivocado

Autor

  • Rômulo Moreira

    é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

5 de dezembro de 2015, 6h06

O ministro Luís Roberto Barroso, acolhendo pedido do Ministério Público Federal, determinou a regressão do regime de cumprimento de pena de um ex-deputado federal que havia sido condenado na Ação Penal 470, o chamado mensalão. A decisão de determinar a regressão ao regime fechado foi tomada pelo ministro diante da prática de suposto crime doloso pelo sentenciado (já que não houve ainda sentença transitada em julgado), no curso da execução penal.

O ex-parlamentar foi condenado pela Justiça Federal à pena 20 anos e 7 meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro investigados na operação “lava jato”.

Na primeira ação penal (mensalão), ele foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal a uma pena de 7 anos e 2 meses de reclusão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em regime inicial semiaberto.

No pedido feito na Execução Penal 16 (referente ao mensalão), o Ministério Público Federal explicou que o requerido foi denunciado no âmbito da “lava jato” por condutas delituosas praticadas até março de 2014. Assim, com base no artigo 118, I, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), tendo em vista a prática de fato definido como crime doloso no curso de execução penal, o Ministério Público pediu a regressão de regime.

Em sua (equivocada) decisão, o ministro explicou que o ex-parlamentar começou a cumprir, em dezembro de 2013, a pena imposta pelo Supremo Tribunal Federal e teve posteriormente prisão preventiva decretada pelo Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, em decorrência de crimes supostamente cometidos entre 2010 e 2014. A nova condenação ocorreu em outubro deste ano.

Em razão dessas circunstâncias, o ministro afirmou que “a jurisprudência do Supremo consolidou o entendimento de que a regressão de regime pela prática de fato definido como crime doloso, durante a execução da pena, não depende do trânsito em julgado da condenação", decretando, outrossim, a perda de um sexto dos dias remidos, além de revogar os benefícios do trabalho externo e da saída temporária.

Tudo errado!!!

Claro que o artigo 118, I, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) estabelece que a execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva quando o "reeducando" (como se isso fosse possível em sede de execução penal no Brasil) praticar fato definido como crime doloso. Obviamente que esse artigo, interpretado à luz da Constituição Federal e, especialmente, confrontado com o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII), deve ser interpretado da seguinte maneira: o fato definido como crime doloso deve estar certificado por uma decisão judicial não mais sujeita a recurso, ou seja, o fato deve estar definitivamente provado, ao menos do ponto de vista processual.

Não se pode pretender que, antes de uma sentença transitada em julgado, alguém seja onerado por causa da suposta prática de um crime, pois, do contrário, fere-se o referido princípio da presunção de inocência, bem explicitado por Aury Lopes Jr., como “um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção protetora do indivíduo, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável, pois sem dúvida o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos”[1].

Devemos atentar que a Lei de Execução Penal é anterior à Constituição de 1988 e a um regime político democrático. Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender uma disposição legal como o artigo 118, I, presumindo-se a culpabilidade ou a periculosidade do réu.

Interpretam-se as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! A Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos”[2].

Logo, as leis anteriores devem ser interpretadas em conformidade com a nova ordem constitucional, conformando-as com a Constituição. Ao tempo em que foi inserida em nosso sistema jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o país. O excelente Goldshimidt já afirmava (Problemas Jurídicos e Políticos del Proceso Penal) que a estrutura do processo penal de um país indica a força de seus elementos autoritários e liberais[3].

Devemos, então, buscar abrigo nesse elemento histórico, acomodando a lei às “novas circunstâncias não previstas pelo legislador”, especialmente aos “princípios elevados a nível constitucional”[4], e interpretando esse artigo tendo em vista o princípio da presunção de inocência, exigindo, então, que o crime doloso esteja certificado por uma sentença transitada em julgado. Obviamente, não é o caso de, simplesmente, reconhecer inválido o artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretá-lo em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei”[5].

Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, desse modo, das ideias dos seus autores”: teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei[6].

A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente[7].

Como ensina Miguel Reale, “a norma é sempre momento de uma realidade histórico-cultural, e não simples proposição afirmando ou negando algo de algo. Se a regra jurídica não pode ser entendida sem conexão necessária com as circunstâncias de fato e as exigências axiológicas, é essa complexa condicionalidade que nos explica por que uma mesma norma de direito, sem que tenha sofrido qualquer alteração, nem mesmo uma vírgula, adquire significados diversos com o volver dos anos, por obra da doutrina e da jurisprudência. É que seu sentido autêntico é dado pela estimativa dos fatos, nas circunstâncias em que o intérprete se encontra. Dizemos, assim, que uma regra ou uma norma, no seu sentido autêntico, é a sua interpretação nas circunstâncias históricas e sociais em que se encontra no momento o intérprete. Isto não quer dizer que sejamos partidários do Direito livre. Assim, o juiz não pode deixar de valorar o conteúdo das regras segundo tábua de estimativas em vigor no seu tempo. O reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida autêntica”[8].

Carlos Maximiliano, a propósito: “Em se tratando de normas formuladas por gerações anteriores, o juiz, embora dominado pelo intuito sincero de lhes descobrir o sentido exato, cria, malgrado seu, uma exegese nova, um alcance mais amplo, consentâneo com a época. Ante a imobilidade dos textos o progresso jurídico se realiza graças à interpretação evolutiva, inspirada pelo progredir da sociedade”[9].  

Por evidente que “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas”[10].

Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz:

“Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais claro e preciso, e tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo.”[11]


[1] O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 5.
[2] Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.
[3] Para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde não se quer aceitar viver de aparências e imbrogli retóricos”. (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 175, junho/2007, p. 12).
[4] “Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da ‘dignidade da pessoa humana’ (…), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal, com as suas concretizações (…) da Lei Fundamental.” (Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997, p. 479).
[5] Idem, p. 481.
[6] Idem, ibidem, p. 446.
[7] “Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450).
[8] Filosofia do Direito, São Paulo: Saraiva, 7ª. ed., 1975, pp. 508 e ss.
[9] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1961, 9ª. ed., pp. 122 e ss.
[10] Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).
[11] Ob. cit., p. 441.

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    é Procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (UNIFACS). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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