Terceirização em debate

"Precisamos o mais breve possível de um marco regulatório para a terceirização"

Autores

30 de abril de 2015, 8h33

Gláucio Dettmar/ Agência CNJ
O ministro Ives Gandra Martins Filho, vice-presidente lamenta que o debate sobre terceirização de mão de obra, aquecido desde que passou a tramitar no congresso o Projeto de Lei 4.330, possa descambar para o ideológico. Para ele, essa é a grande oportunidade para se regulamentar a terceirização do trabalho, e não há mais tempo nem espaço para querer impedir a prática. , “A terceirização é um fenômeno econômico global e irreversível. Não é possível nós voltarmos a uma empresa totalmente vertical com todos os trabalhadores contratados diretamente pela empresa. Hoje, no mundo inteiro, a empresa vertical foi substituída pela cadeia produtiva horizontal”, disse ele em entrevista ao Anuário da Justiça do Trabalho  e à revista eletrônica Consultor jurídico.

Leia a entrevista:

ConJur — Ministro, quais são os temas que mais preocupam a Justiça do Trabalho atualmente?
Ives Gandra Filho —
Hoje, o tema mais candente que nós acompanhamos, até pelos jornais, é o debate sobre a terceirização. O debate está descambando um pouco para o ideológico. Por um lado, aqueles que são contrários à terceirização a veem como uma precarização necessariamente, como algo ruim, como algo que tem que ser combatido. E, na verdade, a terceirização é um fenômeno econômico global e irreversível. Não é possível nós voltarmos a uma empresa totalmente vertical com todos os trabalhadores contratados diretamente pela empresa. Hoje, no mundo inteiro, a empresa vertical foi substituída pela cadeia produtiva horizontal. O mundo tende cada vez mais à especialização, quer dizer, a cada dia você sabe mais de menos.

ConJur — Como o senhor avalia o Projeto de Lei 4.330, que tramita no Congresso?
Ives Gandra Filho —
Não é possível querer voltar atrás na história. O bonde da história vai sempre para frente. Nós precisamos o mais urgente possível de um marco regulatório para a terceirização. E aí, tem esse embate entre as correntes que entendem que não pode haver sequer terceirização e aqueles que querem terceirizar absolutamente tudo. Esse é o embate que está havendo no Congresso Nacional. Eu, pessoalmente, acho que o projeto de lei tem aspectos positivos e aspectos negativos.

ConJur — Quais são os aspectos positivos?
Ives Gandra Filho —
Ele estabelece um marco regulatório da terceirização, estabelece os direitos dos trabalhadores terceirizados. Vai combater exatamente a precarização do trabalho terceirizado, tão alardeada. Por outro lado, teria que ter dispositivos que deixassem claro os limites da terceirização. O TST sempre usou esse binômio atividade-fim e atividade-meio para distinguir o que é passível de terceirização e o que não é passível de terceirização. Agora, temos que fazer uma diferenciação um pouco mais sutil.

ConJur — Como fazer essa diferenciação?
Ives Gandra Filho —
Existe um tipo de terceirização que é a terceirização do serviço e outra que é a terceirização da mão de obra. Terceirização de serviço você tem na indústria automobilística, eles terceirizam a atividade-fim. A Volkswagen, a GM, a Fiat, o que elas fazem? Elas são montadoras. Recebem peças de todo o Brasil e montam os carros. O motor vem de um lado, a roda vem do outro, pneu do outros, os bancos. Então, todas essas peças são montadas. O que significa isso? Que a prestadora de serviços tem trabalhadores que são seus empregados e que oferece o serviço terminado para a tomadora de serviço.

ConJur — Quer dizer, o local de trabalho desses funcionários é na prestadora de serviços, e não dentro da empresa que a contratou?
Ives Gandra Filho —
O que não se admite, esse é o ponto que eu tenho batalhado com deputados, sugerindo modificações no projeto de lei, é preciso deixar claro que não é possível dois trabalhadores trabalhando ombro a ombro, na mesma empresa, com as mesmas funções, de forma permanente, um terceirizado e um da empresa tomadora de serviços, um ganhando x e o outro ganhando dois x. Esta é a maior reclamação em termos de terceirização. Fora isso, não vejo com maus olhos que uma empresa chegue à conclusão de que do núcleo de atividades dela, por exemplo, esse quarto ela não vai mais me dedicar: “então, esse quarto eu vou terceirizar”. Ela pode terceirizar. O que ela não pode é, para essa mesma atividade, ter terceirizados e funcionários próprios. Por exemplo, bancários. Qual o conteúdo ocupacional da atividade de bancário? É uma atividade burocrática, mexer com dinheiro, contabilizar dinheiro, dar crédito, receber. Agora, o que a empresa bancária pode fazer? Se ela decidir que não vai mais fazer cobrança, porque existem empresas especializadas nessa área, então ela vai contratar essa empresa especializada em cobrança.

ConJur — Então, a empresa precisa definir os setores que quer terceirizar e contratar o serviço? Não pode misturar funcionários e terceirizados?
Ives Gandra Filho —
Na cadeia produtiva, quando as empresas vão se especializando, a terceirizada é aquela que presta serviço a várias empresas. Com isso o que nós teríamos? No meu modo de ver, um marco regulatório que dissesse: empresa terceirizada é aquela contratada, especializada, para prestar serviços especializados a outras empresas. Dessa forma, ficaria claro que você não pode ter ao mesmo tempo empregado próprio e empregado alheio fazendo a mesma coisa permanentemente e ganhando diferente no mesmo local de trabalho. Hoje, esse é um ponto de conflito. Estou convencido que toda essa briga que está havendo no Congresso, um certo atropelamento de se querer a ferro e fogo passar esse projeto, está sendo uma reação do empresariado ou de parte da sociedade ao ultraprotecionismo que hoje o TST dá aos trabalhadores.

ConJur — O senhor considera o TST ultraprotecionista?
Ives Gandra Filho —
Em muitos aspectos a lei não vai tão longe na proteção e o TST dá uma interpretação que, vamos dizer assim, chega a ir contra a própria lei. Exemplo, a questão das telecomunicações. A Lei de Telecomunicações [Lei 9.472/1997] diz com todas as letras que é possível a terceirização de serviços, até de atividade-fim. Fala que é possível a contratação de prestador de serviço para serviços inerentes, acessórios e complementares. Inerente é atividade principal. O que a corrente majoritária do TST diz? Ou que inerente é igual a acessório e complementar — que basta ver no dicionário que são palavras distintas. Ou diz que a lei não se aplica à Justiça do Trabalho, ao segmento trabalhista, que ao meu modo de ver é outro absurdo. Eu registro meu voto vencido.

ConJur — Essa questão está pendente no Supremo atualmente, não é?
Ives Gandra Filho —
O ultraprotecionismo foi de tal ordem no TST que esse projeto de lei correndo no Congresso Nacional puxa o radicalismo para o outro lado. E o próprio Supremo Tribunal Federal, que já havia reconhecido repercussão geral em um determinado aspecto da terceirização, na questão das teles e de call center, acabou reconhecendo repercussão geral em tema genérico de terceirização com base em eventual violação ao artigo 5º, II. Para o Supremo ter aberto essa porta de admitir repercussão geral por violação do princípio da legalidade, é que o TST está exagerando demais. Hoje, o tema da terceirização virou bandeira ideológica. Encontrei desembargador publicando livro sobre terceirização com o subtítulo: “Máquina de moer gente trabalhadora” [de autoria do desembargador do TRT-10 Grijalbo Fernandes Coutinho]. Para alguém dizer que terceirização é máquina de moer carne humana é porque já não tem mais argumento jurídico. Aí qualquer coisa vale. Então, se você começa a interpretar de forma a exagerar uma proteção que já existe na lei, a partir daí você vai ter a reação do outro lado.

ConJur — O projeto de lei que está em discussão dá garantias para o trabalhador terceirizado?
Ives Gandra Filho —
Dá. Depois de muita discussão, foi aprovado o marco regulatório das cooperativas de trabalho, que garantiu direitos aos cooperados. Isso fez com que ninguém queira, em princípio, criar uma cooperativa fraudulenta, porque há um marco regulatório. Se o empresário queria fazer com que o seu pessoal constituísse cooperativa para poder pagar menos direitos trabalhistas, com o marco regulatório ele não vai querer. A mesma coisa acontece com as empresas terceirizadas. Se esses direitos que estão sendo garantidos aos trabalhadores terceirizados para as empresas que prestam serviço, até em relação à empresa principal, com a questão da responsabilidade solidária ou subsidiária, chega um momento que a própria empresa tomadora, que é a maior interessada em terceirizar segmentos da sua atividade, vai chegar à conclusão de que acaba ficando mais caro. Vai achar melhor deixar do jeito que está funcionando.

ConJur — O senhor defendeu a terceirização de serviços, mas não a de mão de obra. E se o serviço fizer parte da atividade-fim da empresa?
Ives Gandra Filho —
Tudo depende. É possível. Existe uma terceirização que é de serviços e outra de locação de mão de obra. Terceirização de serviços é o que acontece na indústria automobilística. Ninguém nunca contestou. Agora, terceirização sob a forma de locação de mão de obra eu sou contra. Também sou contra de atividade-fim, mas acho que é possível de atividade-meio. Agora, a empresa pode até não querer mais se dedicar a um segmento que aparentemente seria sua atividade-fim e argumentar que existem empresas que prestam esse serviço a todas as outras. Então, vou confiar nela.

ConJur — A ampliação da terceirização vai, de fato, reduzir os salários no mercado de trabalho?
Ives Gandra Filho —
Em um primeiro momento sim, é natural. Ninguém segmenta partes do seu todo produtivo se não é porque está muito pesado. Eu desenvolvo todas essas atividades aqui e percebo que hoje no mundo moderno tem empresas especializadas nisso: eu vou contratar. O que acontece? Você dispensa os empregados que trabalhavam nessa atividade e contrata a empresa. Claro, individualmente, o trabalhador da empresa terceirizada ganha menos do que ganhava o seu funcionário. Mas você está terceirizando exatamente porque estava pesado e você não tinha mais condição de mantê-lo. Você está terceirizando porque aquilo já tinha ficado algo fictício. Como o que aconteceu no Congresso Nacional: um ascensorista ganhando salário altíssimo. Até professor ia querer ser ascensorista. Alguma coisa está errada. Então, em um primeiro momento, realmente há essa diferença entre o mundo irreal que existia antes e o mundo real de hoje, um salário digno e um salário razoável.

ConJur — Com o tempo, o que pode acontecer?
Ives Gandra Filho —
Depois o mercado se acerta. O serviço que for bem prestado pode aos poucos receber uma remuneração melhor. E aquilo que se diz: “Isso vai ser precarizado, porque não se cuida muito da questão dos acidentes de trabalho…” Tudo isso depende de quem eu vou contratar, se eu vou contratar uma empresa boa ou uma empresa ruim. O ponto fraco do sistema de terceirização é o setor público, que contrata muito e vice sob a égide da Lei de Licitações [Lei 8.666/1993], que exige contratar pelo menor preço. As empresas oferecem o serviço ao menor preço para ganhar e não aguentam um ano. Todo ano é preciso substituir. E aí, realmente, o trabalhador sai prejudicado. Sai prejudicado de tal forma que aqui no TST… casa de ferreiro, espeto de pau. Quantas vezes eu não tive que ajudar o motorista, porque ele não recebeu o salário dele. Ele pediu porque a empresa terceirizada não pagou. Mas, por quê? Porque o erro está na Lei da Licitação, não na terceirização.

ConJur — A lei de terceirização ameaça o concurso público de forma genérica?
Ives Gandra Filho —
Não, porque a lei não está prevê como será a terceirização no setor público. A proposta chega até a administração indireta, mas não atinge a direta, autárquica e fundacional.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!