Opinião

Não há nenhuma ilegalidade na prisão do senador Delcídio do Amaral

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3 de dezembro de 2015, 8h00

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Cautelar 4.039, ajuizada pelo Ministério Público Federal, em sessão extraordinária no dia 25 de novembro, e manteve a prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral, ao referendar a decisão tomada na noite de 24 de novembro pelo ministro Teori Zavascki de determinar a prisão do senador.

Tal decisão suscitou intensa discussão no sentido de apurar a natureza jurídica da prisão decretada por decisão monocrática do ministro Teori, referendada pelo colegiado da 2ª Turma, uma vez que o julgador, no dispositivo da sua decisão, valeu-se da seguinte expressão: “presentes situação de flagrância e os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral”.

A despeito da imprecisão terminológica verificada no dispositivo da decisão do ministro Teori, tem-se na realidade uma hipótese de prisão preventiva, uma vez que o Ministério Público Federal formalizou o pedido de prisão preventiva do parlamentar, ao sustentar, dentre outros argumentos, que a imunidade processual prevista no artigo 53, parágrafo 2º da CF não seria absoluta.

No entanto, a hipótese em questão impõe, também, o exame da excepcionalidade da prisão dos parlamentares nos casos de flagrante por crime inafiançável, uma vez que a Lei 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal no capítulo das medidas cautelares de natureza pessoal, inaugurou um novo regime jurídico em relação ao instituto da fiança, principalmente no que se refere às situações de inafiançabilidade. Necessária, portanto, uma reflexão sobre essa situação.

Senão vejamos.

1ª questão.
A imunidade processual prevista no artigo 53, parágrafo 2º da Constituição Federal, dispõe que deputados e senadores não poderão ser presos, salvo a hipótese de prisão em flagrante por crime inafiançável. Esta imunidade está associada aos crimes cometidos no exercício da função ou em razão da função, mas relacionados à função legislativa.

Há uma relação clara de simetria entre a hipótese do parágrafo 2º do artigo 52 da CF e a hipótese do “caput”, no que se refere aos crimes de opinião, em que os parlamentares possuem imunidade material, porém, segundo a interpretação do Supremo Tribunal Federal, desde que a manifestação esteja relacionada com o exercício da função legislativa.

O que significa reconhecer que a imunidade parlamentar, seja a material ou a processual, não possui caráter absoluto, mas sim relativo, de modo que a sua incidência está condicionada à natureza e ao exercício da função, sob pena do instituto da imunidade qualificar-se como um verdadeiro escudo a permitir a prática de qualquer ato ilícito. A leitura do artigo 53 da CF de forma harmoniosa com o texto constitucional, e não isoladamente, implica a necessária modulação dos seus efeitos a partir da própria finalidade das imunidades que é a preservação da democracia, do princípio republicano e do exercício da cidadania. Nesse sentido o STF no julgamento do HC 89417 (julgado em 22/08/2006, DJ 15-12-2006, Relatora ministra Cármen Lúcia).

O que não se verifica na hipótese do senador Delcídio do Amaral, em que o mesmo se vale da sua condição de parlamentar para obstruir uma investigação criminal cujo objeto versa sobre crime praticado por organização criminosa, mas cuja conduta não está associada ao exercício da função legislativa.

Em assim sendo, a restrição do artigo 53 da CF não incidiria sobre a hipótese em exame, de modo que o Senador poderia ser preso cautelarmente, com fundamento do artigo 312 do Código de Processo Penal.

2ª questão.
O artigo 53, parágrafo 2º da Constituição Federal, admite a prisão dos deputados e senadores somente nos casos de flagrante pela prática de crime inafiançável.

A Constituição Federal, no artigo 5º XLII, XLIII e XLIV prevê a inafiançabilidade de alguns crimes, como, por exemplo, o racismo, o terrorismo, a tortura, o tráfico de drogas, dentre outros. Mas a regulação do instituto da fiança é feita nos artigos 319, 321 e seguintes do Código de Processo Penal. A fiança é uma medida cautelar de natureza pessoal e alternativa à prisão.

O esforço do legislador consistiu em regular as hipóteses em que será cabível ou não a fiança, e para tanto se utilizou de quatro critérios distintos.

No artigo 323 as situações de inafiançabilidade decorrem da natureza da infração, uma vez que o texto reproduz as hipóteses previstas na Constituição Federal.

No artigo 324 as situações de inafiançabilidade são de natureza diversa, a saber: no inciso I a não concessão da fiança tem natureza sancionatória em razão da quebra da fiança anteriormente fixada; no inciso II a não concessão da fiança tem por fundamento a natureza da prisão, no caso a prisão civil e a militar, as quais não têm natureza cautelar, e portanto, são incompatíveis com o instituto da fiança; e no inciso IV, a não concessão da fiança decorre da presença dos motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

O crime que se imputa ao senador Delcídio do Amaral (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.850/13[1]) é afiançável segundo o critério da natureza da infração, constitucionalmente estabelecido. Porém, seria inafiançável, se o critério utilizado consistir na hipótese do inciso IV do artigo 324 do CPP, uma vez que se a prisão cautelar é necessária, não pode ser substituída pela fiança como medida alternativa.

Mas a questão que coloca é a seguinte: todas as situações de inafiançabilidade previstas nos artigos 323 e 324 do CPP aplicam-se ao conceito de crime inafiançável de que trata a hipótese do artigo 53, parágrafo 2º do CPP?

A nosso ver não, e por dois motivos.

Primeiro, porque a referência aos crimes inafiançáveis no artigo 53, parágrafo 2º do CPP é tomada em alusão às espécies de crime que a Constituição Federal no artigo 5º considerou inafiançáveis.

Segundo porque a se admitir a incidência do inciso IV do artigo 324 do CPP, em que a situação de inafiançabilidade decorre da presença dos pressupostos da prisão preventiva, a prisão não seria em flagrante, mas sim de natureza cautelar ou processual.

Isso porque a competência para emitir o juízo de valor em relação à presença ou não dos pressupostos da prisão preventiva a afastar o cabimento da fiança, e, assim caracterizar a situação de inafiançabilidade, é do Poder Judiciário. E a prisão nesse caso não seria em flagrante, mas decorrente de uma ordem judicial.

Por tais razões, é que a prisão do senador Delcídio do Amaral não pode ser caracterizada como prisão em flagrante, a despeito da referência à situação de flagrância pelo ministro Teori.

A partir das questões enfrentadas, é possível extrair duas conclusões:

1ª. O artigo 53, parágrafo 2º da Constituição Federal tem a sua incidência restrita às infrações penais inafiançáveis cuja prática esteja relacionada com a atividade legislativa, o que significa reconhecer que fora dessas hipóteses, observados os pressupostos do artigo 312 do CPP, a prisão preventiva poderá ser decretada, como ocorreu na hipótese do senador Delcídio do Amaral.

2ª. A prisão em flagrante de deputados e senadores por crime inafiançável tem como critério de inafiançabilidade somente a natureza da infração, que no caso coincide com as hipóteses do artigo 323 do CPP, que reproduz o texto constitucional. Caso contrário, a se admitir a possibilidade da prisão em flagrante na hipótese de inafiançabilidade do artigo 324, IV, do CPP, haveria, inequivocamente, a violação do artigo 53, parágrafo 2º da CF, uma vez que a prisão do parlamentar nesse caso seria de natureza preventiva e não em flagrante.


[1] Aquele que impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminal, se sujeita à mesma pena de três a oito anos, prevista no “caput” do artigo 2º.

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