Olhar Econômico

"Estudo de caso" é método útil também
em países de Direito continental

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

6 de agosto de 2015, 10h06

Spacca
A utilização do estudo de caso no ensino jurídico é, entre nós, menos corrente do que deveria ser. Certamente, face às características da common law (Direito não escrito ou parcamente escrito e valorização do costume decantado pela jurisprudência), esse método é maneira por excelência para perquirir o Direito; daí sua voga nos países anglo-saxões. Nos Estados Unidos da América, tal metodologia jungido à maiéutica socrática, a começar pela Harvard Law School, acabou por se tornar a regra geral para o estudo do direito. Os países de Direito codificado, de influência continental ou francesa, partem do estudo do Direito positivo e compartimentalizado (Direito Civil, Direito Penal, Direito Internacional Privado etc.) perpassam a doutrina e, frequentemente, sequer chegam à verificação séria dos precedentes jurisprudenciais!

Para incentivar o estudo de caso entre nós, vamos propor o caso abaixo e buscar todas as soluções possíveis para ele.

“X”, empresa holandesa, é proprietária de um navio-plataforma, registrado na Libéria e, consequentemente arvorando bandeira desse país. Tal embarcação, ora fundeada em águas territoriais brasileiras para permanência longa, como sói acontecer com tal espécie de embarcação, foi hipotecada para a empresa “Y”, sendo esse direito real de garantia constituído e averbado no registro de propriedade na Libéria, em consonância com o direito local. Pergunta é válida e eficaz a hipoteca em questão em nosso país?

Sabemos que, no Brasil: a lei, a doutrina e a jurisprudência consideram que a natureza jurídica do navio é de bem móvel; vige a Lei Federal 7.652/1988, que dispõe sobre registro de embarcações e dos direitos reais; vigoram a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimas, de Bruxelas, de 1926 e o Código Bustamante, de 1928.  Tais convenções, respectivamente nos artigos 1º e 278 , reconhecem que a hipoteca marítima, constituída de forma regular, terá validade e eficácia extraterritorialmente.

Examinando-se o caso em questão, o fato de haver convenções internacionais vigorantes no Brasil, relacionados com o caso, faz com que deva ser intentada uma solução no âmbito do Direito Internacional Público. Por outro lado, face aos elementos de estraneidade nele existentes (nacionalidade e domicílio da pessoa jurídica “X” e nacionalidade do navio), outra saída poderia ser por meio do Direito Internacional Privado. Cada qual com a potencialidade de solver o problema cabalmente e de per si.

Deixando o caminho do Direito Internacional Privado para ser examinado oportunamente, percorramos, agora, o caminho do Direito Internacional Público. Para tanto é bom ter em mente que as normas de Direito Internacional, quer originárias de tratado, quer de costume, aceitas pelo Estado, integram o ordenamento jurídico interno, podendo e devendo ser aplicadas pelo juiz interno. Se isso é uma verdade antiga, reforçou-se na atualidade, pela receptividade que as regras internacionais tem tido por parte dos direitos internos, provocando maior inter-relacionamento e colaboração. Tudo isso, por razões pragmáticas, entre as quais, contribuir para o aumento do relacionamento econômico internacional. Como última lembrança prévia, não deve ser esquecido o ciclo: regras costumeiras internacionais, por meio da codificação transformam-se em regras escritas de tratados, interpenetrando-se com regras de desenvolvimento progressivo; que, por seu turno, transformam-se em fundamento para a criação de novas normas costumeiras internacionais.

No iter do Direito Internacional Público, neste caso, inicialmente, há duas trilhas que podem ser palmilhadas.

A primeira diz respeito à Lei Federal 7.652/1988, que rege as hipotecas marítimas nacionais; enquanto que o regramento das duas convenções em vigor no Brasil, acima aludidas, seria aplicável às hipotecas estrangeiras, registradas em Estados partes nessas duas convenções[1]. Dessa forma, ficariam sem guarida no Brasil, as hipotecas efetuadas nos países não partícipes de, ao menos, uma das convenções. Voltando ao caso concreto, a Libéria não é parte em nenhuma das convenções acima referidas, portanto suas regras, enquanto normas de tratado, não a obrigam referentemente aos Estados partícipes dos tratados, entre os quais o Brasil, nem vice-versa. Em outras palavras, o Brasil não teria de reconhecer, simplesmente em razão desses tratados, a validade e a eficácia de hipoteca marítima regularmente efetuada na Libéria.

A segunda trilha impõe verificar-se se a regra das convenções em tela (validade e eficácia extraterritorial de hipoteca marítima, efetuada com regularidade), por força da sua utilização reiterada, mesmo entre os países não partes, propiciaram o surgimento de regra consuetudinária internacional, de âmbito universal, oponível a qualquer país.

As duas convenções em estudo brotaram uma do Direito Internacional Público universal — a de Bruxelas; enquanto que a de Havana, do direito internacional regional americano. As duas convenções internacionais posteriores, que trataram de hipoteca marítima, mantiveram a mesma linha de estipular a validade e a eficácia extraterritorial das hipotecas regularmente registradas em algum país membro. Tais convenções são as seguintes: a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relacionadas com Garantias e Hipotecas Marítimas, de Bruxelas, de 1967, que não chegou a entrar em vigor; e a Convenção Internacional Sobre Garantias e Hipotecas Marítimas, de Genebra, de 1993, que entrou em vigor em 2004. Muito embora o Brasil não seja parte em nenhuma delas, a disciplina por elas conferida a respeito da hipoteca marítima confirma a existência de um costume internacional sobre o tema.

Além de ser regra aceita pelo Direito Internacional Público universal e regional, o que é provado pela própria existência e permanência dessas convenções por mais de 80 anos, normas semelhantes foram acolhida pelo direito interno de inúmeros países, entre os quais os Estados Unidos da América, a Inglaterra e a Holanda. Além disso não se pode esquecer que a facilitação do comércio internacional, em sentido amplo, é um dos pilares da nova lex mercatoria, de aceitação corrente.

A existência de uma regra de origem internacional, costumeira ou convencional, tem no Brasil a mesma hierarquia de uma lei federal, revogando as leis federais anteriores que a contrariem frontalmente e por elas sendo revogadas, se a lei federal for superveniente e contrária. Na falta de regra constitucional expressa sobre tal questão, regulam-na precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal. Uma vez assente a existência de costume internacional, em sentido contrário, às disposições da Lei 7.652/1988, esse regramento consuetudinário deve ser aplicado pelo juiz, na efetivação de sua prestação jurisdicional.

Em conclusão, constatando-se a existência de norma costumeira internacional, desde que regularmente constituída e registrada segundo a lei do pavilhão, a hipoteca de navio estrangeiro, inclusive os da Libéria, produz efeitos extraterritoriais e deve ser reconhecida como existente, válida e eficaz no Brasil, independentemente de registro no Tribunal Marítimo brasileiro, o qual a bem da verdade, além de não ser exigido pelo direito brasileiro, no mais das vezes, é por ele vedado, por absoluta impossibilidade material de atendimento aos requisitos formais de registro no solo pátrio.

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    é decano dos professores titulares da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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