Olhar Econômico

As guerras aceleraram a evolução do Direito Internacional

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

20 de agosto de 2015, 8h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]—O conhecimento científico difere do conhecimento vulgar, por implicar compreensão mais profunda, que alcança suas causas mais remotas. De modo geral, a perquirição da evolução histórica auxilia sobremodo atingir-se o conhecimento científico, por fornecer pano de fundo utilíssimo para seu entendimento e interpretação. Com o direito internacional, tal não é diferente.

No passado século, houve dois acontecimentos que muito impactaram a evolução do direito internacional: a primeira e a segunda grandes guerras. A comemoração, nestes dias, dos 70 anos do término da Segunda Guerra Mundial, constitui-se em ocasião para revisitar historicamente o evolver do direito internacional. Neste artigo, veremos seu desenvolvimento prévio e imediatamente posterior à primeira guerra. Proximamente, será a vez, de se verificar o desenrolar pós-Segunda Guerra.

Uma generalização sobre os povos da antiguidade indica que, muito embora, de forma esporádica, concluíssem tratados e enviassem representantes oficiais, a tônica era que o estrangeiro não deixava de ser inimigo. O império romano dominou, praticamente, todo o mundo conhecido e espalhou seu direito e sua nacionalidade. Findo o império romano do Oriente, o poder esmigalhou-se em centenas de coletividades territoriais, que aos poucos foram, costumeiramente, adaptando o direito romano às próprias circunstâncias.

As referidas circunscrições do mundo ocidental tornaram-se independentes, inobstante sofressem com a preponderância do Papa e do Imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Por volta do século XV, os advogados do rei de França formularam o princípio da teoria da soberania absoluta, que se espraiou, com o consequente surgimento de Estados, dotados de poder incontrastável de atribuir competências e de querer coercitivamente. Cada Estado passou a ter um ordenamento jurídico próprio, teoricamente desvinculado do dos demais e subordinando tudo e todos dentro de suas fronteiras.

Como os Estados arrogavam-se soberania, o relacionamento entre eles deveria ser regulado por um direito especial, daí o surgimento do direito internacional público. Como tratava-se de direito de coordenação entre entes soberanos, suas regras jurídicas deveriam ser aceitas, por costume ou por tratado internacional (princípio do voluntarismo), não havendo jurisdição sobre Estado, a não ser que previamente aquiescida (princípio da inexistência de jurisdição obrigatória).

A Paz de Westfália, em 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, por meio de tratado concluído entre vários Estados é o ponto de partida para a concepção do tratado multilateral, que passa a ser a modalidade de formulação do direito internacional. Essa tendência robuster-se-ia com a Congresso de Viena, de 1815, que rearranjou a Europa, após o ciclo napoleônico. A Ata Final desse Congresso criou a Comissão Central para a Navegação do Rio Reno, que inaugurou a ideia de união administrativa, embrião do que viriam a ser as organizações internacionais intergovernamentais, além do próprio direito administrativo internacional.

As Conferências da Haia de 1899 e 1907 alavancaram o internacionalismo e produziram importantes convenções internacionais. Nesse mesmo período, a problemática da troca de populações entre Estados, em decorrência do final do Império Otomano, inspiraria o movimento de proteção das minorias, antecedente remoto da proteção dos direitos humanos.

Em plena belle époque, às vésperas da Primeira Grande Guerra, florescia assim o direito internacional. Não era fácil suspeitar que os jogos do poder de então se enfrentariam, como rastilho de pólvora em escala global, depois do estopim do assassinato dos herdeiros do trono austríaco, em Saraievo, em 1914.

A Primeira Guerra Mundial encerrou-se com o Tratado de Versalhes, de que fazia parte integrante o Pacto da Liga das Nações, primeira organização internacional de finalidade ampla e aberta a todos os países do mundo. Obviamente, o objetivo mor dessa entidade era propiciar um foro aos Estados do mundo, em que pudessem conversar e resolver política e pacificamente seus diferendos. Duas importantes instituições surgidas, colateralmente, foram a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Corte Permanente de Justiça Internacional da Haia, que com jurisdição facultativa, estava aberta aos Estados.

Nos anos 20 e 30 do século passado, muito se fez para aumentar o entendimento entre os povos e evitar a repetição de conflagrações. No âmbito convencional, recorde-se: as Convenções de Barcelona sobre vias navegáveis (1921) e sobre vias férreas e portos marítimos de interesse internacional (1923); o Pacto Briand-Kellog de Renúncia à Guerra (1928), a Convenção sobre Assistência Financeira (1930) e a Convenção sobre Refugiados (1933).

Entre as razões da repetição de guerra mundial, poucas décadas após 1918, estão as seguintes. A Liga das Nações nunca mostrou-se suficientemente forte, pela não participação dos Estados Unidos da América e pelo relativo desinteresse de muitos dos membros (o Brasil retirou dela em 1926, por não ter sido eleito membro do Conselho). A maneira como a Alemanha foi tratada pelo Tratado de Versalhes e as fortíssimas reparações a que foi obrigada a pagar criaram terreno fértil para que Hitler chegasse ao poder e o nazismo proliferasse. O irredentismo italiano criou o fascismo, enquanto que o comunismo militante vicejava a partir de Moscou.

Os Estados Unidos da América, que emergira como potência mundial de primeira grandeza após a Primeira Grande Guerra e que se recolhera posteriormente ao isolacionismo, não repetiria esse erro com relação ao segundo conflito mundial. Em finais de 1941, o Presidente Roosevelt deu aos aliados o nome de “Nações Unidas”, nome esse que foi utilizado na ”Declaração das Nações Unidas” de 1942, feita inicialmente por vinte e seis nações e depois aderida por muitos outros. Os aliados imaginavam, então, como próximo o fim da guerra e se comprometeram favoravelmente à necessidade de vitória completa para proteção da vida, da liberdade, da independência, bem como da preservação dos direitos humanos e da justiça.

A Segunda Guerra somente acabou após anos de conflito e a destruição de parte considerável da Europa e do inominável flagelo das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki; e, mais dolorosamente, de milhões de mortos. Em junho de 1945, foi assinada a Carta de São Francisco, que criou a Organização das Nações Unidas (ONU), tendo-se esforçado seus idealizadores para que não tivesse ela os defeitos que haviam levado a Liga da Nações à impotência, nos inícios dos anos 30 do século XX.

Dentre os mecanismos fundamentais para tanto, estavam a criação: do Conselho de Segurança, com poderes sancionatórios reais, econômicos e militares (artigos 41 e 42 da Carta); e dos organismos especializados: Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), União Postal Universal (UPU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial — BIRD etc., entidades, que inobstante autônomas e com membros próprios, giram ao redor da organização política principal, colaborando na obtenção do resultado maior, que é a paz e, subsidiariamente, do bem estar e da prosperidade. Também importante, foi o estabelecimento (artigo 92 da Carta), da Corte Internacional de Justiça (CIJ), em sucessão ao Tribunal Permanente de Justiça Internacional, encarregado de decidir contendas jurídicas entre Estados (com jurisdição facultativa) e emitir pareceres solicitados por órgãos e organismos especializados da ONU.

A base do funcionamento efetivo do Conselho de Segurança, órgão da ONU dotado de reais poderes, cifrava-se na unanimidade dos cinco Estados permanentes — Estados Unidos da América, União Soviética, Inglaterra, França e China. Antes mesmo de terminada a guerra no Extremo Oriente, esse grupo havia-se cindido em razão da guerra fria, que colocou em campos opostos as duas principais forças mundiais, Estados Unidos e URSS. Como cada um dos cinco grandes, detinha o denominado “poder de veto”, o Conselho de Segurança ficou paralisado e inoperante, não podendo exercitar seus poderes reais.

Mesmo assim, os demais órgãos, máxime a Assembleia-Geral, fizeram o possível para manter a paz. A criação das Forças de Manutenção de Paz da ONU, os “Capacetes Azuis”, vem, desde então, sendo importante mecanismo para evitar enfrentamentos, bem como para minorar as consequências de problemas mundiais internacionais, impossíveis de terem sido evitados.

Apesar de previsto pelo Tratado de Versalhes, que colocou fim à primeira Guerra Mundial, não se pôs em prática a submissão de acusado de crime de guerra a um tribunal internacional.

A expressão Tribunal de Nuremberg é utilizada para designar uma série de julgamentos militares, realizados nessa cidade, entre 1945 e 1949, cujo nome oficial foi Tribunal Militar Internacional. Tais julgamentos tornaram-se possíveis por acordo entre Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido e França, feito em 1945, em Londres, que aprovou o estatuto dos tribunais.

Quase 200 pessoas ligadas ao militarismo, à economia ou à política da Alemanha, sendo um décimo desse total próceres nazistas, foram acusados de crimes de guerra e contra o direito internacional, tendo a grande maioria sido condenada e alguns absolvidos. Foram decretadas doze penas de morte e três prisões perpétuas, além de penas de prisão de vinte anos ou menos. Como ficou claro no julgamento de Göring, os princípios tradicionais do direito penal, de prévia tipificação do crime e fixação da pena, não foram levados em conta.

O Tribunal de Tóquio, como é conhecido o Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente, estabelecido pelo Comandante-em-Chefe dos Aliados, General Mac Arthur, com estatuto similar ao do Tribunal de Nuremberg, foi encarregado de julgar crimes contra a paz, de guerra e contra a humanidade, cometidos por dirigentes do Império do Japão, funcionou de 1946 a 1948. Julgou vinte e cinco pessoas, tendo condenado sete à pena capital, dezesseis a prisão perpétua, além de outros a penas menores. A

cusados de nível hierárquico inferiores foram julgados por outros tribunais, que funcionaram em outros locais do Pacífico. O fundamento jurídico desse tribunal foi a previsão de criação de tribunal, inscrita no Tratado firmado com os vencedores da guerra, tribunal esse que julgaria segundo normas japonesas amoldadas ao direito internacional.

Ambos os tribunais, já previstos politicamente em declaração feita ainda durante a guerra, tornaram-se urgentes em face da dominação totalitária e das horrendas atrocidades, dentro e fora dos campos de concentração, que antecederam a Segunda Guerra e continuaram enquanto ela durou.

Apesar das críticas de várias naturezas feitas contra esses tribunais, além de indicar a urgência em se corporificar um direito penal internacional, eles serviram de precedente para a criação de outros tribunais penais internacionais ad hoc (Tribunais para a Antiga Iugoslávia e para Ruanda), bem como para a imputação e responsabilização de pessoas físicas por crimes de guerra, contra a paz ou contra a humanidade.

Como se pode ver, o direito internacional desenvolve-se após guerras, como a dos Trinta Anos, as do final do período napoleônico, a primeira e a segunda guerras mundiais. Por fim, como, sempre, quem escreve a história das guerras e dos períodos subsequentes são os vencedores!

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    é decano dos professores titulares da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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