Procedimento disciplinar

CNJ absolve juiz que foi alvo de retaliações pelo Ministério Público

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26 de agosto de 2015, 13h29

Apontar irregularidades na atuação de membros do Ministério Público pode ser perigoso. Até para um juiz federal. É o que mostra o caso do juiz João Bosco Costa Soares, lotado no Amapá, que desde 2008 trava uma batalha contra a procuradora da República Damaris Rossi Biaggio de Alencar e contra a procuradora de Justiça do Amapá Ivana Lúcia Franco Cei, ex-procuradora-geral de Justiça do estado.

Depois de ter tentado expor atropelos na condução de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ao Conselho Nacional do MP, o juiz foi representado pelas procuradoras no Conselho Nacional de Justiça, que, por decisão do ministro Joaquim Barbosa, então presidente, determinou a abertura de um procedimento administrativo. Na última terça-feira (25/8), o plenário do CNJ determinou o arquivamento definitivo do caso.

Por 11 votos a três, o CNJ entendeu que não havia qualquer irregularidade na atuação de João Bosco Soares, que agiu sempre, segundo o conselho, pautado no interesse de resolver da forma menos conflituosa possível os conflitos que chegaram a ele. De acordo com o voto da relatora, conselheira Ana Maria Duarte Amarante Brito, também não houve comprovação de má-fé em eventuais erros e nem de dolo. O juiz foi defendido pelo advogado Hercílio de Azevedo Aquino.

Em março de 2012, o juiz denunciou as procuradoras ao CNMP por ilegalidades na condução de um acordo. Era um TAC que João Bosco não homologou por discordar do valor em questão. O MPF recorreu da decisão, mas, antes que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região discutisse as cláusulas do acerto, a procuradora Damaris, de ofício, determinou a distribuição do dinheiro para instituições e servidores públicos que ela considerava idôneos, como o superintendente da Polícia Federal no Amapá.

Um dos beneficiários era Ivana Cei, que então pleiteava o cargo de procuradora-geral do Amapá — e depois conseguiu. Na representação ao CNMP, João Bosco afirmou que Damaris, antes que a Justiça se pronunciasse sobre a validade do TAC, determinou a transferência do dinheiro para contas pessoais, seguindo regras próprias que não estavam descritas nem mesmo no acordo.

O CNMP decidiu arquivar a representação. Disse que não existe obrigação de que o dinheiro do TAC vá para um fundo de defesa dos direitos difusos, como queria o juiz. Portanto, não haveria qualquer ilegalidade no depósito da verba em contas de servidores. O órgão também entendeu que “a celebração do TAC por membro do Ministério Público está indissociadamente ligada à sua atuação finalística”, e o Conselho não pode atuar na atividade-fim dos procuradores.

Como resultado da decisão do CNMP, abriu-se um procedimento disciplinar contra João Bosco no CNJ.

Contra a procuradora, houve uma denúncia criminal que acabou arquivada por atipicidade da conduta, mas com indicação para abertura de ação por improbidade administrativa, o que nunca aconteceu.

História judicial
Tudo começou em 2008. A procuradora da República Damaris Biaggio ajuizou uma ação civil pública contra a empresa MMX, que então fazia parte do Grupo X, de Eike Batista, por problemas no licenciamento ambiental de uma obra de mineração no Amapá. Dizia ela que a obra causaria impacto irreversível na região, além de prejudicar a população local.

A empresa, então, procurou o MPF para fazer um acordo. Foi firmado o TAC, que previa o pagamento de R$ 6 milhões às famílias envolvidas. O juiz federal João Bosco discordou do valor. Afirmou que, pelo tamanho da obra, o impacto descrito e a quantidade de famílias, R$ 6 milhões era pouco. Decidiu não homologar o TAC e convocar uma audiência de conciliação.

O procurador da República José Cardoso Lopes, então, recorreu da decisão ao TRF-1. Lá, afirmou que, como o TAC não envolvia a esfera judicial, o Judiciário não poderia barrá-lo. O recurso foi negado e hoje está em fase de exame de admissibilidade para ir ao Superior Tribunal de Justiça.

Entre a não homologação e o recurso, a procuradora Damaris Biaggio decidiu agir em nome da celeridade e do que ela chamou de proatividade.

Proatividade
Conforme descreve o próprio Ministério Público no pedido de arquivamento da denúncia criminal contra Damaris, o primeiro desvio da procuradora foi não obedecer a cláusulas do TAC que ela propôs. A principal delas era a previsão de que as obras e projetos feitos pela MMX seria auditadas por empresa independente.

Isso nunca aconteceu. A própria procuradora estabeleceu um procedimento para determinar que “agentes de órgãos públicos” abrissem contas com seus próprios CPFs, para que a empresa depositasse o dinheiro descrito no TAC. Quem faria a fiscalização seria a própria procuradora, e não uma empresa de auditoria. “Este procedimento não somente desconsidera a legislação citada na decisão do CNMP [Lei  7.347/1985, segundo a qual o dinheiro dos TACs deve ficar em fundo gerido por um conselho federal ou conselhos estaduais], como também a cláusula sétima do TAC”, diz o pedido de arquivamento da denúncia.

De acordo com a procuradora, esta manobra foi adotada para reduzir os custos do acordo para a empresa e para garantir que “o uso dos recursos fosse feito no estado do Amapá”. Ela mesmo reconhece que alguns repasses não estavam permitidos pelo TAC, mas o superintendente da Polícia Federal no Amapá, contou, “não refoge sob nenhum aspecto ao acordado”. O TAC só permitia o depósito em contas de pessoas jurídicas, segundo Damaris.

A conclusão do procurador da República que analisou o caso é a de que “a impetuosidade claramente transborda para a temerosidade toda vez que a preocupação com a ‘eficiência’ e a ‘adequação’ da forma de gastar dinheiros alheios passa a prejudicar a legalidade estrita e a cautela necessária aos agentes políticos”.

Para Damares ficou uma lição: “Nada de proatividade”. “Eu e os membros do Ministério Público estadual poderíamos simplesmente ter remetido todo este dinheiro para o Fundo de Direitos Difusos e pronto. Eles não teriam sido gastos com tanta eficiência, nem com tanta adequação, nem nesse Estado, que foi o prejudicado pela Empresa, mas assim fazendo, eu não estaria escrevendo a oitava defesa sobre o mesmo assunto”, reclama.

Já para o MPF, a lição foi “uma demonstração do voluntarismo, temeridade mesmo, com que o caso foi conduzido, em nome de uma ‘proatividade’ que não justifica desconsiderar o texto da lei e do acordo”. “Se um superintendente da Polícia Federal subitamente abre uma conta pessoal para receber vultosos recursos privados de uma empresa particular em conflito com a Justiça, e sua única habilitação para tanto é ocupar o cargo de Superintendente, o procedimento todo é bem surpreendente, pelo grau de amadorismo ou de temeridade que apresenta.”

O inquérito criminal contra a procuradora foi arquivado em maio de 2013, porque o MPF não viu indícios de crime nos atos da procuradora. Ela poderia ser denunciada por peculato doloso, mas isso só seria possível se quem recebeu o dinheiro o tivesse empregado em fins privados, o que não aconteceu, ou não ficou comprovado.

No entanto, “é muito claro que os recursos não foram bem usados”, afirma o parecer do MPF. “As diversas notas fiscais de difícil verificação, compras em sites, recibos de terceiros, aquisição de bens fungíveis de consumo imediato, tudo isto demonstra que o dinheiro foi gasto de uma maneira que se afasta muito da melhor forma administrativa.”

Improbidade
Quem representou contra as procuradoras Damaris Baggio e Ivana Cei por improbidade foi o procurador da República Manoel Pastana. Ele ganhou destaque recente por ter dados alguns pareceres nos Habeas Corpus da operação “lava jato” no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, atuando como fiscal da lei. Entretanto, ele trabalhou alguns anos junto á Justiça Federal no Amapá e conhece bem a história.

Sobre a procuradora de Justiça Ivana, Pastana afirmou que ela usou R$ 99,2 mil do dinheiro do TAC para comprar passagens de avião e ir dar palestra em eventos pelo interior do Amapá. Também foi descoberto que Ivana “doou” R$ 50 mil das verbas do acordo para a Associação do MP do estado (Ampap), da qual ela é associada.

Pastana observou que Ivana Cei estava em campanha para a Procuradoria-Geral de Justiça do Amapá. A partir disso, a defesa do juiz João Bosco no CNJ conclui que o uso do dinheiro do TAC “tinha o indisfarçável propósito de lhe favorecer politicamente na campanha para a chefia do MP do Amapá”.

Sobre Damaris Baggio, Pastana cita, por exemplo, a compra de um terreno localizado em área de proteção ambiental com dinheiro do TAC. De acordo com Pastana, a procuradora gastou R$ 35 mil numa promessa de compra de terreno que depois seria entregue ao Ibama, autarquia federa de regulação ambiental.

“Ainda que se tome tal aquisição como uma indenização de benfeitorias, permanece fortemente heterodoxo que um membro do MPF assine um termo particular de aquisição com terceiros, que será pago por uma 6 empresa privada”, diz a representação por improbidade.

Questões de foro
A representação por improbidade administrativa foi enviada por Pastana ao chefe da Procuradoria da República no Amapá. E ele enviou os documentos ao procurador-geral da República para dar encaminhamento ao caso.

Rodrigo Janot, já PGR, enviou a representação à Procuradoria da Regional República da 1ª Região, que atua no TRF-1. Janot entendeu que as procuradoras têm prerrogativa de foro na corte.

Por causa desse entendimento, a representação ficou sendo repassada entre seis procuradores da República. Todos declinaram da competência: sabem que hoje tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça concordam, em suas jurisprudências, com o entendimento levado aos tribunais pela PGR de que não existe prerrogativa de foro por função em casos de improbidade administrativa. Só ações penais por crimes comuns invocam o chamado foro privilegiado.

Com a recusa dos procuradores, os autos voltaram a Janot no dia 19 de dezembro de 2013, para que ele os redistribuísse a um procurador de primeiro grau. No dia 2 de julho do ano seguinte, o PGR decidiu analisar o caso e pediu o arquivamento argumentando que o CNMP já havia analisado o caso e entendido que não há irregularidades na atuação das procuradoras.

Punição exemplar
Na representação contra o juiz federal João Bosco, Janot atuou como custos legis, ou fiscal da lei. O papel do Ministério Público Federal no CNJ é verificar o cumprimento das leis e regras processuais, bem como o cabimento do pedido e garantir o respeito ao direito de defesa.

E nessa condição, Janot pediu que o CNJ aplicasse a punição de aposentadoria compulsória a João Bosco. É a sanção disciplinar máxima aplicável a juiz, conforme as regras da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).

Ninguém aceitou a sugestão de Janot no plenário. A conselheira Luiza Frischeisen, representante do Ministério Público Federal no CNJ, foi o voto vencido mais duro. Pediu a remoção de João Bosco da seção judiciária do Amapá.

Os conselheiros Gilberto Martins Valente e Rubens Curado pediram a aplicação de uma advertência ao juiz. Os demais 11 ministros seguiram o voto da relatora, para trancar definitivamente o PAD.

Excesso de conciliação
As acusações feitas pela procuradora Damaris Baggio contra o juiz João Bosco são de que ele marca audiências demais, promovendo “tumulto processual” e morosidade dos processos.

Em uma ação civil pública sobre o impacto ambiental da pesca desregulada de golfinhos, por exemplo, Damaris reclama que João Bosco “ampliou demais o rol de legitimados a se manifestar”. Chamou o Ibama, a Secretaria de Meio Ambiente do Amapá e estudantes de Direito de duas faculdades.

Depois de uma medida de busca e apreensão em que a Polícia Federal recolheu amostras de material radioativo, João Bosco marcou audiência pública para discutir o armazenamento desse tipo de substância.

Atuação política
Damaris também afirma que João Bosco convoca audiências e procura a conciliação “para aparecer”. Diz ela que ele tem pretensões eleitorais, tanto que divulga processos sob sua responsabilidade à imprensa local.

A versão não é corroborada pelas testemunhas. O procurador da República José Cardoso Lopes afirma contou ao CNJ que “esse processo tem cunho social, e aí causa uma ciumeira”. Cardoso afirma que é Damaris quem é “muito vinculada ao PSB”, “tanto que na última eleição que o PSB estava [numa coligação com o PSOL] na prefeitura de Macapá, a atuação dela era só contra os adversários. Isso é evidente. Todo mundo lá no Macapá sabe disso”.

O juiz João Guilherme Lages, ex-membro do Tribunal Regional Eleitoral do Amapá, corrobora o que disse o procurador. Segundo ele, quando a procuradora trabalhou no MP Eleitoral, nas eleições de 2012, tinha alvos preferenciais: “Todos os representados por ela eram da cor azul”, disse, em referência aos candidatos da coligação chefiada pelo PDT, completando que “não foi nenhuma representação contra o pessoal da cor amarela”, ao se referir ao PSB.

Segundo a defesa do juiz João Bosco no CNJ, o candidato do PSB era o hoje governador do Amapá Camilo Capiberibe, filho do senador João Capiberibe, do mesmo partido. O candidato do PDT era Waldez Góes.

Defesa dos acusadores
Na época da representação ao CNMP, os procuradores da República envolvidos na assinatura do TAC publicaram uma “nota de esclarecimento” para se defender. Eles disseram que o valor do TAC “foi integralmente destinado a órgãos públicos com atuação no meio ambiente”, como Polícia Federal e Exército Brasileiro. Em resposta, disseram ter representado contra o juiz na Corregedoria do TRF-1.

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) também saiu em defesa de seus associados. Em nota, disse que “afiança a seriedade e a imparcialidade com que se portam os procuradores da República lotados no Amapá e rechaça as acusações fantasiosas”.

Já Ivana Cei disse numa entrevista coletiva no MP do Amapá que as acusações contra ela eram “levianas e irresponsáveis”, conforme noticiou A Gazeta, de Macapá.

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