Tribuna da Defensoria

Defensoria Pública hoje tem papel de "amiga" do ordenamento jurídico

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11 de agosto de 2015, 8h02

A figura do amicus curiae ganhou bastante repercussão com a edição da Lei 9.868/99, mediante a regulamentação do procedimento de controle objetivo de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A possibilidade de intervenção de órgãos, entidades especializadas e demais interessados que possam contribuir para a apreciação da constitucionalidade das normas a partir da interpretação da Constituição Federal é um excelente canal de interlocução democrática do Poder Judiciário com a sociedade.

Apesar da limitada hipótese de atuação do amicus curiae prevista no artigo 7º, parágrafo 2º da Lei 9.868/99, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com o passar dos anos e a objetivação de outros mecanismos processuais, ampliou a intervenção processual na qualidade de amicus curiae, a exemplo do julgamento de recursos repetitivos no seio do Superior Tribunal de Justiça, ante o reconhecimento da índole objetiva do procedimento recursal.

Na ADI 4.636, em que a Ordem dos Advogados do Brasil pretende discutir dispositivos da Lei Complementar 132/09, o Supremo Tribunal Federal autorizou a intervenção da Defensoria Pública bandeirante no processo, com fundamento na Lei 9.868/99. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública da União foi admitida a intervir como amicus curiae nos Recursos Especiais 1.111.566 e 1.339.31. Entretanto, nos Recursos Especiais 1.371.128 e 1.333.977, o STJ obstou a atuação da Defensoria Pública da União, argumentando que a simples atuação da instituição em vários processos representativos da controvérsia não seria suficiente para autorizar a interveniência da Defensoria Pública[1].

O Superior Tribunal de Justiça poderia ter melhor se debruçado sobre o tema, já que a conclusão de sua decisão partiu de uma premissa frágil: a limitação da atuação da Defensoria Pública como amicus curiae dependeria tão somente da demonstração do desempenho de uma função típica. Cremos que qualquer das funções institucionais previstas na Constituição e na Lei Complementar 80/94 permite a representatividade adequada da Defensoria Pública como exige o artigo 138 do novo Código de Processo Civil. Não é a hipossuficiência econômica que justificará a atuação da Defensoria Pública, até porque a atuação institucional nem sempre depende da análise do aspecto econômico.

Um dos grandes avanços do novo Código de Processo Civil foi a ampliação da hipótese de atuação do amicus curiae, não mais restrita a processo objetivo de controle de constitucionalidade previsto na Lei 9868/99, mas a qualquer hipótese relevante e de repercussão social. As novas funções e legitimações previstas no CPC/2015 são a prova viva de que a Defensoria Pública assume um novo papel no ordenamento jurídico, o que significa reconhecer que a figura do amicus curiae merece interpretação ampliativa, potencializando a atuação da Defensoria Pública.

A representatividade adequada da Defensoria Pública para atuação como amiga da corte não deve ter como parâmetro a hipossuficiência econômica das partes envolvidas em litígio. O norte interpretativo deve ser o artigo 134 da CRFB, o artigo 4º da LC 80/94 e as disposições da legislação estadual ou distrital respectiva.

Toda vez que o objeto da demanda estiver contido em alguma das funções institucionais a pertinência da atuação da Defensoria Pública estará satisfeita, já que a Defensoria Pública nem sempre tutela os direitos de partes necessitadas do ponto de vista econômico.

Vamos tomar dois exemplos diferentes para reflexão sobre a atuação da Defensoria Pública.

No Rio de Janeiro, a Defensoria Pública fluminense se habilitou como amicus curiae em Agravo de Instrumento da relatoria do desembargador Alexandre Câmara, demonstrando a diferenciação entre os conceitos de assistência jurídica e gratuidade de Justiça, algo ainda não bem digerido na doutrina não institucional e na jurisprudência dos tribunais[2]. Neste primeiro caso, a pertinência temática é evidente, já que o objeto do processo é a própria atuação da Defensoria Pública, o que justificaria a sua contribuição, como amiga da corte, para estatuir que a avaliação do direito a assistência jurídica é uma atividade privativa dela própria, que não se confunde com a apreciação do direito à gratuidade de Justiça, que pertence ao Poder Judiciário.

O segundo exemplo pode aparentar certa perplexidade, especialmente para aqueles que não conhecem a Defensoria Pública profundamente e a encaram como uma mera repartição pública destinada ao atendimento burocrático da população humilde. Recentemente, a Associação Nacional dos Defensores Públicos noticiou que a Defensoria Pública capixaba teria ingressado como amicus curiae em processo objetivo de controle de constitucionalidade deflagrado contra atos normativos editados pela Justiça bandeirante para a regulamentação da audiência de custódia[3]. A pertinência e utilidade da audiência de custódia são, talvez, os temas mais discutidos nesta época do Processo Penal e, arrisco-me a dizer, o colega Caio Paiva é quem tem mais se debruçado acerca dos estudos sobre a modernização da tutela da liberdade[4]. O foco aqui pretendido, no entanto, reside em demonstrar como a pertinência temática da Defensoria Pública é ampla o bastante a ponto de lhe permitir a intervenção nas questões jurídicas que tenham relevância social correlata às suas funções institucionais.

Muitos poderiam, como efetivamente já fazem ou farão, após essa advertência, lançar tomates ao palco onde a Defensoria Pública se apresenta, afirmando que os membros da instituição estariam desvirtuando o seu papel. A realidade é que ninguém conhece o que é a Defensoria Pública do século XXI. Desde 2007, a instituição vem sofrendo vários upgrades para se amoldar à nova realidade social. A Lei Complementar 132/2009 e a Emenda Constitucional 80/14 tornaram expressa a função institucional defensorial de promoção dos direitos humanos.

Ora, se a obrigação de realizar a audiência de custódia tem sede na Convenção Americana de Direitos Humanos, em vigor no ordenamento jurídica há décadas, cuja natureza supralegal é expressamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a inércia do Poder Judiciário não pode passar em branco ao largo do olhar da Defensoria Pública. É a missão de promoção desses direitos que credencia a Defensoria Pública para a representatividade adequada no âmbito do desempenho da função de amicus curiae. Por via reflexa, como bem exposto pela Defensoria Pública do Espírito Santo, há o papel de atuação nos estabelecimentos prisionais (artigo 4º, XVII da LC 80/94) e o de acompanhamento do inquérito policial e da prisão cautelar (artigo 4º, XIV da LC 80/94, artigos 289-A, parágrafo 4º 306, e parágrafo 1º, ambos do CPP), que ouso também acrescentar.

Já é mais que hora de superar o preconceito existente com a instituição voltada para a tutela jurídica dos hipossuficientes e dos direitos humanos, deixando-se evidente que a Defensoria Pública não pretende assumir os papéis de outros personagens do ordenamento jurídico. Na realidade, nosso objetivo é assumir espaços recusados ou negligenciados pelos demais atores processuais e que mereçam a tutela estatal adequada.

 


[1] Direito Processual Civil. Intervenção como amicus curiae em processo repetitivo. Não se admite a intervenção da Defensoria Pública como amicus curiae, ainda que atue em muitas ações de mesmo tema, no processo para o julgamento de recurso repetitivo em que se discutem encargos de crédito rural, destinado ao fomento de atividade comercial. Por um lado, a representatividade das pessoas, órgãos ou entidades referidos no parágrafo 4º do artigo 543-C do CPC e no inciso I do artigo 3º da Resolução 8/2008 do STJ deve relacionar-se, diretamente, à identidade funcional, natureza ou finalidade estatutária da pessoa física ou jurídica que a qualifique para atender ao interesse público de contribuir para o aprimoramento do julgamento da causa; não é suficiente o interesse em defender a solução da lide em favor de uma das partes (interesse meramente econômico). Por outro lado, a intervenção formal no processo repetitivo deve dar-se por meio da entidade de âmbito nacional cujas atribuições sejam pertinentes ao tema em debate, sob pena de prejuízo ao regular e célere andamento deste importante instrumento processual. A representação de consumidores em muitas ações é insuficiente para a representatividade que justifique intervenção formal em processo submetido ao rito repetitivo. No caso em que se discutem encargos de crédito rural, destinado ao fomento de atividade comercial, a matéria, em regra, não se subsume às hipóteses de atuação típica da Defensoria Pública. Apenas a situação de eventual devedor necessitado justificaria, em casos concretos, a defesa dessa tese jurídica pela Defensoria Pública, tese esta igualmente sustentada por empresas de grande porte econômico. Por fim, a inteireza do ordenamento jurídico já é defendida pelo Ministério Público Federal. REsp 1.333.977-MT, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 26/2/2014.
[2] http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000479BDED120973744FBBAE14A0136DCBC1C5040E190511
[3] https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=23451
[4] Para melhor compreensão do tema, conferir PAIVA, Caio. Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

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