Passado a Limpo

O caso da imunidade fiscal municipal antes da Constituição de 1988

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

3 de dezembro de 2015, 8h20

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]O estudo da história do direito, por intermédio de fontes primárias, é poderoso instrumento conceitual para que possamos compreender que os arranjos institucionais com os quais contamos não são dados culturais que simplesmente herdamos. O direito é um construído permanente, e não um dado, o que se comprova, entre outros, na história interna do direito, isto é, na tentativa de reconstrução de institutos específicos.

Ilustro essa premissa conceitual com o tema da imunidade tributária dos municípios. Esses são entes da federação desde a promulgação do texto constitucional de 1988. Portanto, em princípio, faz sentido se discutir se a imunidade tributária de impostos os atingia, antes de 5 de outubro de 1988. Se positiva a resposta, o que encantava municipalistas, como Hely Lopes Meirelles e Victor Nunes Leal, deve-se entender a justificativa que se apresentava. O parecer da Consultoria-Geral da República que segue, de 1928, resolve esse enigma: o município era extensão endógena do estado federado. Confira:

“          Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1928.

            Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Guerra – Respondendo ao Aviso nº 13 de 15 de outubro último, no qual V.Exa. se dignou solicitar o meu parecer sobre o pagamento reclamado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, a título de contribuição para calçamento em frente a imóveis de propriedade da União, a serviço desse Ministério, cabe-me dizer que se trata de uma tributação de que os mesmos imóveis estão isentos por força de disposição constitucional.

            A Constituição Federal, em seu art. 10, prescreve: “É proibido aos Estados tributarem bens e rendas federais ou serviços a cargo da União, e reciprocamente”.

            Na expressão – estados -, é óbvio, está compreendida a entidade – município – de que se constituem aqueles. A proibição entende, pois, tanto com os tributos de natureza estadual, quanto com os de natureza municipal.

            A esse preceito categórico, cujo fundamento é impedir, no interesse geral, que uma das circunscrições políticas da nação prejudique ou dificulte a organização e o funcionamento dos serviços a cargo de qualquer das outras, a única restrição que os tribunais têm admitido é quando o tributo exigido não é, propriamente, um imposto, isto é, uma contribuição destinada aos serviços gerais, mas reveste o caráter especial de taxa, cobrada pela utilização de um determinado serviço, no momento de sua prestação.

            Esta é a doutrina do acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 16 de dezembro de 1918, citado no parecer do digno subprocurador interino da Justiça Militar, acórdão que versou a respeito do pagamento à União, pela Prefeitura do Distrito Federal, do consumo de água em edifícios onde funcionava um serviço municipal (V. Rev. de Dir., vol. 58, pág. 94).

            A hipótese ali figurada não ocorre, porém, no caso em exame.

            A contribuição é exigida proporcionalmente ao custo do calçamento da rua, na parte fronteira aos imóveis. Seu assento é o art. 19 da Lei do Município de São Paulo, nº 2.689, de 4 de abril de 1924, que assim dispõe: “Para as obras de pavimentação, os proprietários concorrerão com  dois terços do custo integral, à razão de um terço por metro de testada  do respectivo terreno”. (V. verso da guia para o pagamento da contribuição).

            Ora, como faz notar com acerto, o Dr. Subprocurador interino da Justiça Militar, a pavimentação dos logradouros públicos não é um serviço prestado direta e especialmente aos proprietários dos prédios neles situados, mas um serviço de natureza geral, de atribuição privativa dos poderes municipais, para uso e gozo de todos os habitantes da cidade. São todos os transeuntes, e não somente os donos dos prédios, que se utilizam do calçamento da rua na parte fronteira a esses prédios.

            O aludido tributo não tem, portanto, o caráter de taxa; e, destinado a custeio de um serviço de natureza geral, é, antes, um imposto. E sendo imposto, não pode incidir sobre imóveis de propriedades da União, porque a isso se opõe a citada disposição constitucional. Esse é o aspecto essencial sob que deve ser encarada a questão, a cuja solução não interessa examinar a constitucionalidade do imposto, debaixo de qualquer outro ponto-de-vista.

            Tributo semelhante foi instituído pela Municipalidade do Distrito Federal, no Decreto nº 1.029, de 6 de junho de 1905, e está hoje regulado pelo Decreto nº 2.211, de 11 de agosto de 1920. E sem existir nesses atos qualquer dispositivo especial consignando a respectiva isenção, mas por simples virtude da citada proibição constitucional, e contribuição não é exigida pela Prefeitura, em relação aos numerosos imóveis de propriedade da União, sitos nesta Capital.

            Em tais condições, Sr. Ministro, é meu parecer que se deve comunicar à Prefeitura Municipal de São Paulo que a solicitação do pagamento deixa de ser atendida, porquanto os imóveis tributados, como bens da propriedade da União, estão isentos do imposto, nos termos do art. 10 da Constituição Federal.

            Restituo os papéis concernentes ao assunto e tenho a honra de reiterar a V.Exa. os meus protestos de elevada estima e mui distinta consideração.

Rodrigo Octavio”

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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