Embargos Culturais

Tomás Antonio Gonzaga deixou interessante e singular obra jurídica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2 de agosto de 2015, 11h03

Spacca
Os jovens brasileiros que buscavam educação jurídica durante o período colonial, e especialmente nos séculos XVIII e XIX, dirigiam-se para Coimbra, a exemplo, entre tantos outros, de Tomás Antônio Gonzaga. O poeta nasceu no Porto, no dia 11 de agosto de 1744; seu pai era brasileiro, João Bernardo Gonzaga. Sua mãe se chamava Tomásia Isabel Clark. Depois de ter morado no Brasil, Gonzaga estudou em Coimbra de 1763 a 1768. Mais conhecido por sua obra como poeta árcade, bem como por sua participação na Inconfidência Mineira, Gonzaga também nos deixou uma interessante obra jurídica, ainda que singularizada em único livro. Gonzaga ocupou o cargo de ouvidor-mor em Vila Rica (hoje Ouro Preto), na capitania de Minas Gerais. Foi preso na reação à Inconfidência Mineira, seguindo para o Rio de Janeiro, de onde seguiu para o degredo em Moçambique, onde morreu, em 1810[1].

Em 1772 Gonzaga redigiu um Tratado de Direito Natural, no qual principia distinguindo o Direito Natural do Direito Civil. Aquele teria origem na natureza, e o homem podia optar por seguir seus preceitos; como recompensa, receberia a glória ou o castigo divino[2]. O Direito Civil decorreria da sociedade, obrigando aos que nela vivessem[3]. Na parte final desse inusitado livro Gonzaga deixou observações sobre a interpretação das leis, de algum modo atual, especialmente porque pouco de novo se escreve desde então, a menos que levemos em conta alguns filósofos do direito que vendem gato por lebre ou filósofos alemães por quiromantes tupiniquins.

Para Gonzaga, “a interpretação das leis não é outra coisa mais do que uma explicação do sentido delas”[4]; esse precioso truísmo é complementado com observação que nos dá conta de que a interpretação das leis poderia ser autêntica, usual e doutrinal[5]. A autêntica seria a interpretação produzida pelo próprio legislador, revelando, por este fato, força e equivalência de lei[6]. A interpretação usual decorreria de um costume, sem força de lei; a interpretação doutrinal seria “virtual à inteligência que lhe dão os sábios”[7]. Segundo Gonzaga a interpretação de uma lei também seria extensiva, restritiva e declaratória. Extensiva, segue o poeta, “quando o espírito das leis se estende a mais do que as palavras soam”[8]. Restritiva, escreveu Gonzaga, “quando as palavras dizem mais do que o espírito da lei e da razão”[9]. Por fim, a interpretação declaratória se efetivaria “quando a razão diz tanto quanto dizem as palavras e só versa a interpretação sobre a propriedade e inteligência delas”[10].

O poeta também advertia que “toda a correção de leis é odiosa”; se duas leis se contradissessem deveria o intérprete a qualquer custo as conciliar[11]. Gonzaga também pranteava a equidade, que percebia com espécie de interpretação restritiva, “de que temos necessidade de usar todas as vezes que, de executarmos o rigor da lei, se seguir alguma injustiça”[12]. O poeta deixou-nos também a noção de epiquéia:

“A epiquéia é outro gênero de interpretação benigna. Usamos de todas as vezes que não podemos compreender ao caso particular debaixo da disposição universal sem algum dano e prejuízo. Figuremos o caso: o rei proibiu que os soldados saíssem das praças que presidiarem. Ora suponhamos que ao governador desta praça chega notícia que outra está sitiada, e que se ele não a socorre, certamente se perde. Poderá o governador mandar os seus soldados a socorrê-la interpretando a vontade do príncipe pois é certo que se ele se achasse presente, dispensaria semelhante lei, porque sendo sua tenção o bem da sociedade, não havia de querer que se cumprisse o seu preceito, todas as vezes que chegasse caso em que obediência cega e indiscreta fosse prejudicial e nociva”[13].

O gênero interpretativo acima descrito por Gonzaga poderia ser mais facilmente traduzido por bom-senso. Segundo Descartes, o bom-senso seria a qualidade mais multiplicada do universo, justamente porque todo o mundo julga tê-la em demasia. O leitor e eu mesmo comprovamos a assertiva.

E é por cauda do bom-senso, que médicos não leem mais Hipócrates ou Galeno, e se o fazem, seria talvez apenas por curiosidade histórica; não se atacam patologias com as teses dos humores biliares. Físicos não leem Copérnico ou Galileu, e se o fizessem seria por força de alguma orientação bibliográfica de história da ciência; já sabemos como são as órbitas que a terra descreve ao redor do sol. Geógrafos mais nada aprendem com Estrabão; mapas virtuais e fotografias aéreas revelam cada canto do planeta, em tempo real. Químicos não mais dependem de Demócrito ou de Leucipo, a concepção de átomo é fato, e não descrição teórica.

No direito, no entanto, pouca coisa mudou, ainda se reverenciam os clássicos. Os livros que advogados lemos ainda muito se parecem com as esquisitices que nossos antepassados de toga e rubi escreveram, a exemplo de Gonzaga, testemunha de um tempo no qual se acreditava que a razão revelava o justo, que o amor era uma forma de esperança, e que a luta contra a opressão era forma possível de libertação.


[1] Conferir MAXWELL, Kenneth, A Devassa da Devassa- A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal- 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Tradução de João Maia.
[2] GONZAGA, Tomás Antonio, Tratado de Direito Natural, São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 10-11.
[3] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[4] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., p. 207.
[5] Cf. GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[6] Cf. GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[7] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[8] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[9] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[10] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[11] Cf. GONZAGA, Tomás Antonio, cit., p. 208.
[12] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., loc. cit.
[13] GONZAGA, Tomás Antonio, cit., pp. 210-211.

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