Opinião

Controle de decisões de juizados ganhou instrumentos mais sofisticados

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19 de agosto de 2015, 14h20

*O texto abaixo é o prefácio do livro Manual dos Recursos nos Juizados Especiais Federais – 5ª edição, escrito pelos juízes José Antonio Savaris e Flavia da Silva Xavier.

É muito recente, em nossa história judiciária, a institucionalização normativa dos Juizados especiais. Na Justiça Estadual, isso ocorreu há cer­ca de 15 anos, pela Lei 9.099/95; e na Justiça Federal, os juizados foram criados há uma década apenas, com a Lei 10.259/01. Pode-se dizer, portanto, que se trata de um sistema ainda em fase de acomodação, de definição do seu espaço, de sedimentação de seus institutos. Embora seja uma experiên­cia irreversível, pelos seus múltiplos resultados positivos, é de se reconhe­cer que os juizados especiais, como todas as novas instituições jurídicas, devem ser objeto de um continuado esforço no sentido de preservar sua identidade e de manter acesa a chama dos princípios à base dos quais foram modelados. Esse esforço não se resume a eventuais ajustes no plano do di­reito positivo, que são importantes para manter o instrumento afinado com o mutante perfil da sociedade em que atua, mas, sobretudo, no domínio da interpretação e da aplicação das normas já existentes. Nesse campo é parti­cularmente destacado o papel dos juízes, no plano empírico; e dos doutri­nadores, no plano teórico, na tarefa de identificar e indicar o caminho certo para que o novo modelo de jurisdição, reconhecidamente revolucionário, crie raízes não apenas em nossa prática, mas também em nossa cultura. E essa última é, provavelmente, a tarefa mais penosa: modificar o direito, no plano normativo, é apenas o passo inicial, que não produzirá os resultados desejados se não for seguido de outros, destinados a modificar também os padrões culturais, adaptando-os ao espírito do direito modificado.

Se a doutrina e os juízes têm papel destacado nesse mister, os autores da presente obra estão em posição absolutamente privilegiada, pois aliam sua incursão doutrinária à larga experiência na magistratura, com atuação justamente na área sobre a qual escrevem. Flavia da Silva Xavier, Juíza Fe­deral da Vara do Juizado Especial Cível de Ponta Grossa, no Estado do Para­ná, foi Presidente da 2ª Turma Recursal no seu estado e membro da Turma Regional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (2008-2009); e José Antonio Savaris, Juiz Federal da 1ª Vara do Juizado Especial Federal Previdenciário de Curitiba, é Membro da 1ª Turma Recursal e Coordenador dos Juizados Especiais Federais na Seção Judiciária do Estado do Paraná. Ambos têm, ademais, vivência acadêmica como professores da Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe-PR), o que contribui de modo sig­nificativo para a qualidade do seu escrito.

O tema do livro é de singular atualidade. O controle das decisões proferidas no âmbito dos juizados — que pela configuração original deveria, em regra, ficar restrito ao recurso para a respectiva turma recursal e, even­tualmente, à turma de uniformização ou, excepcionalmente, para o Supre­mo Tribunal Federal — acabou ganhando instrumentos mais sofisticados e ampliando seus domínios para alcançar, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça. Esse fenômeno tem raízes na própria transformação, verificada nos últimos anos, do conceito e, sobretudo, do conteúdo das “pequenas causas”, originalmente imaginadas como próprias dos juizados. Com efeito, resulta inquestionável, do exame da Lei 9.099/95, que as controvérsias nela supos­tas como típicas dos juizados seriam controvérsias de natureza privada, sobre relações jurídicas individuais, com objeto juridicamente disponível, fundadas em questões predominantemente de fato. Esse perfil de causas, embora mantido em grande medida (de modo especial perante os juizados estaduais), foi modificado significativamente no âmbito dos Juizados Espe­ciais Federais, a partir da Lei 10.259/01. Aqui, com a participação de entida­des públicas no polo passivo das demandas, as questões trazidas a juízo já não se fundam marcantemente nos fatos da causa, mas sim na legitimidade ou na interpretação das normas aplicáveis. Em outras palavras: não se tra­tam de questões de fato, mas de questões de direito. E mais: são questões que, em geral, não se restringem ao patrimônio jurídico individual de um ou outro jurisdicionado, mas que têm tendência a alastrar-se para grandes grupos de indivíduos, envolvidos, todos, em situações semelhantes. É o que se costuma denominar de direitos individuais homogêneos. É certo que as ações coletivas — que propiciariam o manejo dessas questões num processo único — foram excluídas da competência dos Juizados Especiais Federais (e, nesse ponto, agiu acertadamente o legislador, já que tais demandas assu­mem um perfil sob todos os aspectos inadequado ao das características e dos princípios da jurisdição especial); entretanto, essa exclusão não impe­diu que cada um dos titulares dos direitos homogêneos acorresse indivi­dualmente aos juizados especiais. Não é difícil imaginar o fenômeno que daí acabou resultando: uma grande quantidade de processos individuais com o mesmo objeto, distribuídos a diferentes juízos.

Considerando que a questão jurídica assim judicializada poderia ter soluções não uniformes no âmbito singular e das turmas recursais, revelou-se indispensável à criação de formas próprias de controle das decisões conflitantes, submetidas a um órgão uniformizador. Ademais, considerando que a mesma questão jurídi­ca estaria sujeita também a decisões perante a jurisdição comum, amplian­do o leque de possíveis soluções diferentes, tornou-se imperioso, em nome do princípio da igualdade na aplicação da lei, a criação de um sistema que propiciasse a uniformidade de interpretação em âmbito geral. Daí a previ­são de acesso ao Superior Tribunal de Justiça para dirimir eventuais diver­gências em questões sobre direito federal infraconstitucional (Lei 10.259/01, artigo 14, parágrafo 4º).

Esse mesmo fenômeno, da proliferação em grande escala de questões semelhantes disseminadas em processos diferentes, se verificou também no âmbito das relações privadas, de competência dos Juizados Especiais Federais. As relações entre consumidores e prestadores de serviço público (v.g.: telefonia) têm se mostrado pródigas, nos últimos anos, em ocorrências dessa espécie. Mostrou-se incontornável, por isso mesmo, a necessidade de entronizar nesse ambiente mecanismos de acesso a órgãos jurisdicionais de uniformização. Relativamente ao direito federal, ganhou realce o papel do Superior Tribunal de Justiça, cuja missão constitucional é justamente a de zelar pela aplicação uniforme a todos os jurisdicionados e por todos os órgãos judiciários do país dos preceitos normativos infraconstitucionais de caráter federal ou nacional. E, conforme registram os autores da presente obra, até mesmo soluções heterodoxas, como a da reclamação, foram auto­rizadas, em caráter excepcional, pelo Supremo Tribunal Federal (RE-Emb.Decl. 571.572, ministra Ellen Gracie, DJ de 26 de agosto de 2009) para propiciar o acesso ao Superior Tribunal de Justiça a fim de preservar o princípio constitucional da igualdade, que supõe, necessariamente, a aplicação isonômica da lei a casos idênticos. Com esse objetivo, a recente Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009, que dispôs sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito estadual, instituiu, a partir do seu artigo 17, um método de uniformização jurispru­dencial aplicável não apenas a esses Juizados da Fazenda, mas sim a todo o “Sistema dos Juizados Especiais” (que, segundo o disposto no parágrafo único do artigo 1º, “é formado pelos Juizados Especiais Cíveis, Juizados Espe­ciais Criminais e Juizados Especiais da Fazenda Pública”). Conforme esta­belece o artigo 19, abre-se agora, também nos juizados estaduais, a exemplo do que já ocorria nos federais, via de acesso à instância superior para di­rimir divergências e preservar a autoridade da orientação assentada pelo Superior Tribunal de Justiça.

O que se quer enfatizar, com essas observações, é o que antes ficou anotado: a importância do temário objeto dessa obra, que trata dos recursos e dos outros meios de controle das decisões proferidas nos Juizados; que, conforme se pode constatar são, atualmente, variados e sofisticados. A ma­téria foi organizada e enfrentada, na obra, em várias partes, cada uma com capítulos específicos. Inicia com uma visão introdutória do sistema geral de recursos no processo civil e dos órgãos colegiados nos Juizados Especiais (Parte I). A seguir, o enfoque é dirigido para os recursos típicos “nas instân­cias ordinárias” (Parte II) para, nas partes finais, tratar dos instrumentos de acesso às instâncias extraordinárias (Parte III) e de outras formas de impugnação de decisões judiciais aplicáveis no âmbito dos Juizados (Parte IV). A abordagem, como se percebe, é exaustiva.

Já ficou registrada a especial qualificação dos autores, na sua condição também de magistrados que atuam no sistema dos Juizados Federais. Por isso mesmo, a par do desenvolvimento doutrinário da matéria, é riquíssi­mo o cenário de situações práticas trazidas a exame, o que confere à obra uma distinguida singularidade. Registra-se, ademais, a elegância e a clare­za da linguagem, de apurada técnica, mas sem afetações, qualidades que acompanham os bons textos, alçando-os a uma posição acima da comum. O trabalho está amparado em fontes doutrinárias de grande autoridade, bem como em extenso embasamento jurisprudencial, produzidos não apenas no âmbito dos Juizados, mas também em outros importantes órgãos jurisdicio­nais, inclusive das instâncias extraordinárias.

Recursos cíveis nos Juizados Especiais Federais é, em suma, um livro de singular atualidade e de superior qualidade, que deve envaidecer, com ra­zão, os seus talentosos autores, e que certamente terá dos leitores, estudio­sos e profissionais do direito entusiástica e proveitosa acolhida.

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