Segunda Leitura

Poder disciplinar do CNJ sobre magistrados precisa ficar mais bem definido

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

30 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
O ministro Celso de Mello, do STF, em decisão monocrática proferida no dia 24 passado, decidiu mandado de segurança impetrado pelo juiz do Piauí José Ramos Dias Filho contra ato do CNJ, sob o fundamento de que o órgão tem poderes para investigar juízes.

No caso, o afastamento do juiz do Piauí pelo CNJ ocorreu em 30 de junho de 2010, quando o corregedor nacional era o ministro Gilson Dipp, porque o acusado teria condenado a multinacional alemã Basf a pagar R$ 9,5 milhões em uma ação em que se pedia R$ 500.000,00 por danos morais. Portanto, além do pedido já afigurar-se excessivo o que acabou sendo  concedido ficou em quase 20 vezes mais.

Logo que foi afastado o juiz impetrou segurança no STF e obteve liminar para permanecer no cargo. Portanto, protegido por decisão do Supremo, pode continuar exercendo suas funções até o dia 24 passado, tendo, nesses seis anos, ações que lhe renderam 13 processos na Corregedoria do TJPI, uma delas por furto de processo.

Atrás desse caso encontra-se um dos mais tormentosos temas do Poder Judiciário nacional: o CNJ tem competência concorrente ou subsidiária para apurar faltas disciplinares de magistrados?

Se a competência for concorrente, estar-se-á a ferir a autonomia dos Tribunais Superiores e de Segunda Instância. E se for subsidiária, corre-se o risco de cair-se na falta de rigor e efetividade, dependendo de qual tribunal, dos 90 tribunais, se trate.

Os tribunais ─ em especial os de Justiça ─ posicionam-se contrários à competência concorrente do CNJ, querendo-a subsidiária. E nisso invocam ofensa à autonomia dos Estados membros, no que, teoricamente, estão certos. Essa situação conflituosa foi muito bem retratada pelo Ministro Dias Tofolli no julgamento da ADI 4.638 MC-REF, ao afirmar que:

“A história do Brasil – Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil República – demonstra que o debate que aqui se faz, que hoje subjaz a esse tema, é permanentemente pendular na nação brasileira. Qual é o debate? O debate de uma maior autoridade das elites locais ou da elite nacional; uma maior legitimidade ou competência dos estados, das províncias, antigamente, das capitanias, na época da colônia, ou um maior poder da Nação, do poder central”.

Tradicionalmente, os Tribunais sempre foram indulgentes com os magistrados que infringem as regras disciplinares ou até mesmo com os que chegam à prática de crimes. E se a tolerância existia com relação aos juízes de primeira instância, muito maior era quando o acusado fosse ministro ou desembargador.

Isso originou uma disputa que já tem uma década, entre o CNJ e os Tribunais Superiores e de Segunda Instância. Uma corrente favorável ao poder de investigação irrestrito do CNJ, mesmo sem ter condições estruturais para tanto. A outra, dando ao órgão poderes para agir apenas como uma instância subsidiária das Corregedorias dos Tribunais de Apelação ou da Presidência dos Tribunais Superiores.

Aos 13.7.2011 o CNJ editou a Resolução 135 que, no art. 12, dava poderes cumulativos aos Tribunais e ao CNJ para instaurar investigação contra magistrado. Referida Resolução foi objeto da ADI 4.638 MC-REF / DF, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, a qual, no que se refere ao art. 12, foi negada pelo STF em 8.2.102. Portanto, o CNJ continuou tendo poder concorrente.

Contrária a esta decisão é a opinião do ministro Celso de Mello,  para quem a atuação do órgão deve ser subsidiária e “isso significaria que o desempenho da atividade fiscalizadora (e eventualmente punitiva) do Conselho Nacional de Justiça deveria ocorrer somente nos casos em que os Tribunais – havendo tido a possibilidade de exercerem, eles próprios, a competência disciplinar e correcional de que se acham ordinariamente investidos – deixassem de fazê-lo (inércia), ou pretextassem fazê-lo (simulação), ou demonstrassem incapacidade de fazê-lo (falta de independência), ou, ainda, entre outros comportamentos evasivos, protelassem, sem justa causa, o seu exercício (procrastinação indevida)”.

Nem sempre é fácil distinguir o que é inércia ou medidas protelatórias ou evasivas. Assim, por exemplo, poderia estabelecer-se que:

  1. Infrações passíveis de remoção, disponibilidade ou aposentadoria compulsória são da competência concorrente do CNJ caso:
  1.   Não seja tomada nenhuma medida esclarecedora em 15 dias;
  2.   Não seja aberta sindicância em 30 dias;
  3.   Não sejam os fatos levados ao Plenário ou órgão especial em 120 dias.
  4. Infrações de menor relevância, punidas com advertência e censura, são da alçada exclusiva dos órgãos de origem;

Vale aqui citar que o anteprojeto de Lei Orgânica da Magistratura, no artigo 273, prevê a possibilidade do CNJ instaurar procedimentos de investigação independentemente da inércia dos Tribunais Superiores ou de Apelação.

Atualmente, a situação está indefinida, tudo indicando que o CNJ intervém ou não conforme o caso e também a visão pessoal de cada Corregedor. Uns, como é próprio da natureza humana, são mais severos e outros, mais tolerantes. Vejamos alguns exemplos.

A Revista Veja imputou a um ministro do STJ relações com o empreiteiro Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, que ficou seis meses preso por estar envolvido no escândalo do Petrolão, evidenciadas por troca de mensagens. No entanto, não se tem notícia de qualquer investigação dos fatos no STJ. Ao contrário, na Corregedoria Nacional de Justiça, por determinação da ministra Fátima Andrighi,  foi aberto procedimento administrativo. Portanto, no caso, foi aplicado o princípio da competência concorrente.

O oposto ocorreu em decisão da ministra corregedora no dia 27 passado, quando ela  “encaminhou à Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho e à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Mato Grosso reclamação disciplinar sobre venda de decisões judiciais de juízes da 7ª Vara do Trabalho de Cuiabá (MT) e da 1ª Vara Cível da mesma comarca. Portanto, nesse caso a opção foi no sentido de atuar o CNJ subsidiariamente.

O jornal O Estado de S. Paulo do último dia 11 de agosto noticiou a instauração de procedimento administrativo contra um desembargador que mandou soltar, por liminar, o traficante “Capuava”, conhecido como o mais poderoso do estado de SP. A providência, ordenada pelo presidente do TJ, certamente suspendeu qualquer iniciativa da Corregedoria do CNJ. Curioso é que a notícia mencionada na mídia revela outros casos parecidos com o mesmo desembargador. Um procedimento administrativo resolverá? Ou situações como essa reclamam imediato afastamento do cargo?

No TJ-RJ recentemente uma inusitada ocorrência envolveu um juiz de Direito e um desembargador. Segundo noticiado pela revista eletrônica ConJur, “o juiz João Batista Damasceno, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, vai responder a procedimento administrativo disciplinar após ter sacado uma arma durante um desentendimento com o desembargador Valmir de Oliveira, que também pertence à corte. Foi o que decidiu o Órgão Especial do TJ-RJ, por 25 votos a 4, na sessão da tarde desta segunda-feira (8/6)”. O curioso é que o juiz já se aposentou por força da idade.

Os casos citados têm um lado bom. Revelam que os Tribunais de Segunda Instância saíram do marasmo de alguns anos atrás e começam a tomar medidas contra infratores. Mesmo assim, é preciso atenção, a fim de não se retorne ao tempo em que magistrados infratores, no máximo, eram  convidados a aposentar-se.

Finalmente, é preciso que se registre a falta, ainda, de estrutura das Corregedorias de Justiça e o amadorismo em determinadas situações. Para ficar apenas em um exemplo, os Tribunais de Justiça não costumam prever em seus Regimentos Internos como se dará a investigação no caso de infração penal cometida por magistrado. O TJ do Amapá é uma honrosa exceção, sendo minucioso a respeito o seu Regimento Interno, artigos 240 a 242.

E mais. Nos casos de grande repercussão, em que filmes ou gravações não deixam dúvidas sobre a ilicitude, é preciso que, além da instauração de processo disciplinar, seja o magistrado afastado de suas funções. A sociedade não entende e não suporta mais ver a TV exibir uma conduta deplorável e alguém vir a público dizer que “serão tomadas as medidas cabíveis”. Isso gera uma descrença no Judiciário, que um dia acabará resultando em perdas de garantias constitucionais e legais.

Em suma, se os Tribunais Superiores e os de Segunda Instância desejam ver o Poder Judiciário respeitado, não devem omitir-se nos seus deveres de investigar os magistrados por suas faltas funcionais. E, enquanto essa consciência não estiver presente nos 90 Tribunais brasileiros, a ação do CNJ será necessária.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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