Opinião

STF deve rever decisão que aceitou estados como amicus curae na ADI 5.296

Autor

  • Márcia Maria Barreta Fernandes Semer

    é procuradora do Estado de São Paulo. Especialista e mestre em Direito do Estado pela Fadusp. Presidente do Conselho Consultivo da Associação Nacional dos Procuradores integra ainda a Comissão de Controle Social dos Gastos Públicos da OAB-SP.

18 de agosto de 2015, 6h15

Desde seu ajuizamento, em abril de 2015, a ADI 5.296 proposta para questionar a constitucionalidade da autonomia atribuída pela EC 74/2013 à Defensoria Pública da União já agrega doze pedidos de ingresso como amicus curiae.

Tamanho interesse de entidades e órgãos no feito demonstra, inequivocamente, a repercussão causada pela iniciativa equivocada — a nosso juízo — da presidente, assim como a importância e o prestígio conquistados pela Defensoria Pública no cenário das instituições de Estado essenciais à Justiça no Brasil.

Dos doze pedidos de ingresso como amicus curiae apresentados perante o Supremo Tribunal Federal três particularmente chamam a atenção e merecem de fato o olhar atento dos operadores do direito.

Referimo-nos aos pedidos de ingresso como amicus curiae subscritos pelos procuradores-gerais dos estados de São Paulo, Espírito Santo e Acre, apresentados em abono à tese federal, mas utilizados também para sugerir ou suscitar, ainda que por via oblíqua, a inconstitucionalidade da autonomia das defensorias estaduais, derivada da EC 45/2004.

No trecho que segue, constante em idêntico teor nas peças deduzidas por São Paulo e pelo Acre, o propósito é evidente:

“Não obstante a questão tratada nessa ADI refira-se a servidores federais e do Distrito Federal, o Estado de São Paulo/do Acre tem total interesse na discussão nela presente, na medida em que Emenda à Constituição pode, no futuro, vir a tratar de servidores estaduais, matéria cuja iniciativa legislativa é privativa do Governador do Estado.

A título de exemplo, consigne-se que a Emenda à Constituição Federal nº 45, de 2004, também de iniciativa parlamentar, ao incluir o § 2º ao art. 134 da Constituição Federal, tratou de regime jurídico de uma categoria de servidores estaduais, matéria reservada ao Governador do Estado.

A iniciativa paulista de pleitear o ingresso como amicus curiae — levada a efeito no dia 19 de maio, Dia Nacional da Defensoria Pública — provocou imediata reação, repercutida na mídia, tanto por parte das Defensorias Estaduais — o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais dos Estados emitiu nota de repúdio — quanto das entidades representativas dos Defensores Públicos e dos Procuradores do Estado de São Paulo.

Os pedidos do Espírito Santo e do Acre, da mesma forma, geraram matérias da revista Consultor Jurídico publicadas nos dias 9 e 17 de agosto, respectivamente.

Mas para além da contestação política externada pelos organismos que vêm se manifestando sobre o tema para pôr em relevo a importância de preservação da plena capacidade da Defensoria Pública como instituição fiadora da defesa dos direitos dos hipossuficientes, parece-nos oportuno trazer à reflexão dos operadores do direito a dimensão jurídica dos atos desses procuradores-gerais, porquanto direcionados, ao que tudo indica, à defesa de entendimento contrário e potencialmente prejudicial à higidez do ordenamento consagrado no espaço territorial de seus Estados relativamente às respectivas Defensorias Públicas estaduais.

É dever do procurador do estado e por certo também dos procuradores-gerais dos estados a defesa ou proteção do ordenamento jurídico da unidade federativa que representa, assim como é dever do advogado-geral da União a defesa dos atos legais ou normativos federais.

No Estado de São Paulo, a autonomia da Defensoria Pública está consagrada na Constituição do Estado (artigo 103, parágrafo 2º, da CE/89, na redação dada pela EC 21/2006) e na Lei Orgânica estadual (LC 988/2006, artigo 7º) desde 2006, decorrendo, ademais, da EC 45/2004.

Essa autonomia jamais sofreu questionamento quanto à sua constitucionalidade por parte de quaisquer das autoridades legitimadas para tanto a teor do artigo 103 da Constituição Federal. Situação semelhante vigora no Espírito Santo e no Acre.

Afigura-se-nos, portanto, impróprio, indevido, ilegítimo que os procuradores-gerais desses Estados, e de tantos outros em semelhante situação, submetidos que estão ao dever de guarda de um ordenamento inquestionado por quem tem competência para fazê-lo, patrocinem, de per si, seja na Administração, seja em juízo, qualquer ato preordenado a por em questão ou malferir referido atributo institucional da Defensoria Pública.

A específica iniciativa dos procuradores-gerais de São Paulo, Espírito Santo e Acre de requerer ao STF o ingresso como amicus curiae dos respectivos Estados na ADI 5.296 para advogar a inconstitucionalidade do processo legislativo que consagrou a autonomia conferida à Defensoria da União pela EC 74/2013, sob a justificativa fundamental de semelhança entre o processo legislativo que resultou na EC 74/2013 e aquele da EC 45/2004 que conferiu autonomia às Defensorias Estaduais, põe em xeque — e essa é nossa compreensão — o interesse jurídico dos Estados que representam na manutenção da ordem legal vigente em seu território, sagradora da autonomia como atributo institucional da Defensoria Pública.

Trata-se, portanto, de iniciativa ilegítima, que mereceria ser repelida pelo STF, mediante a não admissão desses Estados no processo em questão. Talvez a ministra Rosa Weber ainda possa rever a decisão de admiti-los, porque efetivamente falta legitimidade aos procuradores-gerais requerentes.

De outra parte, patrocinar causa que contraria o interesse jurídico do ente federativo que representa é conduta grave para um advogado público, máxime para um procurador-geral do Estado. Constitui, em princípio e nessa linha de entendimento, uso indevido e abusivo do cargo, manejado em direto desvio de finalidade.

Por ofender, ademais, os deveres imanentes à função pública de respeito à legalidade e lealdade às instituições pode ensejar processamento por ato de improbidade (Lei 8.429/92, artigo 11, caput), por crime de responsabilidade e provocar o impeachment, nos termos da Lei 1.079/50, artigo 9.

A preservação do Estado Democrático de Direito exige que sejamos atentos aos papéis ou competências atribuídos a cada um dos atores estatais, garantindo que cada qual atue nos estritos limites de suas responsabilidades constitucionais e legais.

A repartição de competências ou atribuições é, afinal, o cerne da vida democrática, de modo que a observância ou respeito aos limites daí decorrentes constitui o divisor de águas entre a democracia e a barbárie.

O procurador-geral do Estado tem por papel defender as instituições de Estado. Aquele que desborda ou desvia desse caminho, seja lá qual for a motivação, não compreendeu adequadamente o seu lugar no concerto das relações de Estado. E essa compreensão é fundamental para que não se confunda autonomia com independência. A independência é atributo dos Poderes, não das funções essenciais à Justiça. 

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