Opinião

Bons ventos parecem soprar sobre a autocontenção do STF

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

10 de agosto de 2015, 9h27

A sessão plenária do Supremo Tribunal Federal de 5 de agosto, conforme já amplamente noticiado, foi quase que integralmente ocupada pela discussão de três Habeas Corpus, nos quais se discutia sobre três casos de furto: um de uma sandália de borracha avaliada no valor de R$ 16; uma tentativa de um de 15 bombons artesanais avaliados no valor de R$ 30; e um de dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48. Apesar de aparentemente se tratar de casos banais, a temática de fundo era importante: uniformizar a jurisprudência das turmas do tribunal sobre a aplicação do princípio da insignificância em casos de furto, especialmente nos casos de existência de alguma qualificadora ou de reincidência do agente.

O julgamento dos HCs foi iniciado em dezembro de 2014, quando o relator, ministro Roberto Barroso, proferiu seus votos. Tratava-se, em todos os casos, de impetrações ante decisões do Superior Tribunal de Justiça, nas quais se postulava o reconhecimento da atipicidade material das condutas, em razão da aplicação do princípio da insignificância. O voto do relator se mostrou, durante todo o tempo, preocupado com ausência de critérios claros quanto à aplicação do postulado, bem como com o aumento da já grande população carcerária brasileira, consequência que pode decorrer de tais decisões judiciais.

Com base nessas premissas, o ministro defendeu que nem a reincidência, nem a existência de qualificadora no crime de furto devem impedir, por si sós, a aplicação do princípio da insignificância. O ministro reconhecia, nos três casos, a atipicidade material das condutas, pela aplicação do aludido princípio, e também sugeria, alternativamente, que “quando se afaste a insignificância por força da reincidência ou da qualificação do furto, o encarceramento do agente, como regra, constituirá sanção desproporcional, por inadequada, excessiva e geradora de malefícios superiores aos benefícios”, pelo que “deve ser fixado regime inicial aberto domiciliar, substituindo-se, como regra, a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, mesmo em se tratando de réu reincidente, admitida a regressão em caso de inobservância das condições impostas”[1].

Após ser suspenso, o julgamento foi retomado na sessão de 3 de agosto, quando o ministro Teori Zavascki apresentou seus votos. A conclusão do julgamento, em linhas gerais, foi a de que o princípio da insignificância deve ser apreciado caso a caso, sendo inviável a fixação de regras gerais sobre a matéria pelo Supremo Tribunal Federal. Aos casos concretos apreciados, não se reconheceu a atipicidade material das condutas, diferentemente do que propunha o relator, concedendo-se a ordem de ofício, entretanto, apenas quanto à fixação do regime inicial de cumprimento de pena. Ao fim, o ministro Roberto Barroso acabou mudando de posição — possivelmente para continuar com a relatoria do acórdão —, para acompanhar a divergência inaugurada pelo ministro Teori Zavascki.

Entretanto, o julgamento desses casos pode ser emblemático não tanto pela conclusão obtida em si, mas muito mais pelos argumentos utilizados e pelas fundamentações levantadas pelos ministros durante a sessão. Mostrou-se, em direção bastante uniforme — apesar de não unânime —, uma preocupação geral com a autocontenção judicial em matérias de políticas públicas penais legalmente estabelecidas pelo legislador, representante direto dos eleitores no regime democrático brasileiro. Nos casos, tal orientação restou consagrada nas restrições que deve ter a aplicação judicial do princípio da insignificância — construção jurídica doutrinária e jurisprudencial que, a rigor, (ainda) não se encontra prevista no ordenamento jurídico-penal brasileiro — para o reconhecimento de atipicidade de condutas que, a rigor, estão legal e formalmente definidas como típicas.

Em geral, a aplicação da bagatela, apesar das incertezas que sempre existiram quanto ao tema no STF, tem sido abraçada por aquela corte nos anos recentes, quando presentes no caso concreto quatro requisitos principais: conduta minimamente ofensiva; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e lesão jurídica inexpressiva. Entretanto, no julgamento aqui referenciado, o tribunal demonstrou fortes preocupações com as consequências jurídicas e sociais da aplicação ampla desse princípio para o reconhecimento da atipicidade de condutas (especialmente em relação aos casos em que se nota a reiteração delitiva dos agentes, ainda que em furtos de pequeno valor). Argumentou-se que, em razão do forte desacordo moral existente na sociedade quanto à necessidade ou não de resposta penal para esses casos de furtos de pequeno valor, deve prevalecer o minimalismo judicial (argumento capitaneado pelo ministro Luiz Fux), aplicando-se o que dispõe a legislação que dá tratamento à matéria, o qual deve conter o processo de interpretação judicial, impondo-lhe limites. Isso porque o próprio Código Penal já afirma a consequência jurídica do pequeno valor da coisa furtada: substituição da pena de reclusão pela de detenção; sua diminuição de um a dois terços ou aplicação apenas da a pena de multa (conforme disposição do artigo 155, parágrafo 2º, do Código Penal, que institui a figura do chamado “furto privilegiado”).

Do mesmo modo, seria possível a aplicação de circunstâncias judiciais favoráveis ao condenado (artigo 59 do Código Penal), bem como a fixação do regime inicial aberto (como, aliás, efetivamente realizado pela corte em dois dos três casos concretos apreciados), em concretização, por exemplo, do princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI, da CF/88). Entretanto, diante da clara escolha legislativa em criminalizar tais condutas[2], afirmou-se a necessidade de cautela ao afirmar a atipicidade de furtos de pequeno valor, especialmente nos casos em que praticados por agentes contumazes em tal conduta delitiva ou nos quais presentes alguma qualificadora, por exemplo.

Porém, para além das definições dos contornos jurisprudenciais de aplicação do princípio da insignificância, o fato mais importante que parece ter emergido desse julgado é a autoconsciência de que o Supremo Tribunal Federal deve se manter restrito às suas funções, respeitando as escolhas legislativas de política criminal, ainda que delas discorde. Isso porque estão na pauta daquele tribunal diversos assuntos afetos ao tema, alguns dos quais já tiveram, inclusive, seu julgamento iniciado.

São os casos, por exemplo, da natureza hedionda ou não do tráfico privilegiado e da (im)possibilidade da indenização de presos submetidos a condições degradantes. No primeiro caso, trata-se do julgamento de um Habeas Corpus, impetrado em favor de sujeito flagrado com 772 kg de maconha, suspenso por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, após dois votos favoráveis à não caracterização do delito como hediondo e outros quatro que, independentemente de suas convicções político-criminais sobre o tema, preferiram manter o tratamento atribuído ao tema pelo legislador. No segundo, trata-se do julgamento de um recurso extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral, no qual se avalia se há responsabilidade civil do Estado sobre o fato de não garantia de condições mínimas de dignidade aos custodiados em estabelecimentos prisionais por ele mantidos. Nesse caso, deixando de lado a discussão quanto à existência da responsabilidade ou não do Estado, o ministro Roberto Barroso, por exemplo, propôs que a indenização se fizesse por meio da diminuição da pena do preso submetido a condições degradantes, criando, em verdade, como se legislador fosse, nova hipótese de remição da pena.

Como se tem dito, para além da justeza ou concordância/discordância quanto ao mérito dessas propostas em si, deve-se ter por presente que, em regra, não se deve atribuir ao Poder Judiciário a tarefa de criação de políticas criminais, especialmente naqueles casos — como os aqui exemplificados — nos quais a opção legislativa sobre o tema já foi expressa e claramente disposta pelo legislador, democraticamente eleito e constituído. A separação dos Poderes e a deferência que esses devem ter uns pelos outros, devem conduzir a atuação dos órgãos da República, devendo cada um se conter no lugar constitucional que lhe foi reservado, inclusive quando se trata de matéria penal.

Aguardem-se as cenas dos próximos julgados, mas bons ventos parecem soprar sobre a autocontenção do Supremo Tribunal Federal.


1 Trechos constantes do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso no HC 123.734, disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC_123734_MLRB.pdf.

2 Como é sabido, no projeto de novo Código Penal que tramita perante o Congresso Nacional há a previsão expressa do princípio da insignificância, assim disposto no §1º do art. 28 do Anteprojeto: “Também não haverá fato criminoso quando cumulativamente se verificarem as seguintes condições: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; c) inexpressividade da lesão jurídica provocada”.

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