Senso Incomum

O livre convencimento só vale para as decisões e não para concursos?

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27 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Quem me inspirou a escrever esta coluna foi o leitor Pedro PCP, que postou na semana passada o seguinte: “estudando para um concurso da magistratura, me deparei com a seguinte decisão do Conselho Nacional de Justiça, que acredito ser do seu interesse, professor Lenio:

"Não deve prosperar a pretensão de desconstituir a correção das provas escritas de sentença, relativas ao concurso público para provimento de cargos de juiz de direito substituto do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (edital 1–TJ-BA-Juiz Substituto, de 12 de janeiro de 2012), sob a alegação de que os avaliadores teriam desconsiderado controvérsia doutrinária e jurisprudencial na correção das provas. (…) É possível que a banca de qualquer concurso cometa erros de caráter metodológico ou científico, mas isso, dentro de certos limites, é inerente à falibilidade e à subjetividade próprias de seleções na área das ditas Ciências Humanas, como o Direito. (…) A adoção do princípio do livre convencimento motivado do juiz aos candidatos em concurso público é equivocada. Esse princípio diz respeito aos juízes, no exercício da função jurisdicional. A tese autorizaria a conclusão de que qualquer resposta, em prova de natureza dissertativa, aberta, desde que não teratológica, poderia ser tida por correta pela banca examinadora. Isso inviabilizaria a correção das provas e a competitividade inerente ao concurso público. A banca pode eleger determinada linha interpretativa do Direito, desde que amparada pela legislação, pela jurisprudência ou pela doutrina. (…) (CNJ – PCA – Procedimento de Controle Administrativo – 0001270-35.2013.2.00.0000 – 173ª Sessão – j. 06/08/2013 )”.

Inspirado o leitor. Tenho travado essa batalha denunciando o livre convencimento há mais de 20 anos. Bem mais. Recentemente, ajudei a retirar do novo Código de Processo Civil (CPC) a expressão “livremente” do artigo 371, atual artigo 131. No caso da decisão acima, o que o CNJ quis dizer é que os candidatos (concursandos) — e só eles — não podem lançar mão da tese do livre convencimento. Os juízes, sim. Ou seja, quando existe controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre determinado assunto, o concursando deve apontar a resposta correta e não esperar que os avaliadores se importem com o seu (do candidato) livre convencimento. Aparentemente, pareceria óbvio que o candidato não pode invocar a seu favor esse tipo de argumento. Só que esse não é o todo da história, porque é apenas a ponta do iceberg. Quer dizer: o CNJ está dizendo “quanto dói uma saudade”. O pobre do utente pode se esgualepar diante do livre convencimento do juiz. Já o pobre o concursando não pode alegar a mesma coisa diante da banca, como se estivéssemos em outro país ou outro sistema jurídico. Ah, bom.

Paradoxalmente, o que se depreende da decisão do CNJ é que existe, sim, resposta correta…. Só que quem a define é a banca. Para o juiz que prolata uma sentença, não há a exigência de dar uma resposta correta a determinado caso. Afinal, ele pode lançar mão da tese subjetivista do livre convencimento. Interessante. Pergunta-se algo que não se pode aplicar a todos. Pior: se a banca errar e o erro estiver dentro dos critérios de livre convencimento dela, o utente não tem direito a recurso. Se a matéria objeto da questão for controversa, a banca “escolhe” a corrente que desejar. Mas o concursando não pode fazer o mesmo. Terá que ter a clarividência de acertar aquela que foi escolhida pela banca.

Desde que o primeiro homem se dirigiu a alguma coisa, vivemos a angústia de como-dar-nome-(compreender)-as-coisas. Não é por nada que no primeiro grande livro de filosofia da linguagem já escrito, um dos capítulos foi chamado “Da justeza dos nomes”. É claro que isso vai continuar a nos perturbar. Por isso o CNJ achou um atalho — cheio de pedras e espinhos epistêmicos — e respondeu de forma simples (e equivocada) ao problema: É possível que a banca de qualquer concurso cometa erros de caráter metodológico ou científico, mas isso, dentro de certos limites, é inerente à falibilidade e à subjetividade próprias de seleções na área das ditas Ciências Humanas, como o Direito”. OK. Só que, se para os juízes vale a mesma coisa — e além disso, a favor deles “milita” o livre convencimento — a questão que se coloca é: por que o candidato-concursando não pode recorrer do mesmo modo que se recorre das decisões que cometam erros científicos decorrentes da subjetividade?

Vejam: essa é a pergunta mínima que se deve fazer. O direito ao recurso contra erros. E que os concursandos possam invocar a mesma coisa que os juízes invocam (e que com o novo CPC não mais poderão). E vejam como o pobre do utente sofre em face do tal “livre convencimento”. Assim como o concursando.

Fico tenso quando leio que, “dentro de certos limites”, os “erros de caráter metodológico ou científico” são, de algum modo, “inerentes” as “Ciências Humanas, como Direito”. Como assim? Quem disse isto? De onde tiraram isso? Como é que o digno CNJ diz uma coisa dessas como se dissesse que “hoje é sábado” quando, na verdade, é “quinta”? Quer dizer que o Direito, nada menos do que o empreendimento responsável pela garantia da legitimidade do exercício de coerção do poder público — sim, esse é o conceito de “Direito” — deve conviver, fatal e inevitavelmente, com o erro? Por que razão?

Vou repetir uma frase — e o faço porque sofro de LEER: fôssemos, os juristas, médicos, estaríamos longe de descobrir a penicilina. Eis aí o espírito de um tempo: diz-se que as ciências humanas são incompatíveis com o erro e o acerto e que estes seriam próprios das hard sciences, das exatas. E se diz que não há objetividade na Moral ou no Direito. E que tudo é uma questão de interpretação. Ora, não por acaso, Dworkin até hoje toma pauladas pelas leituras (na maior parte das vezes, fragmentadas e descontextualizadas) de suas teses. Quando falou em one right answer (uma resposta certa-correta) foi taxado de metafísico, para dizer o menos. Quando reli a proposta, e passei a falar no direito fundamental a respostas adequadas à Constituição (Verdade e Consenso, entre outros), até de paleojuspositivista me taxaram. Quem está surpreso? Engraçado, para não dizer trágico, é que muitos acham que buscar uma resposta correta é ser positivista… já outros acham que isso é jusnaturalismo, epíteto dado por muita gente a Dworkin. Dureza.

Para ser mais claro ainda: Quer dizer que não existe uma resposta correta a respeito da imoralidade da escravidão? Pode haver dúvida sobre se torturar bebês por diversão é errado? Ou tudo é relativo, a depender do livre convencimento do utente? Há dúvidas de que o mandato de um deputado é de 4 anos?

Não resisto a me reportar, de novo, à decisão do CNJ: “a tese autorizaria a conclusão de que qualquer resposta, (…) desde que não teratológica, poderia ser considerada correta (…)”. Bingo! Eis aí, à luz do dia: o “livre convencimento motivado” nada mais é do que a autorização (normativa e endossada por boa parte da “doutrina”) para que o juiz forneça, na lida com os direitos fundamentais (nada menos!), “qualquer resposta”, “desde que não teratológica” (sic). Diante de um caso difícil, anything goes. Se o direito for seu, azar o… seu. Ou a sorte, sei lá. A depender do que o juiz entenda por teratologia, se é que me faço entender. Teratológico, para mim, é admitir juízos e prescrições como essa.

No fundo, a posição do concursando — que tem de respeitar a linha interpretativa adotada pela banca, seja qual for, e adaptar as suas respostas a ela — é tão dramática quanto a de qualquer jurisdicionado. Quanto à de qualquer cidadão que, diante de um juiz, conhece, na marra, a fragilidade do “Direito” e dos “direitos” que julgava possuir. Por que é tão difícil entender isso? Respostas corretas e democracia são interdependentes. Interpretação não é opinião. Se eu tenho um direito, nem que chova, o Poder Judiciário tem o dever de o reconhecer. Esta é a sua responsabilidade. E este é o valor do cargo que ocupam e das funções que desempenham os juízes.

Ah, professor Lenio, mas não é assim “na prática”. É? E você, está fazendo o que para mudar este estado de coisas? Hein? Você, pobre concursando, que darwinianamente se adapta para passar numa prova destas, cujo caráter arbitrário me parece óbvio e escancarado, quando passar, fará o que disso tudo? Só está esperando um lugar ao sol para poder também decidir como quer ou vai guardar na memória a injustiça intrínseca desse processo e dessa forma de pensar e agir? E você, pobre advogado, faz ou vai fazer o quê?

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