Opinião

Advocacia Pública somente se vincula ao órgão jurídico que a integra

Autor

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

18 de agosto de 2015, 7h38

O Título IV da Constituição regulamentou e disciplinou a Organização dos Poderes, entre o Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário e Funções Essenciais à Justiça.

Entre as Funções Essenciais à Justiça a Carta Magna não fez qualquer menção à prevalência de uma instituição ou órgão, colocando no mesmo patamar o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia stricto senso, cabendo a todos esses órgãos/instituições exercerem a preservação da “Justiça” entre seus deveres mediatos.

O capítulo referente às Funções Essenciais à Justiça encontra-se dentro do Título IV, Da Organização dos Poderes. Essa sistematização foi observada para atender os preceitos modernos do Estado Democrático de Direito.

Montesquieu, ao descrever sua teoria sobre a Tripartição dos Poderes, já alertava sobre a possibilidade de, em determinada época, haver prevalência de um Poder em relação aos demais. Os freios e contrapesos seriam a forma de manter a harmonia. Ocorre que sua teoria teve como parâmetro o absolutismo europeu, sendo necessário adaptá-la ao surgimento do Estado Democrático de Direito.

Assim, o Poder Constituinte Originário, atento às lições de Montesquieu, positivou, no artigo 2º da Constituição Federal de 1988, entre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a Separação entre os Poderes, que é cláusula pétrea, ante o que preceitua o artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, da CF/88.

Entretanto, o Constituinte não estava satisfeito apenas com essa garantia e, necessitando dar maior efetividade a esse equilíbrio, incluiu na Organização dos Poderes um novo capítulo, Das Funções Essenciais à Justiça.

Nesse novo capítulo, o Constituinte incluiu órgãos e instituições que possuem atribuições de defender a sociedade, o Estado, os hipossuficientes e o cidadão, dentro de um mesmo patamar hierárquico, exigindo um entrelaçamento dessas funções.

Logo, no cenário político nacional após a Constituição de 1988, o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes, dentro de uma perspectiva do Estado Democrático de Direito, serão concretizados, em parte, por meio das Funções Essenciais à Justiça.

Ressalta-se, nesse pormenor, que o papel incumbido à Advocacia Pública não está atrelado ao capítulo referente ao Poder Executivo, tendo em vista que a intenção do Legislador Constituinte ao incluir a Advocacia Pública entre as Funções Essenciais à Justiça foi criar um órgão técnico capaz de prestar auxílio ao Governante e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses sociais.

O Constituinte Originário promoveu, assim, a concentração da atividade contenciosa e de consultoria da administração pública em uma única instituição. No âmbito da União, esse papel é exercido pela Advocacia-Geral da União, e nos Estados e Municípios por suas respectivas procuradorias, privilegiando uma racionalidade administrativa no exercício de tão relevantes funções.

Assim, atribui-se à Advocacia Pública o mister de representar judicial e extrajudicialmente os entes federados e prestar assessoria e consultoria jurídica ao Poder Executivo.

Representar judicial e extrajudicialmente importa exercer a função de representação do ente nas instâncias administrativas e judiciais. Importa, ainda, fazer a defesa judicial dos três Poderes, o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, bem como os Tribunais de Contas, Ministério Público e os demais órgãos que componham o ente.

Prestar assessoria e consultoria ao Poder Executivo é exercer a missão de formatação jurídico-constitucional das políticas públicas desenvolvidas pelo citado poder constitucional, com vistas a assegurar e atender os direitos e garantias fundamentais constitucionais dos cidadãos. Mais concretamente, consiste na orientação jurídica a todas as autoridades administrativas responsáveis pela prática de atos administrativos, pela contratação, pela elaboração de atos normativos, em suma, autoridades incumbidas da materialização de políticas públicas.

Do texto constitucional exsurgem o destacado papel e a relevância das funções de representação judicial e extrajudicial e de assessoramento e consultoria, sobretudo em relação à análise prévia da conformidade dos atos administrativos com os interesses públicos insculpidos na Constituição Federal e nas leis.

A concentração da representação judicial e extrajudicial da União, dos Estados e dos Municípios em uma única instituição, foi o desenho e a vontade do próprio Constituinte Originário.

A subordinação administrativa de membros da Advocacia Pública a órgão não jurídico impõe sensível dificuldade a sua livre atuação. Quais limites do que é administrativo e quais os limites do que é subordinação técnica e jurídica, na prática dificilmente se poderia delimitar com clareza.

A situação de subordinação dos membros da advocacia pública a órgão estranho à Advocacia-Geral da União, no caso da União, e estranho às Procuradorias-Gerais dos Estados e Municípios, no caso dos estados e municípios, corrompe o modelo institucional de concentração da atividade de representação judicial e extrajudicial e de assessoramento e consultoria jurídica desenhado pelo Constituinte Originário, no artigo 131, caput e parágrafo 1° da Constituição com relação à União, que, por simetria, deve ser aplicado aos estados e municípios.

De outra ponta, somente se autorizou a existência de consultorias ou órgãos de assessoramento independentes da instituição central de representação judicial e extrajudicial e assessoria e consultoria jurídica no caso dos Estados-Membros, ainda assim, apenas aquelas que já existiam quando da promulgação da Constituição, nos termos do artigo 69 da ADCT:

“Art. 69. Será permitido aos Estados manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções.”

A propósito, pontuou o ministro Gilmar Mendes que “a exceção prevista no artigo 69 do ADCT indica cabalmente que a tolerância do sistema constitucional para com um modelo descentralizado há de ficar limitada às Consultorias Jurídicas separadas da Procuradoria-Geral existentes na data da promulgação da Constituição” (ADI 1.679-GO).

Também manifestou sobre a inconstitucionalidade da dupla vinculação hierárquica o professor de Direito Administrativo e Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Gustavo Binenbojm, em parecer sobre o projeto da nova Lei Orgânica da AGU, Projeto de Lei Complementar 205/2012, asseverando[1]:

“A previsão de dupla subordinação, contudo, desrespeita a Constituição. Em primeiro lugar, ela afronta textualmente o art. 131, §1º, do Texto Maior, que atribui ao Advogado-Geral da União – e somente a ele – a chefia da Instituição.
(…)
A letra expressa do dispositivo é muito clara: as carreiras da Advocacia Pública federal têm como único chefe o Advogado-Geral da União. Note-se que o constituinte não fez restrições. Não limitou a relação de chefia a algumas carreiras da AGU, nem restringiu a que tipo de vínculo ela se estenderia – se técnico ou administrativo. Por evidente, onde ao constituinte originário não ocorreu fazer a distinção, por razões lógicas, sistemáticas e institucionais, não cabe ao legislador infraconstitucional pretender fazê-lo.

Assim, não somente os Advogados da União, responsáveis pela representação judicial e extrajudicial do ente federal e pela consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, estão sob o comando do Advogado-Geral da União, como também: os Procuradores da Fazenda Nacional, encarregados da representação da União em causas fiscais e pelo assessoramento e consultoria no âmbito do Ministério da Fazenda; os Procuradores Federais, que atuam na representação judicial, extrajudicial, na consultoria e assessoramento jurídicos das autarquias e fundações públicas federais; e os Procuradores do Banco Central, que se submetem, em última instância, ao Advogado-Geral da União. É o AGU o órgão central de todas as carreiras jurídicas da Advocacia Pública federal brasileira por firme determinação da Constituição.
(…)
Mas a violação à Constituição vai além. Ela se revela ainda mais grave sob a ótica dos efeitos que a dupla subordinação pode gerar para o exercício da Advocacia de Estado. É que, como se viu, compete à AGU o exercício da função essencial de compatibilizar as políticas públicas legítimas, definidas por agentes públicos eleitos, ao quadro de possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento jurídico. O desempenho de tal tarefa só é possível com a garantia da autonomia técnica. Ocorre que a subordinação ampla de seus membros a órgãos de cúpula da Chefia do Poder Executivo, ainda que no plano administrativo, prejudica severamente o exercício dessas atribuições.

Não há como separar o técnico do administrativo de forma plena, sem que um exerça influência sobre o outro. A autonomia administrativa é instrumento para a autonomia técnica. Se o Advogado Público deve obediência a ordens de Ministros de Estado, e se pode inclusive ser responsabilizado por desrespeito a essas ordens (como se viu a propósito do art. 26, §6º, do PLC), sua esfera de autonomia poderá ser tolhida no momento em que chamado a proferir manifestações técnicas. Estará hierarquicamente vinculado; reduzido em sua vontade e atuação independente. E é justamente esse resultado que o constituinte pretendeu evitar ao conferir à Advocacia Pública o status de função essencial à Justiça.”

Resta então claro que o modelo do artigo 131 da Constituição Federal deve se aplicar a todos os entes da federação. Apenas os órgãos jurídicos são responsáveis por superintender e coordenar as atividades dos Advogados Públicos, cujo intuito precípuo de estabelecer as melhores diretrizes para o adequado desempenho de seu múnus não pode violar sua livre atuação em favor do interesse público.

Ante esses fundamentos a Comissão Nacional da Advocacia Pública do Conselho Federal da OAB editou a súmula 3:

Súmula 3 – A Advocacia Pública somente se vincula, direta e exclusivamente, ao órgão jurídico que ela integra, sendo inconstitucional qualquer outro tipo de subordinação.


[1] Disponível em: < http://s.conjur.com.br/dl/parecer-gustavo-binenbojm-projeto.pdf> Acesso em: 20.07.2015.

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  • Brave

    é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública da OAB, ex-presidente do Fórvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

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