Diário de Classe

O professor que fala com as paredes
e uma outra visão do Direito

Autor

22 de agosto de 2015, 8h01

Spacca
Cada semestre que reinicia no curso de Direito renovam-se as expectativas de uma juventude desejosa de leis, parafraseando Justiniano (Juventuti cupidae legum). Ou seja, muitos alunos demandam conhecer a normatividade e possuem certa aversão pelo saber. Trata-se, nos dizeres de Pierre Legendre, de reiterar a futilidade exaltada por decorar regras[1]. A missão dos Professores deveria ser a de instaurar uma curiosidade pela busca do saber, vivenciar as imensas possibilidades do Direito, para além da leitura “manualesca”, embora necessária, mas insuficiente.

A arrogância da juventude, acossada pela leitura reiterada de artigos, julgados, enfim, fontes múltiplas e incomensuráveis, geral, no seu limite, o elogio do solipsismo, tão bem criticado por Lenio Streck, ou seja, não raro vivenciamos a inquietude de sujeito que se arvora em reproduzir os julgados, especialmente se vierem com a marca do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, como se verdade fosse. Produzimos uma fábrica de sujeitos modernos que enfrentam, quer nos foros, quer no comércio do Direito, novas coordenadas, para as quais a graduação e seu modelo padrão pouco podem auxiliar.

Por isso a proposta de Legendre de conseguirmos, quem sabe, incutir a desorientação como mote, isto é, romper por um instante com o equilíbrio habitual e aparente do Direito, com as ideias preconcebidas e a rotina mental de “naturezas jurídicas” das coisas e de sentidos sem contexto. Arriscar novos modos de enfrentar o complexo fenômeno jurídico. Mantermos a autonomia e nos abrirmos para novas miradas.

O discurso do Direito, muitas vezes, pode ocasionar a sensação de prisão racionalista em que o mistério é apagado. A simplificação aparente desfaz-se na primeira discussão no centro acadêmico ou na problematização um pouco mais sofisticada. Mas para tanto é preciso desejar saber, sob pena de permanecer na espuma do sentido das verdades a la carte[2].

O Direito pressupõe ritos e instituições, modos de encantamento e política, cujo efeito de estabilidade, todavia, não acontece por mágica. Exige, para que se possa consolidar, minimamente, de um ponto fixo, capaz de estabelecer o eixo em que a subjetividade possa gravitar. Entretanto, justamente do ponto fixo é que estamos órfãos. A geração atual e sua afirmação da vontade individual, com as relativizações dos Direitos Fundamentais, todos agora não absolutos, negociáveis e prontos para terem valor de troca, inclusive a dignidade da pessoa humana, transformaram o Direito em um espetáculo de interlúdio.

O espanto de estudar e ensinar Direito hoje decorrem, assim, do estabelecimento de um ponto de ausência de referências, cujo desejo normativo decorre, em muito, durante a graduação, do modelo em que as provas da Ordem dos Advogados do Brasil são formuladas, naquilo que já denominei de “oabtebização do Ensino do Direito”.

Fabricamos, assim, pessoas capazes de passar na prova da OAB, mas incapazes de pensar o Direito como objeto mais amplo, para além da normatividade, com suas diversas fronteiras[3]. Aliás, Richard Posner está correto ao afirmar que o formalismo jurídico, ainda que rejeitado no plano do Direito, acaba sendo ensinado por suas deduções elegantes, simplificadoras e pedantes. Daí que surge a necessidade de se abrir para novos horizontes, com os riscos da miscelânea.

Por certo há desconforto pela abertura ao externo, a saber, ao discurso que não é propriamente jurídico, mas que ao mesmo tempo é exigência de superação de sua arrogância e pedantismo. Enfim, dialogar sobre moral e ética, seus limites e objetividades, para alguns é uma profanação do Direito, ainda que na ausência de resposta jurídica seja uma válvula de escape, enquanto para outros deve necessariamente ser debatido. Não se trata, pois, de discussão alheia ao fenômeno jurídico. Talvez a herança europeia, de um certo endeusamento totalitário do Direito como conjunto de princípios e regras, precise de novas coordenadas, sob pena de não compreendermos adequadamente o que se passa, bem assim os desafios de um mundo complexo.

Não podemos, entretanto, migrar para o realismo jurídico, nem entender que Direito é o que o Judiciário estabelece, mas também não podemos desconsiderar que o exercício do poder pelo Judiciário é dispositivo de estabilização social. Rejeitar o Direito e o laço que a palavra pode ofertar é se entregar, novamente, ao massacre do mais forte, atualmente econômico. Daí o risco do império da Análise Econômica do Direito[4].  

O mais complexo é que embarcar no desafio democrático e partir sem destino garantido, nem muito menos previamente conhecido, embora a reiteração da palavra e do saber como mecanismos capazes de devolver o sujeito ao seu lugar de duvidar e enunciar, parece o desafio de cada semestre. Para tanto, contudo, não podemos manter a postura demandada de fixadores de normatividade que, ainda que desejada por muitos, nos cabe frustrar. Daí que a frustração das expectativas de acadêmicos ávidos por discursos lineares é uma tarefa, também, de cada semestre.

Luis Alberto Warat professava uma certa impostura, do risco de sair das autopistas da normatividade, dos “legalóides”, incapazes de perceber que dominam sem explicar nada. Sequer se indagam ou duvidam de seu modo de ser. Daí que dizia Warat: “Não sei quanto tempo demorará a entender que, em nome do respeito à lei e às verdades científicas, se esconde a certeza de que poucos juristas terão ‘peito’ para propor outra versão do mundo. Como a Cortázar, essa sangria de vida, produzida pela mentalidade legalóide, provoca-me um tremendo desespero. Detesto tudo o que é feito em nome da máxima seriedade, da fé na ciência e das certezas semânticas do direito. Por isso, o poético.”[5]  

Continuaremos poeticamente falando para paredes ou para poucos[6]. Mas a mínima diferença, quem sabe, seja a aposta em outra versão do Direito, cujo exemplo de Warat, de fato, faz questão. Afinal, com Fernando Pessoa, podemos dizer que “toda sinceridade é uma intolerância.”[7]


[1] LEGENDRE, Pierre. El Tajo. Trad. Iregne Agoff. Buenos Aires: Amorrortu, 2008.
[2] KHALED, Salah; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Neopelismo e Constrangimentos Democráticos. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[3] POSNER, Richard. Fronteiras da teoria do direito. Trad. Evandro Ferreira da Silva et. al. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[5] WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 200, p. 53.
[6] Paráfrase do livro LACAN, Jacques. Estou falando com as paredes. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
[7] PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 273.

Autores

  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!