Direito constitucional

Direito da defesa criminal não pode ser suprimido pelo Estado

Autor

  • Geraldo Prado

    é investigador do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Ratio Legis — Centro de Investigação de Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autónoma de Lisboa professor visitante da Universidade Autónoma de Lisboa advogado criminal e autor de livros e artigos sobre processo penal.

15 de agosto de 2015, 9h09

É lugar comum entre os juristas a menção ao fato de que vivemos tempos nos quais as práticas autoritárias das ditaduras infiltram-se e tomam a forma de atos de autoridade aparentemente válidos porque encontram respaldo em uma opinião pública que reclama maior “eficiência no combate à impunidade”.

Versões rapidamente passam por verdades absolutas e pessoas são sumariamente despojadas de direitos, sem que a sociedade civil esboce reação, salvo, paradoxalmente, os aplausos ao processo de sepultamento de garantias que fizeram parte da história das lutas democráticas nos últimos setenta anos.

Sangrar o inimigo de ocasião, impor humilhações públicas e devassar a privacidade das pessoas configuram estratégias de “combate”, para as quais concorrem, sem pudor, declarações diárias de violação de direitos fundamentais que são objeto de aclamação até mesmo em setores sociais com frequência visados por atos de arbítrio.

As manifestações de 2013 foram alvo de brutal repressão, patrocinada por alguns órgãos do aparelho de segurança pública que tem por função constitucional proteger pessoas e patrimônios e assegurar o exercício ao direito de manifestação. Ao revés, infelizmente, alguns destes aparelhos foram responsáveis por inaudita violência e neste contexto manifestantes foram eleitos “inimigos da ordem”, ao tempo em que seus advogados eram taxados de associados da desordem.

A defesa criminal, em juízo e mesmo antes disso, foi tratada publicamente como ilegítima representação de interesses espúrios, a ponto de justificar, em um primeiro momento, a investigação de advogados, no exercício de sua profissão, com recurso à interceptação das conversas telefônicas entre causídicos e clientes, ao melhor estilo do filme alemão “A vida dos outros” (2007).

Houve necessidade de o Superior Tribunal de Justiça conceder habeas corpus de ofício (RMS nº 47.481/RJ), em 7 de maio último, para colocar um paradeiro à absurda situação.

Não se trata apenas da eclosão episódica de arroubos autoritários, algo que ocorre nas democracias. Aliás, estou cada vez mais convencido de que não se trata de atos episódicos, de forma alguma. O que se verifica com maior frequência e aceitação popular é a demolição do direito de defesa, reduzido à condição de “espertezas e mentiras” por meio das quais “advogados em conluio com culpados” engendrariam as condições para a impunidade destes últimos.

Opera-se no nível mais elementar da desqualificação da advocacia, a ponto da insensatez promover a violação do vínculo de confidencialidade entre o cliente e seu advogado, intromissão que se pretende justificar com o manejo rudimentar de figuras de linguagem, como na recente apreensão de bilhete em tese dirigido por preso ao seu advogado (caso Lava Jato).

Sabe-se que o autoritário tem dificuldade em lidar com ironias. Basta lembrar das censuras às músicas e peças teatrais, em nossa recente ditadura. O que se desconhecia, até o caso do bilhete, era a incapacidade de compreender metáforas corriqueiras no cotidiano da própria profissão! Sorte do Barão de Itararé – saudoso Apparício Torelly – não estar entre nós. Do contrário, o famoso “entre sem bater” não seria suficiente para livrar-lhe do estorvo da agressão.

O que conecta o caso dos manifestantes ao do bilhete é algo inequívoco e por isso mesmo assustador: o Estado pretende “lutar contra” pessoas investigadas e não apurar fatos. E presume que possa fazer isso imobilizando estas pessoas quer por meio da prévia desqualificação pública, para a qual a ocorrência de vazamentos parciais de termos da investigação mostra-se eficiente detonador de reputações, quer impedindo-as de se defender no âmbito de um procedimento com as garantias que a Constituição ainda em vigor assegura.

A única defesa possível, segundo a lógica da incriminação da relação entre cliente e advogado, rememora passagem clássica do modelo de processo penal autoritário que inspira ações do gênero: o programa do Partido Nacional Socialista alemão de 24 de fevereiro de 1920 reputava inaceitável a equiparação entre direitos do investigado e do Ministério Público e propunha a “persecução impiedosa daqueles cujas atividades sejam prejudiciais ao interesse comum”.

O resultado, consagrado na lei alemã de 01 de setembro de 1939, consistiu em definir a função do advogado de defesa como “colaborador do juiz na averiguação da verdade”, cabendo ao advogado defender os interesses de seu cliente somente “quando estes interesses fossem compatíveis com o bem-estar do Estado”. Era um tempo em que defensores eram presos pelos nazistas por exercerem… a defesa de seus representados.

Há muitas questões jurídicas e um extraordinário lastro histórico a amparar a garantia da inviolabilidade do sigilo na relação entre defensores e defendidos. O que lamento, para além do que parece ser o generalizado desconhecimento dessa história e de seus fundamentos jurídico-políticos, é que o tema tenha voltado a ser atual nessa quadra de nossa experiência social.

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