Opinião

O combate ao inimigo por meio do processo penal de exceção

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1 de dezembro de 2015, 10h56

As últimas notícias dão conta de que a empreiteira Andrade Gutierrez estaria em fase final de negociação para celebrar acordo de leniência junto à Controladoria Geral da União (CGU) e ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), paralelamente à delação premiada a ser firmada por executivos e pelo presidente do grupo, Otávio Marques de Azevedo, com o Ministério Público Federal.

Embora os termos sejam sigilosos, informações trazidas à tona nos últimos dias revelam que as negociações envolveriam o pagamento de multa no valor de R$ 1 bilhão, além da confissão sobre práticas criminosas envolvendo a Petrobras e a construção de estádios da Copa do Mundo, usinas Belo Monte e Angra 3.

Para entendermos a dinâmica dos últimos acontecimentos, é preciso compreender as recentes transformações por que passou a persecução criminal no país. Nesse contexto, pretende este artigo análise sobre o descortinar de um processo penal de exceção a partir do suposto combate a um inimigo juridicamente selecionado com apoio dos sistemas político e midiático, a quem são renunciadas as mesmas garantias inerentes aos cidadãos.

O processo penal de exceção é a antítese do processo penal garantista, nasce da afronta ao Estado de direito ― dando ensejo à materialização de um Estado de exceção ― e, tal qual a Hidra de Lerna com seu hálito venenoso, pode-se nele identificar as sete cabeças de serpente: (i) aplicação distorcida da teoria do domínio do fato e expansão da criminalização, (ii) flexibilização das garantias individuais, (iii) delação premiada, (iv) acordo de leniência, (v) seletividade dos investigados, processados e condenados, (vi) julgamentos de acordo com a opinião pública(da) e influência corrompida dos sistemas político e midiático no poder judiciário e (vii) o fantasma de uma legislação antiterrorismo.

Com efeito, independentemente de uma análise detalhada sobre as peculiaridades do caso concreto, as linhas que se seguirão cingem-se a uma abordagem do processo penal de exceção a partir das duas faces envolvidas que ora se destacam no bojo da persecução penal contra a empreiteira e sua diretoria, quais sejam: acordo de leniência e delação premiada.

De plano, cumpre destacar que ambos foram fruto de leis aprovadas, respectivamente, em 1º e 2 de agosto de 2013. Qual a importância dessa constatação? Meses antes (junho de 2013), diversos protestos e manifestações deflagraram-se pelo país, inicialmente motivados por um questionamento às tarifas de ônibus da cidade de São Paulo, mas que ganharam forma em um descontentamento generalizado que levou milhões de pessoas às ruas em todo o Brasil.

Talvez ainda não tenhamos nos dado conta da dimensão das chamadas Jornadas de Junho na trajetória política do país e o futuro se encarregará dos devidos registros históricos, porém os tribunais têm demonstrado ― dia após dia ― a nefasta influência das medidas instituídas no processo penal a partir da apropriação do movimento por propósitos desvirtuados de sua origem, enterrando ― pá sobre pá, ilegalidade sobre ilegalidade ― o Estado de Direito.

Ao incidir sobre o prisma do direito penal, as luzes policromáticas das mais difusas reivindicações propostas ao longo de junho de 2013 foram polarizadas em uma bandeira da qual ninguém discorda ― cujo mote, porém, pode camuflar as reais intenções daqueles que se apropriaram do seu legado ―, qual seja: o combate à corrupção.

Combate este que naturalmente pressupõe a existência de um combatente e de um inimigo (rotulado como corruptos). Não bastasse o apelo ao maniqueísmo costumeiramente legitimador de regimes de exceção, destaca-se o paradoxo que exsurge das constantes propostas dos combatentes em corromper as regras do jogo (1), conduta subversiva à própria coerência do processo penal (2).

Por sua vez, a existência de inimigos aos quais é negada a condição de cidadão demonstra por si só que o Estado de direito e o processo penal garantista já não são mais realidade entre nós. Nesse sentido, Zaffaroni afirma com precisão que “o tratamento diferenciado de seres humanos privados do caráter de pessoa (inimigos da sociedade) é próprio do Estado absoluto, que, por sua essência, não admite gradações”, introduzindo-se, dessa forma, “uma contradição permanente entre a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princípios constitucionais internacionais do Estado de direito”. (3)

Atentos ao propósito do presente artigo, passemos à análise dos contornos do acordo de leniência introduzido em nosso ordenamento jurídico pela Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Trata-se de legislação que se destina à responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, porém com reflexos fulminantes na responsabilização criminal.

Em seu artigo 16, a chamada Lei Anticorrupção condiciona a celebração do acordo à identificação de demais envolvidos na infração e fornecimento célere de provas, desde que a empresa investigada seja a primeira a se manifestar, cesse seu envolvimento nas práticas ilegais apuradas, admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações.

Como contrapartida, a multa a ser arbitrada é reduzida em até 2/3 e isenta-se a pessoa jurídica das sanções de publicação extraordinária da condenação e da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público.

No contexto do presente caso, importante destacar que o artigo 17 da lei acima destacada também prevê a possibilidade de isenção, dentre outras, das penalidades de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública.

A competência para celebração dos acordos de leniências nestes moldes, no âmbito do Poder Executivo federal, é da CGU. Todavia, ainda permanece vigente outra sistemática para celebração de acordos de leniências, introduzida anos antes pela Lei 12.529/11, cuja aplicação se dá no âmbito do Cade. É dizer que existem duas modalidades de acordos de leniências: uma realizada pela CGU, outra pelo Cade. Tirante o inconveniente da legitimação de dois órgãos distintos para celebração de acordos distintos, com regras distintas, qual a diferença fundamental entre ambos?

Os dois modelos pressupõem a confissão da prática ilegal (4). Entretanto, o ponto mais relevante que distingue os acordos de leniência do Cade e da CGU é que, enquanto o primeiro impede o ajuizamento de ação penal em relação ao beneficiário da leniência e prevê a extinção da punibilidade em relação aos crimes envolvidos após cumprido o acordo, no âmbito da Lei Anticorrupção a celebração de acordo com a CGU não apresenta qualquer benefício na esfera penal.

Pelo contrário. Diante da grotesca aplicação da teoria do domínio do fato no julgamento da Ação Penal 470 e sua repercussão como precedente de destaque em nosso ordenamento jurídico (5), tende-se a ampliar a responsabilização criminal para condutas omissivas em que os detentores de cargos ou funções de comando deveriam saber ou deveriam ter ordenado adequadamente os seus subordinados. Segundo o próprio Roxin, criador da teoria, a má aplicação poderia resultar na “tentativa de punir um presidente de empresa pelo crime cometido por um funcionário, sob o argumento de que o presidente é responsável por dar o comando” (6).

O raciocínio é muito simples: a empresa celebra acordo de leniência com a CGU, confessa a prática de um crime no contexto da sua atividade empresarial e recebe a isenção e/ou atenuação de sanções no âmbito civil e administrativo. Não é difícil prever que, diante do cenário acima exposto, o próximo passo diante dessa confissão seria a deflagração da persecução criminal contra os gestores da pessoa jurídica. Qual a saída para eles?

Ora, diante da confissão das práticas delitivas pela pessoa jurídica e considerando a recente aplicação da teoria do domínio do fato pelo STF, há duas formas de não se entregar de bandeja a cabeça daqueles que exerciam a gestão da empresa: a existência de uma investigação interna efetiva que comprove o não envolvimento dessas pessoas (tema que ficará para futuro artigo) ou a celebração de acordo de delação premiada.

A delação premiada surgiu em nosso ordenamento jurídico na década de 1990, com a lei de crimes hediondos, destinada especialmente ao desmantelamento de quadrilhas que praticavam crime de extorsão mediante sequestro. Posteriormente, as hipóteses de delação premiada expandiram-se para os crimes contra o sistema financeiro, ordem tributária, lavagem de dinheiro, drogas, entre outros.

Ressalvadas todas as críticas a este tipo de acordo ― seja pela duvidosa questão ética ou confiabilidade das provas obtidas por esse meio (7), quer em função da incompatibilidade do instituto forjado em um sistema common law com o princípio da obrigatoriedade a que está sujeita a acusação na ação penal pública incondicionada ―, cumpre destacar que nunca ― jamais! ― qualquer legislação cogitou utilizar a prisão preventiva como moeda de troca em acordo de delação premiada. Todos e qualquer benefício previsto em lei para delatores destina-se à prisão enquanto pena (perdão judicial, redução, substituição, progressão de regime). Isso é óbvio, pois do contrário estaria legitimada a delação mediante sequestro. (8)

Todavia, é precisamente isso que se tem verificado mediante proposta de acordos de delação premiada após a realização de prisões cautelares. Para ficarmos apenas com um exemplo, recordemos os pedidos de prisão preventiva formulados pelo Ministério Público Federal explicitamente com base na “importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos”. (9)

Eis o roteiro nefasto: primeiramente imputa-se à diretoria da empresa uma série de crimes em função do seu posto de comando ― determinando-se prisões preventivas de funcionários do alto escalão e do presidente ―, ao que se segue instauração de procedimento administrativo para apuração de atos lesivos contra a Administração Pública e, acenando-se com a possibilidade de falência pela proibição de negociar com o poder público e aplicação de multa bilionária, propõe-se a celebração de acordo de leniência, que por sua vez implica na confissão de crimes cujo curso natural da atual persecução criminal resultaria na responsabilização pessoal da sua diretoria.

Haveria de ser considerado legítimo um acordo de delação premiada celebrado nestas circunstâncias?

Somadas às demais peças do quebra cabeça, imaginemos hipoteticamente uma situação fantasiosa ocorrida numa cidade muito longe daqui ― mas que, como diria Marcelo D2, tem problemas que parecem os problemas daqui ―, em que ganharia forma a Hydra de Lerna que metaforicamente representa o processo penal de exceção. Teríamos assim a manifestação das suas sete cabeças de serpente:

(1) Por meio de uma aplicação grotesca da teoria do domínio do fato, proceder-se-ia à imputação de crimes a funcionários de alto escalão de uma pessoa jurídica envolvida com o poder público;

(2) A partir da flexibilização das garantias individuais, determinar-se-ia a prisão cautelar destes executivos fundamentada em suposto risco à investigação e à instrução;

(3) Paralelamente, propor-se-ia a celebração de acordos de leniência com a pessoa jurídica envolvida nas práticas ilícitas, acenando-se, caso contrário, com a quebra da empresa que vive da realização de obras públicas em função da aplicação de multa bilionária e proibição de negociar com o poder público;

(4) Seguir-se-ia proposta de delação premiada: considerando que este acordo de leniência para salvaguardar a empresa implicaria na confissão de crimes imputáveis aos membros da sua diretoria (proposta de atenuação das penas X coação pela confissão que levaria a severa pena privativa de liberdade), que já estão presos preventivamente (proposta de prisão domiciliar X coação pela privação da liberdade);

(5) As delações premiadas poderiam ser direcionadas seletivamente no tempo, espaço e pessoas e circunstâncias delatadas, determinando-se o curso da persecução penal a partir da seletividade e influência do sistema político;

(6) A seletividade poderia ser legitimada pela opinião pública(da) de acordo com os interesses dos sistemas político e midiático;

(7) O fantasma de uma legislação antiterrorismo prestes a ser aprovada poderia ser a gota d’água na consolidação de um projeto tirânico e repressivo de eventuais manifestações contrárias.

A partir desse cenário imaginado muito longe daqui, das tantas dúvidas relevantes do ponto de vista processual, ficamos apenas com uma: se a prisão preventiva era necessária e adequada (10), não sendo possível substituição por qualquer outra medida, qual foi o passe de mágica que a delação orquestrou para agora possibilitar a prisão domiciliar? (11)

Diferentemente do que afirma o juiz Sergio Moro ao apontar a operação mani pulite como “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção”, em artigo publicado há mais de uma década (12) que parece ser o prelúdio da operação "lava jato", o processo penal não é um combate a inimigos. Ao contrário do que insinua a ministra Cármen Lúcia quando adverte que “criminosos não passarão”, dirigindo-se a “navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades”, o Poder Judiciário deve limitar-se a reagir às provocações acusatórias mediante aplicação imparcial e desinteressada da lei aos fatos concretamente apurados.

Fica-se com o alerta de Zaffaroni, para quem a “função do direito penal de todo Estado de Direito”, ao contrário do que o senso comum invoca, “deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis”, de modo que, se “o direito penal não consegue que o poder jurídico assuma esta função, lamentavelmente terá fracassado e com ele o Estado de direito perecerá” (13)

E, aos que confundem a luta pela preservação do Estado de Direito ― mediante o respeito aos direitos fundamentais, a delimitação interdependente das funções dos poderes e a preservação do direito de defesa em um processo penal garantista ― com a defesa partidária da impunidade, fica a memória do poeta Eduardo Alves da Costa:

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”

Na medida em que nos valemos de sugestionadas condutas (ainda que odiosas e repugnantes) para legitimar uma punição a qualquer custo, mediante renúncia a direitos fundamentais, ingressamos num caminho sombrio cujo retorno nem sempre estará ao nosso alcance. As flores podem já ter sido pisoteadas, mas ainda restam luz e voz. Não deixemos que as trevas e o silêncio arruínem o Estado de direito, tomando de assalto o processo penal garantista!


1 Ilustrativamente: http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas

2 Sobre a importância da fixação clara das regras do jogo, a lição sempre precisa de Alexandre Morais da Rosa: http://www.conjur.com.br/2013-set-28/diario-classe-jogo-processual-direito-penal-efeito-cativante

3 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.11.

4 Artigo 86, IV, da Lei 12.529/11 e artigo 16, §1º, III, da Lei 12.846/13.

5 http://www.conjur.com.br/2014-set-01/claus-roxin-critica-aplicacao-atual-teoria-dominio-fato e http://www.conjur.com.br/2013-abr-28/stf-aplicou-teoria-dominio-fato-forma-grotesca-advogado

6 http://www.conjur.com.br/2014-set-01/claus-roxin-critica-aplicacao-atual-teoria-dominio-fato

7 Não é demais lembrar que a natureza jurídica da delação premiada é de meio de obtenção de prova e não um meio de prova propriamente dito: “enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos” (BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012, p. 270).

8 Crítica fundamentada de Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa (http://www.conjur.com.br/2015-ago-07/limite-penal-jogo-delacao-prisao-cautelar-trunfo-fora-fair-play) e Marcelo Leonardo (http://www.conjur.com.br/2015-jul-03/marcelo-leonardo-troca-liberdade-delacao-forma-coacao)

9 Disponibilizados pela ConJur: http://s.conjur.com.br/dl/lava-jato-parecer-mpf-prisao-forcar.pdf e http://s.conjur.com.br/dl/lava-jato-parecer-mpf-prisao-forcar1.pdf

10 Pois expressamente subsidiária, nos termos do art. 282, §6º do CPP.

11 A lógica leva a crer o contrário, pois diante de confissões obtidas mediante coação (e que, caso demonstradas inverídicas, poderão agravar a sua situação) a tendência natural é considerar que o delator passe a agir interessadamente na influência do processo.

12 http://s.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf

13 Zaffaroni, op cit., p. 172.

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    É advogado criminal associado ao escritório Zulaiê Cobra Ribeiro Advogados, professor de Direito Penal e Processual Penal. Doutorando em Direito Processual Penal pela PUC-SP e mestre em Direito Processual Penal pela mesma instituição.

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