Tribuna da Defensoria

Defensores podem ser protagonistas na cooperação jurídica internacional

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4 de agosto de 2015, 11h37

Um dos grandes debates da atualidade diz respeito aos efeitos da globalização no âmbito criminal[1]. Os crimes qualificados como transnacionais — crimes esses que não são de investigação simples e tampouco de fácil averiguação e solução penal, já que não se limitam às fronteiras dos Estados soberanos — se alastram com uma velocidade que desafia os órgãos investigativos e sancionatórios dos países.

Vivemos em uma era de mudanças no conceito de território, visto que agora nada está “dentro ou fora”. Vivemos em uma era de globalização econômica e cultural, onde se compartilham ideias, pensamentos e, sem dúvida e por desgraça também, se compartilha a criminalidade.[2]

Como refere o protagonista Phileas Fogg, no romance de Júlio Verne, A volta ao mundo em 80 dias: “A Terra diminuiu! Pois a percorremos agora dez vezes mais depressa do que há cem anos”.[3]  Desse modo, para a investigação e o combate adequado dos crimes transnacionais a cooperação jurídica internacional afigura-se imprescindível, fato que está bem sintetizado na máxima “cooperar ou falhar!” [4]

Isso faz com que modalidades de cooperação jurídica internacional mais céleres, menos burocráticas e mais eficazes, como o auxílio direto, ganhem destaque perante os demais mecanismos tradicionais de cooperação jurídica internacional na área penal.

Dito isso, partimos dos seguintes questionamentos: a paridade de armas entre acusação e defesa é respeitada na cooperação jurídica internacional penal? A normativa internacional tutela o direito de defesa?

Antes de efetuar qualquer tentativa de resposta às questões levantadas, importante referir que a relevância do tema insere-se dentro de uma noção de consolidação da visão trilateral da cooperação em matéria penal[5], em que a pessoa afetada deve ser vista como sujeito e não como objeto da cooperação, no intuito de elidir visão reducionista da cooperação jurídica internacional.

Além disso, se é certo que o propalado aumento significativo nos índices da reconhecida criminalidade transnacional tem ensejado acordos de cooperação internacional em matéria criminal com fins repressivos e sob a retórica de proteção de bens jurídicos de caráter universal, certo é também que se faz imperativo reconhecer às pessoas processadas a dignidade que lhes é inerente, estabelecendo-se, em nível internacional, a equidade de tratamento entre acusação e defesa.

Ao se reconhecer que a cooperação jurídica internacional no âmbito dos acordos internacionais é uma das maneiras que os Estados encontraram para prevenir e combater crimes mais graves e, por fim, levando em conta que a vontade de que esta cooperação deva servir também para reintegrar perpetradores, não se pode esquecer que ela terá um impacto sobre uma pessoa, um cidadão e um ser humano e não sobre um inimigo,[6] porque, caso contrário, se deslegitimaria qualquer processo penal nacional, regional ou internacional.

Em suma, o desafio consiste em aspirar que o novo Direito Penal da cooperação se estruture sobre a devida tensão das premissas de eficácia, soberania e direitos humanos.

Nesse sentido, dois valores relevantes têm emergido recentemente em sede de cooperação internacional em matéria penal, os quais se afiguram até certo ponto aparentemente opostos: de um lado, a necessidade de intensificar a cooperação na luta contra o crime e, de outro, a consciência cada vez mais profunda de que os direitos fundamentais devem ser colocados como referencial nessa matéria e, consequentemente, como limites à cooperação internacional em matéria penal.[7] A noção de maior eficiência processual, antes de excluir o conceito das garantias do devido processo penal, as pressupõe.[8]

Dito isso e feitas as devidas considerações introdutórias, devemos retomar as questões trazidas linhas acima, já com o fomento da reflexão para solucioná-las, obviamente sem a menor pretensão de esgotar o debate, cumpre referir que se deve primar sempre pela possibilidade de utilização dos mecanismos de cooperação internacional da forma mais abrangente possível.

Regra geral, o particular pode efetuar a produção de prova diretamente no exterior, na medida em que o investigado, o acusado ou seu defensor podem obter documentos fora do país e legalizá-los perante as autoridades consulares nacionais. Tal prática consiste na cooperação com “consularização” ou legalização consular[9] ou, ainda, pode-se utilizar o mecanismo das cartas rogatórias, que não encontra os mesmos empecilhos dos pedidos de auxílio direto.

Entretanto, cumpre referir que as cartas rogatórias ativas para realização de diligências só serão expedidas se demonstrada previamente a sua imprescindibilidade, arcando a parte requerente com os custos de envio (artigo 222-A do CPP). Nesse ponto, interessante lembrar que no caso da Ação Penal 470 — conhecido como “caso do mensalão” — o custo para que fossem feitas oitivas de testemunhas no exterior ultrapassou a cifra de R$ 19 milhões[10], o que até mesmo para réus com alto poder econômico soa inviável.

Ocorre que a utilização específica da modalidade auxílio direto que utiliza os tratados bilaterais firmados entre os países e o mecanismo das autoridades centrais em prol da defesa (que não onera as partes e, atualmente, é o modo mais rápido e efetivo de se solicitar medidas cooperacionais) ainda não é admitida em 12 dos 19 acordos bilaterais já firmados pelo Brasil[11]. Nesses tratados há disposições que permitem interpretar o seu conteúdo como vedações à produção de prova em favor da defesa.

Constata-se, portanto, que a maioria dos países com quem o Brasil mantém relações bilaterais denega pedidos provenientes de particular, mediante o entendimento de que não seria possível tramitar pela via do auxílio direto pedidos de interesse exclusivo da defesa. Nos demais casos, os tratados são silentes gerando ampla margem para discussão.

Nesse panorama, há muita doutrina defendendo que deve prevalecer a ampla defesa, o contraditório e a paridade de armas na cooperação, entretanto, não são apresentadas propostas com soluções concretas para solucionar a lacuna. Além disso, já vêm sendo travados debates no âmbito da União Europeia, onde já surgiram manifestações nesse sentido. Ainda que o sistema comunitário vigente seja diferente do nosso, é o local onde as discussões e os estudos encontram-se mais avançados, inclusive, com a apresentação de propostas para criação de instituições tais como a do Eurodefensor, em contraposição à criação do Ministério Público Europeu.

Ou seja, na tentativa de responder às questões propostas, pode-se dizer que, de fato,  a paridade de armas entre acusação e defesa não é respeitada na cooperação jurídica internacional penal. Entretanto, no plano teórico, a normativa internacional tutela amplamente o direito de defesa, tanto no âmbito dos mecanismos universais de proteção (ONU), quanto no âmbito americano (OEA e CIDH) e europeu (UE, CEDH)[12].

Constata-se que a resposta dada pelas instituições criminais internacionais nesse tópico é um tanto quanto ambígua. Os estatutos e as regras expõem claramente a necessidade de respeitar os direitos fundamentais. No entanto, a prática mostra a frequência com que se reluta em abandonar o discurso ao endurecimento penal.

A própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ainda carece de definição acerca da aplicação integral dos direitos fundamentais a todas as formas de cooperação internacional penal.[13]

Verifica-se, assim, que até o momento, a cooperação jurídica internacional penal evoluiu, primordialmente, para a facilitação da persecução penal, para a colheita de provas para a acusação, no intuito de coibir o avanço da criminalidade que atinge os países como um todo, que não respeita fronteiras nem limites territoriais. Em contraponto, o respeito aos direitos humanos, em nível nacional e internacional, também apresenta grandes avanços, precisando angariar efetividade real no comportamento das nações.

Diante de tais constatações, reputa-se que o futuro da cooperação jurídica penal internacional está na disponibilização dos mesmos mecanismos postos à disposição da acusação, no procedimento de cooperação jurídica internacional, também à defesa, em plena e devida igualdade.

Levando em consideração essa premissa, bem como, no contexto jurídico nacional, o acesso internacional à Justiça e a atuação da Defensoria Pública, como mecanismo de defesa social, pode-se concluir que a instituição tem um papel deveras promissor como protagonista da cooperação jurídica internacional penal em matéria de defesa, por intermédio da criação de redes de cooperação para a defesa ou, em princípio, a utilização das redes já existentes, devendo-se possibilitar, ainda, na cooperação horizontal, a negociação de tratados bilaterais em prol da defesa, onde se aplica o mecanismo das autoridades centrais, em que a Defensoria Pública poderia figurar como autoridade central nos tratados que versassem a temática da defesa, sem prejuízo da inclusão da Defensoria Pública nas normativas já existentes em relação ao tema.

Como referido por Bassiouni, “estamos agora em um momento em que precisamos de uma terceira geração de instrumentos internacionais”.[14] E, como recomendação, o autor sugere o desenvolvimento de novas modalidades de cooperação interestatal, com a aplicação de mecanismos similares aos já existentes, sendo particularmente importante compreender que a proteção dos direitos humanos individuais não é e não deve ser colocada em uma relação conflituosa com a eficácia do processo.

Nesse sentido, a Defensoria Pública poderia receber e analisar os problemas e as queixas ligados à denegação de justiça, reagindo rapidamente aos problemas que se originam no início do procedimento, em atuação verdadeiramente preventiva, tendo em vista que, no sistema atual, uma questão só pode ser levada aos tribunais internacionais de direitos humanos quando já houve o esgotamento das vias internas.

Outra função plenamente factível e legítima seria a de coordenar as ações e proporcionar assistência com a finalidade de constituir uma equipe de defensores com conhecimentos específicos e qualificados em matéria penal transnacional no Estado de emissão e também no Estado de execução da medida transnacional, para assim assegurar uma defesa real e efetiva nos territórios dos países implicados. Em suma, avaliar o grau de “igualdade de armas” em cada caso concreto.

Não restam dúvidas acerca do fato de o tema ser ainda bastante novo e que, não obstante as suas premissas conceituais — a questão da paridade de armas e da aplicação do padrão normativo universal dos direitos humanos, por exemplo — já tenham sido objeto de alguma discussão no plano nacional e internacional, certo é que a temática da defesa na cooperação jurídica internacional obteve, até o momento, pouca dedicação por parte da doutrina, em especial da doutrina nacional.

Nessa linha, estima-se poder contribuir para o desenvolvimento da temática da cooperação jurídica internacional em matéria penal em prol da defesa, que se encontra ainda em fase incipiente, mediante a impressão de consequências práticas a inúmeros princípios e institutos que regem a matéria. Em qualquer sistema de justiça criminal, a observação das regras persecutórias, de busca de prova e do justo processo revelam a maturidade da estrutura do Estado de Direito.

Com a promoção do debate e suas repercussões, espera-se que novas ideias surjam, com propostas hábeis a incluir e empoderar a defesa nesta temática, e que essas ideias possibilitem concluir que o mundo realmente mudou desde que a seguinte sentença foi pronunciada: “Justice is open to all, like the Ritz Hotel”.[15]

 


[1] Para aprofundmento do tema: DEL GROSSI, Viviane Ceolin Dallasta. A defesa na cooperação jurídica internacional penal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP/Faculdade de  Direito, 2014.

[2] FARIA COSTA, J. A Globalização e o Direito Penal (ou o Tributo da Consonância ao Elogio da Incompletude). In: Globalização e Direito, STVDIA IVRIDICA, 73, colóquio 12, Coimbra Editora, p. 182 a 186.

[3] Essa assertiva é datada de 1872 e, para os padrões atuais, esse tempo é longo demais. Atualmente, é possível percorrer o mundo em algumas horas e, virtualmente, em alguns segundos.

[4] MORO, Sérgio Fernando. Cooperação jurídica internacional em casos criminais: considerações gerais. In: BALTAZAR Jr. José Paulo e LIMA, Luciano Flores de. Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 16.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 157.

[6] FIJNAUT, Cyrille; OUWERKERK, Jannemieke. The Future of Police and Judicial Cooperation in the European Union. Martinus Nijhoff Publishers: Leiden/Boston, 2010, p. 391.

[7] GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo em Evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 156.

[8] ABADE, Denise Neves. Garantias do Processo Penal Acusatório: o novo papel do Ministério Público no processo penal de partes. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 119.

[9] ARAS, Vladimir; LIMA, Luciano Flores de. Cooperação Internacional Direta pela Polícia ou Ministério Público. In: BALTAZAR Jr. José Paulo e LIMA, Luciano Flores de Lima. Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2010, p. 140. Ocorre que, hoje em dia, a via diplomática é cada vez menos utilizada para a obtenção de provas criminais.

[11] Tratados bilaterais firmados com os seguintes países: China, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Honduras, México, Nigéria, Panamá, Peru, Reino Unido, Suriname e Ucrânia.

[12] Artigo 11.1 (presunção de inocência, com a asseguração de todas as garantias necessárias à defesa) da Declaração Universal dos Direitos Humanos; Art. 14, item 3, letra “e” do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Art. 6°, 3, letra “d”, da Convenção Europeia de Direitos Humanos e art. 8°, item 2, letra “f” da Convenção Americana de Direitos Humanos.

[13] ABADE, Denise Neves. Direitos fundamentais na cooperação jurídica internacional: extradição, assistência jurídica, execução de sentença estrangeira e transferência de presos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 296.

[14] BASSIOUNI, M. Cherif. Policy Considerations on Inter-State Cooperation in Criminal Matters. Pace Y.B. International Law. Vol. 4, Issue 123, 1992, p. 139.

[15] Tradução livre de: “A justiça é acessível a todos, assim como o Hotel Ritz.” Aforismo atribuído ao Magistrado inglês Sir Charles James Mathew, falecido em 1908.

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