Opinião

Na disputa entre Bush e Gore, venceu a visão voluntarista

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13 de agosto de 2015, 9h34

A eleição entre Bush e Gore[1] estava muito apertada, naquele 8 de novembro de 2000, e o candidato que ganhasse as eleições, no voto popular e direto, no Estado da Flórida, estaria eleito. A Lei Eleitoral da Flórida, após os resultados divulgados, exigia que se realizasse uma recontagem de votos, a menos que o candidato derrotado a dispensasse. Gore, logicamente, não aceitou a vitória de Bush e requereu a recontagem de votos na justiça local. A diferença pró-Bush, posterior à recontagem, encolheu de 1.782 para 327 votos. Somado a este fato, as cédulas dos eleitores, que votavam no exterior, ainda não haviam sido contadas.[2]

O tema chegou ao Tribunal Estadual da Flórida que: (i) ordenou que os resultados da recontagem de Palm Beach, juntamente com os resultados parciais da recontagem interrompida de Miami-Dade, fossem somados às totalizações dos candidatos, uma providência que diminuiu a vantagem de Bush em mais 200 votos; (ii) ordenou que todos os votos em branco, cerca de 60 mil, fossem recontados à mão, inclusive o saldo dos votos em Miami-Dade; (iii) ordenou que a recontagem fosse feita por técnicos judiciários no Estado, em lugar de juntas eleitorais dos condados ou, ainda, por representantes eleitorais oficiais do Estado; (iv) recusou-se a estabelecer critérios para a recuperação de votos de cédulas danificadas mais específicos do que a intenção do eleitor e (v) se recusou a autorizar uma recontagem de cédulas com excesso de votos, isto é, cédulas que continham votos ou marcações interpretáveis como votos para mais de um candidato para o mesmo cargo. Havia cerca de 110 mil votos em excesso no Estado da Flórida.3

Bush recorreu para a Suprema Corte que suspendeu a decisão do Tribunal da Flórida, no dia 12 de dezembro, com os votos dos justices Rehinquist, O’ Conor, Scalia, Kennedy e Thomas formando a maioria. Para a Suprema Corte, a recontagem de votos seria uma negação da proteção igualitária das leis. A decisão entendeu que as determinações (i), (ii), (iv) e (v) criavam diferenças no tratamento das cédulas de eleitores diferentes.

Os justices Souter[4] e Breyer[5] concordaram que a ordem de recontagem levantava problemas de proteção igualitária (algo que exigia reparo), mas entenderam que o melhor seria enviar o assunto de volta para o Tribunal da Flórida determinar uma recontagem apropriada dos votos. Os justices Stevens[6] e Ginsburg[7] dissentiram da maioria, porque entenderam que a ordem de recontagem não violava qualquer disposição legal.[8]

Para Posner a decisão da maioria da corte foi acertada porque uma recontagem poderia ter levado à eleição de Gore e gerado uma crise institucional no país. Até a nomeação de Gore estaria ameaçada, pois, dependendo do modo como a Lei Eleitoral fosse interpretada, o Congresso poderia ter de decidir a questão. Houve quem sugerisse o risco de caos.[9]

De fato é difícil saber o que aconteceria se a Suprema Corte devolvesse a questão para o Tribunal da Flórida e este determinasse a recontagem de votos e Gore fosse o eleito. Teria ocorrido o atentado de 11 de setembro no caso da eleição de Gore? Como ele teria reagido a este?[10] Será que a dita guerra preventiva “contra o terror” teria sido declarada e o Iraque e Afeganistão invadidos? A postura de Gore teria sido mais positiva que a de Bush para enfrentar estas questões? São respostas realmente difíceis, mas parece inegável que a maioria dos justices se pautou por um consequencialismo enviesado do tipo conservador.

Em temas como o aquecimento global, Gore provavelmente teria assinado o pacto de Kyoto e promoveria uma regulação mais incisiva sobre os gases de efeito estufa nos Estados Unidos. Tratando-se de um democrata, se reeleito [partindo do pressuposto de sua eleição em 2000], provavelmente providenciaria uma regulação mais ativa do mercado, com chances de ter evitado a crise de 2008, ao menos nas proporções que tomou. Muitos acreditavam que as credenciais e qualificações de Gore eram muito superiores às de George W. Bush, apesar de haver vozes céticas.[11]

Embora a decisão da Suprema Corte a favor de Bush tenha sido atacada pelos democratas, curiosamente não levou a um abalo considerável da imagem da corte. Pelo contrário, em junho de 2000 [antes das eleições], 47% dos americanos tinham uma boa confiança na corte. Um ano mais tarde, seis meses após o julgamento de Bush v. Gore, esse número tinha se elevado para 50%. A Suprema Corte foi mais bem avaliada do que a Presidência da República [47%] e Congresso [26%].[12]

Seja como for, não por acaso, a corte mereceu duras críticas do saudoso Dworkin para quem “no infame caso de 2000, Bush v. Gore, cinco juízes conservadores votaram em conjunto para legitimar a eleição de George W. Bush, apresentando apenas argumentos frágeis. Eles chegaram a declarar que aquela decisão não poderia ser considerada como precedente em casos futuros”.[13]

Em suma, por ora, o que parece incontestável é que a Suprema Corte adotou visão eminentemente voluntarista em sua decisão majoritária, sopesando consequências a seu talante, e deixando de lado os deveres mínimos de fundamentação jurídica consistente. Foi legitimada a falta de transparência no processo eleitoral ferindo a máxima do one man, one vote. Nesse caso, os Justices dissidentes e a doutrina capitaneada por Dworkin parecem ter a razão. O tribunal da história dirá…


1 Bush v. Gore. 531 U.S. 98 [2000].

2 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 251-273.

3 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 255.

4 De acordo com o Justice Souter: “The case should be remanded to the Florida Courts with instructions to establish uniform standards in any further recounting”.

5 Consta no voto do Justice Breyer: “This Court should resist the temptation to resolve tangential legal disputes, where doing so threatens to determine the outcome of the election”.

6 Segundo o Justice Stevens: “While the use of differing substandards for determining voter intent counties employing similar voting systems may raise serious concerns, those concerns are alleviated by the fact that a single impartial magistrate will ultimately adjudicate all objections arising from the recount process. The loser in this Presidential election is the Nation’s confidence in the judge as an impartial guardian of the rule of law”.

7 Para a Justice Guinsburg: “The Court contradicts the basic principle that a State may organize itself as it fit Article II does not call for the scrutiny taken by this Courts”.

8POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 256.

9 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 258.

10 Para Poesner vários eleitores de Gore ficaram aliviados depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, pelo fato de que Bush, em vez de Gore, era o Presidente (POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 261).

11 POESNER, Richard. Law, pragmatism, and democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 261.

12 Gallup Organization, Confidence in Institutions, June 8-10, 2001.

13 DWORKIN, Ronald. A Victory Bigger than We Knew. In: The New York Review of Books, v. 59, n. 13 [2012].

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    é juiz federal, é ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) [2010-2012]. ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) [2008-2010]. Doutorando e Mestre em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School.

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    é advogado, professor das faculdades de Direito da PUC-RS e UFRGS, presidente do Instituto de Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público. Pós-Doutorado pela Universidade Estatal de Milão.

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