Interesse Público

Formalismos em contratos administrativos incentivam corrupção

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30 de abril de 2015, 9h01

Spacca
Não se pode reclamar de tédio ou marasmo na novela da corrupção em nosso país: os episódios dessa saga interminável a cada dia nos são apresentados com mais novidades, ousadia, sofisticação e novos atores. Sabe-se que a formação do Brasil foi marcada pela existência de certa promiscuidade entre as esferas do público e privado, criando uma tradição de personalismo e patrimonialismo que ainda resiste no serviço público. Desde o início da colonização, a Coroa Portuguesa teve que se valer dos particulares e lhes delegar poderes públicos por não conseguir custear sozinha a ocupação do novo território.

Nosso processo histórico foi marcado pela concessão de muitos benefícios e terras a poucas pessoas que, na prática, exerciam todos os poderes do Estado em seus territórios. Essa confusão entre público e privado foi — e ainda é — o ambiente ideal para o crescimento vertiginoso da corrupção administrativa.  

A corrupção é um fenômeno de difícil definição e compreensão por se assentar em diversos fundamentos e ser objeto do estudo de várias ciências como a economia, sociologia, ciência política, direito, etc. É possível estabelecer um conceito amplo de corrupção para considerá-la como a apropriação ilícita da riqueza coletiva para beneficiar indevidamente um ou poucos integrantes da sociedade.

Para a ciência do Direito, pode ser definida como a conduta, por ação ou omissão, praticada com o fim deliberado de auferir ganho privado ilícito mediante o exercício de competências públicas. O cenário propício para o florescimento da corrupção tem dois componentes principais que merecem nossa atenção.

Ingredientes políticos
O primeiro componente é a tradição latinoamericana do segredo, que considera que os assuntos públicos devem ser mantidos fora do alcance e do conhecimento do povo. Na obra Administración Paralela, Agustín Gordillo retrata essa tradição do mistério dizendo que o gestor público normalmente é avesso à transparência e que costuma acreditar piamente que deve ser o zeloso guardião de informações privilegiadas, que não podem ser conhecidas.

O desprezo pela impessoalidade no exercício das funções públicas é o segundo componente que impulsiona as engrenagens da corrupção. A Administração brasileira, em todos os níveis da federação, possui centenas de milhares de cargos em comissão, livremente providos de acordo com a conveniência da autoridade competente, sem qualquer processo seletivo que imponha igual oportunidade para todos os interessados. Muitos desses cargos não possuem atribuições de direção, chefia e assessoramento — como exige o artigo 37, inciso V da Constituição — e congestionam o Estado com pessoas muitas vezes mais fiéis à autoridade que os nomeou do que ao interesse público que devem servir. Há excesso de cargos com atribuições políticas, ligados a determinados partidos, em detrimento de cargos técnicos, ligados somente ao Estado.

O processo de participação dos diversos partidos no exercício da função executiva é importante para a efetividade do sistema democrático por permitir agregar a contribuição e representação efetiva das diversas concepções políticas viventes na sociedade. Na teoria, a divisão de ministérios entre partidos, por exemplo, implica na repartição de responsabilidades para a implantação e gestão de políticas e serviços públicos essenciais à coletividade.

Os ganhos para os partidos são, no plano ideal, proporcionais às responsabilidades assumidas: o êxito na condução de determinado setor público tem como maior prêmio o reconhecimento da população e, em consequência, a consagração da concepção política representada pelo partido. Entretanto, temos o mérito de cunhar uma interpretação própria para essa teoria.

De acordo com essa interpretação peculiar, a busca voraz por cargos não objetiva levar para o governo contribuições para formular e implementar políticas públicas, tampouco simplesmente conseguir um emprego para os amigos, parentes ou partidários de campanha: muitas vezes busca-se o comando de uma área para produzir riqueza para si e/ou para o partido, com simples objetivo de permanecer no sistema ou aumentar a cada dia sua participação.

Filigranas legais
Os contratos administrativos, instrumentos bilaterais direcionados à satisfação de necessidades públicas, são celebrados e executados no ambiente influenciado pelos fatores descritos e por outros tantos. Ao iniciar a análise desses instrumentos, é importante reconhecer que são regidos principalmente pela Lei 8.666/1993, diploma longo e exaustivo, que criou uma série de rotinas e procedimentos que condicionam a legalidade das licitações e dos contratos públicos.

Um dos principais defeitos da norma é justamente o excesso de regras. A lei foi criada tendo como modelo a contratação de obras e serviços de engenharia, objetos que geralmente acarretam a necessidade de diversos projetos e etapas e envolvem soma considerável de dinheiro. Contudo, a lógica das obras de engenharia foi imposta para todos os contratos administrativos, criando uma série de exigências burocráticas e formais que acabam tornando a contratação demorada e onerosa.

A maior parte das controvérsias relativas às licitações levadas ao Judiciário diz respeito à habilitação, etapa de apresentação de documentos formais desvinculada da qualidade do objeto e do valor do objeto. É comum existir controvérsia que demanda longo tempo envolvendo a análise de documentos de empresas que, posteriormente, perdem a concorrência.

O excesso de burocracia e formalidades sem ligação direta com a segurança da contratação pública abre campo fértil para o florescimento da corrupção: criam-se dificuldades para se vender facilidades, como se costuma dizer. O exagero de documentos, certidões, atestados e certificações acaba transformando a concorrência em uma competição do melhor “cumpridor de condições formais”, e não de seleção da melhor proposta para o interesse público.

O planejamento das contratações públicas é um ponto que merece especial atenção. Inicialmente, a correta descrição do objeto que será contemplado no futuro contrato é essencial para a manutenção da impessoalidade e para o atendimento do interesse público. É possível direcionar a concorrência para privilegiar uma empresa por meio de descrições técnicas muito minuciosas que acabam contemplando somente um produto, afastando os demais concorrentes.

A elaboração de projetos, por outro lado, deve ser o mais detalhada possível para permitir estimar com segurança custos e riscos, evitando falhas e imprevistos que possam ser manipulados no decorrer da execução contratual. Também não é incomum a seleção de objetos de baixa qualidade quando se privilegia em demasia o menor preço, sem uma especificação técnica mínima e sem a avaliação de amostras dos produtos. No mesmo sentido, a descrição muito genérica pode beneficiar licitantes que possuam informações privilegiadas.

O planejamento também é essencial para que a Administração possa cumprir suas obrigações para com os contratados. Mais uma vez, o grande número de regras a respeito de previsões orçamentárias e financeiras não assegura o respeito ao interesse público. O desrespeito da Administração aos prazos e regras para o pagamento de suas obrigações acaba encarecendo as contratações, pois o custo desse atraso acaba fazendo parte do preço apresentado. Além disso, a desobediência da ordem cronológica de pagamentos acaba permitindo que se pague apenas quem quiser e quando quiser. Essa suposta discricionariedade no cumprimento de deveres contratuais e legais acaba criando novo campo para corrupção por meio de preferências e perseguições relativas aos pagamentos devidos.

A primazia do enfoque formal acaba mascarando a importância da efetiva fiscalização da execução do contrato. Atualmente, pode-se afirmar que os maiores desvios de recursos públicos ocorrem na execução, e não na formalização do contrato. Primeiramente, a lei contempla diversas possibilidades de alterações do contrato que, se não controladas, podem desfigurar totalmente o objeto original e distorcer o resultado e as condições originais da concorrência.

Essas alterações modificam substancialmente os preços e dificultam o controle do verdadeiro valor de mercado que deve ser pago pela Administração. A inexistência de um sistema efetivo de controle de custos por parte do governo dificulta o controle e consagra uma verificação artificial da realidade.

Deficit de fiscalização
Por outro lado, a Administração não investe na formação de fiscais que teriam o dever de acompanhar rigorosamente a execução dos contratos. Utilização de objetos de menor qualidade, diminuição de quantidades e desrespeito aos prazos estabelecidos são alguns dos problemas causados pela falta de fiscalização ou pela fiscalização ineficiente. A legislação determina a fiscalização (artigo 67 da Lei 8.666/1993), mas a pequena quantidade de servidores e a formação deficiente acabam por tornar mera ficção a previsão legal.

Além desses problemas que permitem e estimulam a corrupção, existem os diversos ajustes feitos pelo próprio mercado para distorcer a livre e real concorrência. Nesse particular, destaca-se que a Lei 12.846/13 objetiva justamente coibir e punir as empresas que se utilizam de expedientes ilícitos para corromper a Administração e seus servidores.

Todo esse cenário repleto de riscos e possibilidades deve ser analisado e cuidado por órgãos de controle que muitas vezes não atuam de forma integrada e que geralmente não possuem a estrutura adequada para a realização desse trabalho. A existência de estruturas com feixes de competência complementares e a vaidade pessoal de alguns agentes públicos pode desencadear certo ciúme institucional que prejudica proteção mais eficiente e eficaz aos recursos públicos.

A falta de punição institucional efetiva acaba por não inibir e até estimular a prática da corrupção. As sanções aplicadas às empresas costumam ser leves, e ainda não há um sistema efetivo de comunicação que permita aferir o cumprimento das penalidades em todas as unidades da Federação. Esse cenário preocupante exige a busca de soluções.

O que fazer?
Inicialmente, seria importante criar regulações setoriais de contratos mais simplificadas, que permitissem processos e decisões mais rápidos e fáceis para contratos que envolvem menos recursos e complexidade. A compra de produtos que não demandam garantia, por exemplo, pode ser feita de forma mais célere, sem maiores preocupações quanto às condições formais da empresa contratada.

O planejamento e a elaboração de projetos devem ser objeto de meditação. Ainda não houve avaliação consistente a respeito das experiências vivenciadas com o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, (o RDC, disciplinado pela Lei 12.462/2011), que permite a licitação de obras somente com o anteprojeto, mas em princípio os projetos de engenharia devem ser mais completos e elaborados independentemente da empresa construtora.

O rígido controle dos pagamentos devidos pela Administração é essencial para resgatar a credibilidade do setor público e não permitir perseguições e privilégios. Não é possível admitir-se a simples demonização do empreendedor, como se estivesse sempre a buscar o lucro ilícito e pronto para achacar o Estado.

Em diversas situações, o Estado é o infrator[1] seus agentes parecem pensar que fazem favor ao cumprir deveres. O empresário tem o direito de receber o que lhe é devido, no respectivo prazo, e esse direito deve ser garantido por meio do controle da ordem cronológica dos pagamentos. Também é importante melhorar os sistemas de controle, aumentar as sanções aplicáveis aos responsáveis, e permitir o oferecimento de garantias ao particular por parte do poder público, como prevê a lei das parcerias público-privadas.

O controle dos pagamentos e das disponibilidades orçamentárias e financeiras também é importante para evitar obras inacabadas. É preciso incrementar os sistemas de controle de custos e os mecanismos que permitam a continuidade das obras, mas impeçam pagamentos acima de valores questionados enquanto ocorre a investigação.

A função de fiscalizar a execução contratual deve ser valorizada e, ao mesmo tempo, cobrada. É preciso investir em formação e condições de trabalho para que os fiscais da Administração tenham o conhecimento e isenção necessários para fazer cumprir os contratos.

Finalmente, é preciso dar maior autonomia e estrutura para as instituições de controle. Maior autonomia somente é possível por meio da valorização das carreiras de Estado, providas por servidores selecionados por concurso público, sem qualquer tipo de indicação político-partidária. Essa questão assume maior relevância nos Tribunais de Contas, órgãos responsáveis pelo controle externo da aplicação dos recursos públicos. O atual sistema de indicação política dos magistrados de contas, muitas vezes sem a formação técnica e a isenção para o rigor de suas atribuições, precisa ser revisto.

O tempo atual tem sido marcado por um complexo e demorado processo de tentar superar a lógica pela qual a sociedade identifica a corrupção como uma de suas naturais componentes. Isso deve ser feito por meio de um envolvimento maior da sociedade civil organizada e do crescimento da compreensão de que só será possível edificar uma nova sociedade se os escassos recursos que possuímos forem efetivamente direcionados ao atendimento das muitas necessidades sociais.

A verdadeira transformação, contudo, somente será possível com muito investimento em educação: educar as crianças para que compreendam e evitem as pequenas corrupções do cotidiano e para que não tolerem absolutamente a corrupção na Administração. A corrupção sufoca o sonho de construir uma nação livre, justa e solidária, que busque promover o bem de todos, como determina a Constituição da República.


[1] Veja-se, a propósito, a obra O Estado infrator (Nélson Figueiredo, Editora Fórum).

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