Opinião

Congresso deve poder derrubar 'atos normativos' do Judiciário

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25 de agosto de 2015, 6h32

No ordenamento constitucional brasileiro não há espaço para uma Administração que tenha como reitora de seu proceder qualquer outro paradigma para além da lei aprovada pelo Poder Legislativo. A atividade administrativa é sempre e imediatamente sub-legal, subalterna à lei, escrava mesma da lei.

Não se pode esquecer, afinal, que a Constituição da República confere ao presidente da República a competência para “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução” (artigo 84, inciso IV), a revelar que o chefe do Poder Executivo não está autorizado a inovar no ordenamento jurídico no tocante àquelas matérias reservadas à lei. Em matéria normativa, ordinariamente[1], o Poder Executivo, mesmo por seu dirigente máximo, só está autorizado a expedir decretos para a “fiel execução” da lei, pois se entende que a atividade de inovação na ordem jurídica deve ficar sob o encargo precípuo do Poder Legislativo, em debates abertos à participação de todos os matizes da sociedade, com todos os seus grupos de pressão e contradições.

Considerando que todo homem investido de poder é tentado a dele abusar (Montesquieu), o Constituinte de 1988 não desprezou a hipótese de o presidente da República exorbitar de seus poderes normativos para invadir a seara reservada ao Legislativo, agredindo então os pilares da liberdade política.

Para esses casos, em que o presidente da República não se limita a baixar decretos que tenham por escopo a “fiel execução” da lei, o artigo 49, inciso V, da Constituição atribuiu exclusivamente ao Congresso Nacional a competência de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. Trata-se de importantíssima atribuição de controle deferida ao Congresso Nacional, cujo exercício efetivo é esteio não só do princípio da legalidade, mas também dos valores da participação dos cidadãos nos rumos políticos do País.

Atualmente, em função do desenvolvimento do nosso constitucionalismo, a redação do inciso V do artigo 49 da Constituição mostra-se bastante insuficiente, pois limita a atividade de controle do Congresso Nacional sobre o exercício do poder regulamentar do Executivo. Tal circunstância representa um apequenamento tanto do Legislativo, quanto do Executivo, numa grave situação de desbalanceamento entre os poderes que deveriam ser harmônicos entre si.

Isso porque, desde 1988, foram reconhecidas ao Judiciário, ao Ministério Público, aos tribunais de contas e, mais recentemente, à Defensoria Pública, diversas competências normativas, cujo exercício não se encontra ameaçado de sanção por uma norma assemelhada à do artigo 49, inciso V, da Constituição. Em rigor, e numa interpretação que respeita os limites semânticos do texto da Constituição, na hipótese de exorbitar dos limites do poder regulamentar, apenas o Executivo está sujeito a ter seus atos normativos sustados pelo Legislativo.

A menos que se admita que, para além do Executivo, os demais poderes e funções do Estado escapam à lógica de Montesquieu, pois tomados por suposta infalibilidade, é preciso urgentemente que o Congresso Nacional assuma de fato e de direito o papel de potencial restrição e sustação de atos regulamentares praticados pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pelos tribunais de contas e pela Defensoria Pública. E deve-se registrar a gravidade dessa lacuna no caso do Poder Judiciário, com relação à sua atividade administrativa, fica de fato isento de qualquer controle, na medida em que qualquer questionamento de seus atos regulamentares desaguará única e exclusivamente no próprio Poder Judiciário. Ora, é certo que não se há de acreditar que os juízes são iluminados e infalíveis, de modo que essa lacuna põe em risco a própria noção de Estado Democrático de Direito.

Urge, pois, que seja proposta e aprovada uma Emenda Constitucional que venha a adaptar aos novos tempos os termos do inciso V do artigo 49 da Constituição, de modo a permitir que a atividade de controle de legalidade ali prevista atinja a atividade administrativa-normativa desempenhada por todo e qualquer poder ou função estatal.

A proposta ora feita de Emenda apta a atualizar os termos do inciso V do artigo 49 da Constituição colocaria sob o escrutínio do Congresso Nacional atos ditos “regulamentares” baixados, por exemplo, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que, a título de regulamentar a lei, terminaram por conceder a todos os magistrados e membros do Ministério Público um verdadeiro aumento salarial de R$ 4.377,37, sob o rótulo de “auxílio moradia”[2]. Na esteira do exemplo do CNJ e do CNPM, a Defensoria Pública da União[3] e, até mesmo, tribunais de contas da União[4] e dos estados[5] concederam a seus membros o mesmo benefício pago pelos cofres públicos. Ficariam também sob a possibilidade de glosa pelo Congresso Nacional atos como a Portaria 41/2014-PGR/MPU, por meio da qual o procurador-geral da República garantiu passagem aérea para voos internacionais na classe executiva aos membros do Ministério Público da União[6].

Longe de perturbar a necessária autonomia de que usufruem o Judiciário, o Ministério Público, os tribunais de contas e a Defensoria Pública, a alteração sugerida aperfeiçoa o sistema de pesos e contrapesos, que é inerente a todo esquema de repartição de Poderes e funções estatais. Entender de modo contrário significa insinuar que apenas o Executivo não seria de todo autônomo ou então que apenas os membros desse Poder seriam tentados a abusar no exercício de suas competências.

Fundamentalmente, é preciso que o Congresso Nacional retome o protagonismo que o Constituinte de 1988 lhe reservou quanto à atividade de inovar no ordenamento jurídico. O desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro, e a consagração ou o reconhecimento de autonomia a outros Poderes e funções do Estado não pode se dissociar da necessidade de atribuição ao Congresso Nacional da prerrogativa de sustar atos normativos que exorbitem do poder regulamentar, independentemente do órgão, instituição, função ou Poder do qual emanem. Do contrário, estará ferida de morte a cidadania, pois não será possível afirmar nem mesmo em tese que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, como faz nossa Constituição (artigo 1º, parágrafo único).


[1] Há na Constituição exceções a essa orientação, a exemplo da competência reconhecida ao Presidente da República para adoção de medidas provisórias (art. 62) bem como para expedir decretos autônomos, isto é, independentemente de uma lei autorizativa, nas estreitas hipóteses alinhadas nas letras “a” e “b” do inciso IV, do art. 84, isto é, para a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos” e para a “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”.

[2] Sobre o tema: http://www.conjur.com.br/2014-out-10/vanessa-rocha-estamos-flagrante-momento-ditadura-judicial.

[3] Tal ato foi sustado por ato do juiz Victor Cretella Passos Silva, da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal: http://www.conjur.com.br/2014-dez-10/liminar-suspende-pagamento-auxilio-moradia-defensores-publicos. O benefício, todavia, permanece vigente para Magistratura e Ministério Público, em demonstração cabal dos efeitos da ausência do controle que se apregoa neste artigo.

[4] Cf. http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tcu-libera-auxilio-moradia-generalizado,1629548

[6] Referido ato normativo encontra-se atualmente sustado em razão de decisão liminar proferida pela juíza federal Célia Regina Ody Bernardes, da 21ª Vara Federal de Brasília: http://www.conjur.com.br/2015-jul-29/justica-cassa-norma-autorizava-servidores-mpu-viajar-executiva

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