Pisando no freio

As consequências negativas da judicialização da velocidade nas marginais

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1 de agosto de 2015, 7h30

A judicialização da recente diminuição dos limites de velocidade nas marginais dos rios Pinheiros e Tietê, em São Paulo, é o tema desta nota. Independentemente do posicionamento que tivermos em relação à política de tráfego adotada pela municipalidade, ficam dois questionamentos. Primeiro, se haveria justificativa plausível para levá-la ao crivo do Poder Judiciário. Segundo, se a tendência à banalização da interferência dos tribunais na implementação de políticas públicas na qual enquadro a contestação judicial da redução esconderia dificuldades ainda mais contundentes.

Ouso dizer que a primeira pergunta é perigosa. Perigosa? Sim, porque existe uma horda de defensores acríticos do artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal. Proclamam: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e fim de papo! Por via das dúvidas, diga amém! Trata-se do direito fundamental de ação, não nego. Quando o assunto é a defesa dos direitos dos cidadãos em face do abuso de poder das autoridades, sua importância é incontestável. Difícil é aceitar, porém, a interpretação de que tal inciso autorize que todo descontentamento com a administração venha a desaguar nos tribunais. Difícil é saber qual direito estaria sendo, de fato, violado pela medida da CET no caso da redução dos limites de velocidade para justificar a sua judicialização.

O argumento central apresentado pela OAB-SP para embasar a Ação Civil Pública, voltada à impugnação da referida política, pode ser assim resumido: com a diminuição da velocidade de tráfego nas marginais, o direito ao transporte ficará prejudicado, bem como haverá redução da segurança dos motoristas. Sem contar que, aos olhos da Ordem, a medida pecaria pela sua desproporcionalidade. Logo, tratar-se-ia de decisão desacertada da prefeitura, sujeita à contestação judicial.

É preciso reconhecer, a atitude da entidade na defesa dos direitos dos administrados é louvável. Porém, nesse caso, é bastante difícil desautorizar a conclusão de que a evocação do direito ao transporte e do princípio da proporcionalidade é mero revestimento artificial de um juízo de preferência por uma política pública distinta daquela adotada pelo município. Meu ponto é: do fato de a medida não agradar a todos não é possível depreender a sua ilegalidade ou desproporcionalidade. O direito ao transporte não ficará prejudicado de modo irracional e desproporcional com a redução de até 20 km/h na velocidade do tráfego nas marginais. Não se está a exigir que os veículos trafeguem a 10 km/h ou a se autorizar que passem da casa dos 150 km/h limites que, de forma nítida, exorbitariam dos patamares mínimos de razoabilidade.

Vamos a outro tópico que precisa ser enfrentado: os estudos técnicos a serem elaborados para embasar a confecção de uma política pública. Sim, a municipalidade tem o dever de apresentar uma justificativa para a redução dos limites de velocidade nas marginais. No entanto, é necessário evitar duas conclusões precipitadas. Primeiro, o caráter experimental da medida, reconhecido expressamente pela prefeitura, é incapaz de lhe retirar a legitimidade. É natural que estudos técnicos não consigam detectar todos os impactos concretos de uma mudança como essa, o que demanda algum grau de paciência e confiança dos administrados, sinceridade da administração em reconhecer possíveis consequências negativas da mudança e flexibilidade desta para, se for o caso, recuar. Segundo, que haja divergência dos especialistas sobre o tema, como se trouxe à luz nos últimos dias pelos meios de comunicação, nada mais natural. É pouco provável que tenhamos unanimidade acerca da adoção de uma dada política pública inclusive entre especialistas, o que não implica em desautorizá-la.

Em suma, o que muitos não percebem é que existe algo bastante artificial na tentativa de se afirmar que a redução do limite de velocidade nas marginais é capaz de lesar direitos. Ainda que discordemos da conveniência da medida, não há justificativa suficiente para levar a matéria ao exame dos tribunais.

Com isso, temos a deixa para trabalhar com a segunda pergunta. Mais do que respondê-la em termos categóricos, o que proponho por meio dela é que façamos um exame de consciência.

Devemos ter em mente que, ao levar questões como essa ao crivo do Poder Judiciário, cobramos dessa instituição um juízo de conveniência sobre uma dada política pública. O esforço para encobrir tal pretensão por meio da alusão a direitos, não raro, tem ares de malabarismo argumentativo o que se verifica claramente no caso em comento. Não estou insinuando que os tribunais devam ficar de fora da confecção de políticas públicas, que não devam zelar pela proteção dos direitos dos administrados. Por certo, desejemos ou não, decisões judiciais poderão impactá-las. Além disso, em situações excepcionais, tal poder poderá ser chamado a colaborar com a implementação dessas por meio do exercício de sua racionalidade decisória. Ocorre, contudo, que tal interferência não deve ser banalizada.

Vamos aos motivos. 

Primeiro, o descomedimento da intervenção dos tribunais na implementação de políticas públicas pode implicar na quebra da dinamicidade requerida das ações governamentais para satisfazer os interesses dos administrados. Segundo, em razão da falta de racionalidade técnica dessa instituição para avaliar questões que não orbitem às voltas da lógica de direitos, tais decisões podem trazer/agravar problemas de governabilidade, as quais o próprio Poder Judiciário inerte não tem ferramentas para resolver. Terceiro, devido ao parco esforço do Poder Judiciário brasileiro para conferir coerência e transparência às suas decisões sobre políticas públicas, é provável que uma intromissão excessiva acentue a irracionalidade de sua implementação.

Dificilmente haverá consenso acerca do ponto de vista que expus neste breve ensaio. A despeito de realmente haver margem para dúvidas e divergências, estou certo de algo: uma decisão como esta deveria encontrar em instância administrativa de composição de interesses o seu locus de discussão por excelência. O fato é que, com a referida judicialização, estamos fomentando uma mentalidade pouco compatível com o espírito universalizante que deve animar a elaboração de políticas públicas, porque o Poder Judiciário queiramos ou não costuma operar sob uma lógica de disputa, estabelece vencedores e perdedores. E esse não deveria ser o caso. Para o futuro, talvez seja interessante repensar a racionalidade dos tribunais. No momento, porém, recorrer ao Poder Judiciário para contestar a redução dos limites de velocidade nas marginais implica em arcar com as consequências negativas da judicialização e o que é pior: sem nenhuma razão de direito consistente para fundamentá-la. Resta saber se é isso que queremos.

*Agradeço a André Rosilho e a Isadora Almeida pelos comentários feitos às ideias contidas neste artigo.

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