Olhar Econômico

A asfixia do terrorismo deve começar pela do respectivo bolso

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

3 de dezembro de 2015, 7h00

Spacca
As páginas da história comprovam ser a guerra um fenômeno imemorial. Os impérios da antiguidade foram formados por guerras de conquista e durante a Idade Média, a ocupação de maior reconhecimento social era a de guerreiro. Por milênios, o desforço bélico, mormente a guerra justa, figurou como meio aceitável e juridicamente lícito de solução de litígios. O próprio surgimento do Direito Internacional público imbrica-se com a temática da guerra. Hugo Grotius, um dos pais desse ramo do Direito, intitulou seu livro sobre Direito Internacional, datado de 1625, De Jure Belli ac Pacis (À Respeito do Direito da Guerra e da Paz). Nem mesmo o estatuto da primeira organizaçãointernacional, intergovernamental e de vocação universal — a Liga ou Sociedade das Nações (1919) — proibiria cabalmente a guerra como meio de solução de litígios; o que somente viria a acontecer, com o Pacto Briand-Kellog de renúncia à guerra, concluído em 1928; e ratificado, posteriormente, pela Carta da ONU, de 1945 (artigo 2º, parágrafo 4º). Desde então, o Direito Internacional público deixou de reconheceraquisiçõeshavidas por meio de atividade bélica[1]. Entretanto, se a guerra entre Estados (guerra internacional) foi proscrita e deixou de ser meio reconhecido de conquista, a luta armada no interior do Estado, chamada de guerra civil ou guerra interna, não foi proibida pelo Direito Internacional. No entanto, este Direito possui esparso regramento, normalmente de caráter consuetudinário, a respeito. Por seu turno, via de regra, os direitos internos proíbem a guerra interna!

O Direito Internacional possibilita que grupos revoltosos internos, que já estejam em luta, sejam reconhecidos por outro(s) Estado(s) como insurgentes ou beligerantes, concedendo-lhes personalidade internacional (embora limitada) e, consequentemente, dando-lhe poder de concluir tratados e contratos internacionais, na modalidade contratos entre Estados; assim abrindo-lhes a possibilidade de utilizar os instrumentos da economia, das finanças e do comércio internacionais. Inobstante, a Carta da ONU tenha consagrado o princípio da não intervenção em assuntos domésticos de outros Estados, as figuras dos insurgentes e beligerantes, continuam vigentes.

Antes da proscrição da guerra internacional, desenvolveram-se no âmbito internacional, ao longo do tempo, duas espécies de regramentos relativos à guerra: o Direito da Guerra e o Direito Humanitário. O primeiro é o conjunto de normas de Direito Internacional, costumeiras e convencionais, tendentes a proteger vítimas das lutas bélicas; como, exemplificativamente: tratar feridos capturados e devolvê-los; não prender médicos e enfermeiros; poupar a vida dos prisioneiros de guerra; preservar os não-partícipes dos combates, não atacar hospitais, que deveriam ser sinalizados etc. Tal proteção evoluiu para proibir o corso, a utilização de certas espécies de armas, de gases asfixiantes etc. Durante as Conferências de Paz da Haia, de1899 e 1907, aprovaram-se quinze convenções sobre meios e métodos de combate, aspectos técnicos da guerra terrestre e marítima, sobre regulamentação da necessidade de declaração de guerra antecipada e do armistício, algumas ainda vigentes. Consoante o direito da guerra, somente se pode atacar objetivos militares, os não-combatentes devem ser poupados, além de serem proibidos armamentos e ações que causem grande sofrimento. As armas químicas somente viriam a ser proibidas pela Convenção de Genebra de 1992.  O direito da guerra compreende também regulamentação sobre o estatuto de Estado neutro, que tem assegurada a inviolabilidade de seu território, em troca de sua imparcialidade e da não participação nas hostilidades.  Já o Direito Humanitário, inspirado pelo suíço Henri Dunant, iniciou-secom a Convenção de Genebra, de 1864, que codificou e aperfeiçoou costumes relativos à proteção e ao socorro de vítimas de guerra, tendo, inclusive, criado um símbolo de identificação, hoje uma das marcas mais conhecidas do mundo: a cruz vermelha sobre campo branco, ou seja a bandeira suíça com as cores invertidas. As Convenções de Genebra de 1925 e as quatro de 1949, bem como seus protocolos adicionais de 1977, corporificaram o Direito Humanitário, pois mesmo estando a guerra proscrita e ilícita internacionalmente (a menos que fosse travada para defesa imediata de agressão), na prática, não seria extirpada. As citadas convenções estabelecem proteção para soldados que estejam fora de combate, prisioneiros de guerra, pessoal relacionado aos serviços de socorro e população civil. Inobstante digam respeito à guerra internacional, as citadas convenções de 1949 estabeleceram que, mesmo em luta interna, não poderia haver captura de reféns, tortura e tratamento ultrajante, bem como condenação e pena sem prévio julgamento.

Verifica-se que na primeira metade do século XX, havia todo um regramento sobre a guerra, que pressupunha exércitos formais e uniformizados, declaração prévia de guerra, não utilização de certas espécies de armas e proscrição de certas maneiras de lutar e, que, finalmente, terminava com o armistício e os tratados de paz.

Tudo isso começou a ser colocado em cheque com o surgimento de atividades bélicos não convencionais — guerrilhas e terrorismo —, que contrariavam requisitos do direito da guerra e do Direito Humanitário: por serem os respectivos combatentes invisíveis e sem identificação; por, muitas vezes, utilizarem armas proibidas e não ostensivamente; pela ausência de comando claro e, mais do que tudo; pela surpresa dos ataques, que vitimizam sem distinção soldados e membros da sociedade civil. Além da utilização de meios não convencionais, cabe ressaltar, o efeito amplo dessas estratégias de natureza político-militar, que inocula pânico, muito além de suas vítimas diretas. A guerrilha e o terrorismo não possuem definição internacional assente; nem sempre podendo ser estremados um do outro, pois a guerra de guerrilha, frequentemente, utiliza-se de terrorismo. Embora a palavra guerrilha, do espanhol guerrilla, tenha sido cunhada em 1808, o tipo de conflito armado que ela significa já fora utilizada anteriormente.

Ao mesmo tempo em que atividades atípicas de conflitos armados se intensificavam no mundo, a guerra, como vimos, foi tornada fora da lei internacionalmente. Este fato, tornou obsoleto grande parte do direito da guerra, que possuía como pressuposto a licitude de guerrear. O Direito Humanitário continuou a viger, sendo aplicável, com o beneplácito da ONU inclusive a conflitos armados com participação de guerrilheiros e terroristas. Note-se que os dispositivos sobre condução de hostilidades, das antigas convenções da Haia, não se perderam, pois passaram a figurar no Protocolo I, concluído em 1977, à Convenção de Genebra de 1949, que trata dos conflitos armados internacionais.

Uma regra importante de direito internacional público é a da efetividade. Assim não se pode negar que grupos, mesmo não reconhecidos como beligerantes ou insurgentes, controlam territórios e respectivos bens e populações e recebem, mais ou menos veladamente, apoio de outros Estados ou grupos não detentores de personalidade jurídica internacional, na forma de dinheiro, armas ou facilitação para negociações comerciais internacionais. Sem tais expedientes, grupos não reconhecidos internacionalmente não teriam acesso à economia, às finanças e ao comércio internacional e, por via de consequência, dificilmente surgiriam ou se manteriam!

É importante o combate bélico sistemático que Estados e grupos de Estados, sob o pálio da ONU ou não, levam a cabo contra pseudos-Estados ou grupos terroristas, que vicejam hodiernamente, causando tanto mal à humanidade. Contudo isso é, de per si, insuficiente. A luta decisiva, eficaz e permanente se faz por meio do control de bolsillo, ou seja, asfixiando-os financeiramente, não permitindo que eles (com ajuda de Estados e grupos sequazes, que também precisam ser descobertos e punidos), se aproveitem da porosidade e do cada vez menor controle do Estado sobre suas fronteiras, para auferir lucros, inclusive pela participação, direta ou indireta, na economia e no comércio internacionais[2].

 


[1] Ver “As guerras aceleraram a evolução do Direito Internacional”. Revista eletrônica Conjur, 20 de agosto de 2015.

[2] Ver “Os Estados controlam cada vez menos o comércio em suas fronteiras”. Revista eletrônica Conjur, 26 de agosto de 2015.

 

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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