Justiça Tributária

As autuações abusivas seguem num trágico caminho cheio de armadilhas

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

24 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
Nossas autoridades fazendárias assumiram a ensandecida missão de tentar arrecadar a qualquer custo e criar dificuldades para quem trabalha e produz. Assim, conseguem apresentar números estratosféricos como sendo valores sonegados, na alucinada ânsia de justificar a incapacidade de nossos governantes de equilibrar as finanças públicas que eles mesmos sempre abalaram com sua incompetência, desídia e atos ilícitos.

Exemplo recente de ato praticado dentro desse contexto: uma indústria de artefatos de metal foi intimada pelo Fisco estadual a apresentar em apenas sete dias comprovantes de regularidade de todos os seus clientes! No caso, eram dezenas de outras empresas, sediadas em quase todas as unidades da federação.

Não lhe sendo possível em tão curto espaço de tempo atender a descabida exigência, tentou obter prorrogação do prazo, o que lhe foi negado. Diante disso, sofreu auto de infração de valor muito superior ao seu patrimônio, com exigência de tributo claramente indevido, acrescido de multa e juros!

Para fazer o auto de infração, o Fisco paulista resolveu adotar um arbitramento totalmente ilegal sob a alegação de que teriam sido “analisados os indicadores fiscais e de recolhimentos apresentados pelo sistema Infoview Análise por CNPJ – Indicadores”.

Com base nisso, entendeu o fisco que a empresa teria apresentado índices de “valor agregado” abaixo dos “considerados normais”, que seriam de  “73,21% e 81,97% em 2011 e 2012…” .

Ou seja: fez um arbitramento depois de negar ao contribuinte prazo razoável para prestar as informações exigidas e utilizou índices totalmente fora da realidade no ramo de atividade da empresa. Como é público e notório, não existe empresa metalúrgica, em qualquer país do mundo, cujo índice de valor agregado tenha sido de mais de 73% em 2011 e aumentado para quase 82% no ano seguinte! Fosse assim, esse ramo seria o mais próspero do planeta e não haveria falências no setor!

Ao defender-se na primeira instancia, pediu a autuada que o próprio Fisco promovesse as diligências administrativas que comprovassem o que se alegava no lançamento, ante o princípio de que a prova cabe a quem alega.

Como de hábito, os argumentos da defesa foram solenemente ignorados, com o órgão julgador limitando-se a homologar lançamento totalmente incoerente, incompatível com a realidade e mesmo contrário aos fundamentos do direito tributário.

Isso explica porque esta coluna já foi classificada por um ilustre colega tributarista como sendo pertencente ao ramo do realismo fantástico, eis que disse ele não existir no Brasil essa tal Justiça Tributária!

Voltemos ao exame do evidente abuso cometido contra a indústria.

O lançamento tributário é definido no artigo 142 do Código Tributário Nacional da seguinte forma:

“Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.”

Por outro lado, o artigo 149 afirma que o lançamento pode ser revisto

“III – quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;”

Os demais incisos do artigo falam ainda em falsidade, erro ou omissão,  inexatidão, dolo, fraude ou simulação como situações em que se justifica a revisão do lançamento. Nada disso é presumível, mas depende de ampla fundamentação em provas robustas.

Ora, o procedimento administrativo que constitui o lançamento é parte do processo e deve basear-se em adequada base probatória.

Qualquer processo regular, como é curial, depende de fundamento fático, conforme é assegurado no artigo 5º , inciso LV da Constituição Federal. Ao não obedecer tal norma, nem tampouco ao Código Tributário Nacional e nem mesmo à Lei Complementar Estadual 939, o lançamento deve ser considerado NULO de pleno direito.

A Constituição Federal, fonte de inspiração da mencionada Lei Complementar, em seu artigo 37 ordena que “a Administração pública, direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Ora, ao fundamentar o auto num tal índice de valor agregado, cuja apuração não é objeto de adequada divulgação nem mesmo quanto aos métodos de que se utiliza, o fisco fez um arbitramento totalmente inaceitável, resultado que é de pura fantasia ou, na melhor das hipóteses, de dados inconsistentes e desconhecidos, apurados por métodos ignorados opu pelo menos não divulgados aos contribuintes.

O Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no Recurso Especial 1.363.312-MT (2013/0002604-7), assim decidiu:

“Relator: Ministro Humberto Martins
Agravante: Estado de Mato Grosso
Procurador: Adrine Silva Costa e Outro(s)
Agravado: Sewal Hortirutil Ltda.
Advogado: Daniel Muller Abreu Lima e Outro(s)

Ementa:
Tributário.ICMS. Recolhimento antecipado. Pauta Fiscal de Valores. Ilegalidade.Art. 148 do CTN . Arbitramento da Base de Cálculo. Indíciios de Subfaturamento. Necessidade de Anterior e Regular Processo Administrativo. 1.Discute-se nos autos a legalidade da aplicação de pauta fiscal para a fixação da base de cálculo de ICMS sem necessidade de prévia instauração de procedimento administrativo. 2.O Tribunal de origem considerou que a constatação de flagrante discrepância entre o valor de mercado dos produtos transportados e aquele posto nas Notas Fiscais indica subfaturamento e traduz, em princípio, a prática da infração fiscal prevista na legisação de regência. Consignou outrossim a legalidade do arbitramento previsto no artigo 148 do CTN com posterior intauração, pela Fazenda Pública, do processo administrativo fiscal. 3.A jurisrudência desta Corte que entende pela ilegalidade do regime de pauta fiscal, haja vista que o arbitramento previsto no procedimento encartado no art. 148 do Código Tributário Nacional  somente pode se dar após a instauração de processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa. Agravo regimental improvido.”

Portanto, não cabe ao contribuinte provar que as operações que fez foram legítimas. Emitiu notas fiscais eletrônicas e todos os seus clientes estão regularmente inscritos. Presente, pois, a presunção de legitimidade dos atos praticados.

Caberia ao Fisco, que dispõe de adequados meios para isso, promover as diligencias que entendesse necessárias, utilizando-se especialmente dos famigerados convênios que mantém com as outras unidades da federação.

Nesse sentido é a nossa melhor doutrina:

“O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.”  (Grifo da reqte.) HUGO DE BRITO MACHADO (“Mandado de Segurança em Matéria Tributária” (Ed. Dialética, S.Paulo, 2003, pág. 272).

Esgotada a esfera administrativa sem que o contribuinte tenha conseguido superar um lançamento que nasceu com o rótulo do abuso e se consagrou com a parcialidade de um julgamento omisso e covarde, cabe a ele o dispendioso caminho do Judiciário, onde residem suas últimas esperanças.

E, para maior desonra da Justiça, no meio desse caminho poderão surgir as armadilhas de um processo por crime contra a ordem tributária!

No fim desse caminho, poderão ser encontrados, quem sabe, uma fábrica desativada, pessoas sem emprego e dois ex-empresários morando em outro país ou, na pior das hipóteses, vivendo à custa do esforço alheio, depois de vender todos os seus ativos e aplicar o resultado da venda na especulação. Definitivamente, como já disse Zé Ramalho, este não é com certeza o meu país!

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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