Direito Civil Atual

É possível falar em direitos dos animais? (parte 2)

Autor

  • Atalá Correia

    é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) e juiz de direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

4 de maio de 2015, 8h00

Na primeira parte desta coluna, procuramos destacar a importância do tema relacionado ao tratamento jurídico dos animais. A Constituição Federal de 1988 não deixou o tema passar desapercebido, pois em seu artigo 225 prescreveu que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”, incumbindo ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (parágrafo 1o, VII).

A parte final desse dispositivo, que veda as práticas que submetam os animais a crueldade foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal em duas ocasiões emblemáticas e, com base nela, foram proibidas a “farra do boi” 1 e a “rinha de galos” 2, eventos que tinham importância cultural local, mas que expunham animais domésticos a crueldade.

Essa norma constitucional tem, essencialmente, dois núcleos significativos correlacionados entre si, sendo eles as expressões “animais” e “crueldade”. Na investigação sobre quais animais estão protegidos, destacamos a doutrina da senciência, que postula proteção a animais capazes de sentimento e, mais especificamente, de sofrimento.

Pois bem. Não cabe, nesse espaço, divagar sobre quais espécies são capazes de sentir e, em qual grau, mas certamente as ciências biológicas exercem papel central nessa investigação.

Do ponto de vista lógico, a ciência poderia indicar que a capacidade de sentimento é consubstancial a todos os animais ou, de modo diverso, que apenas parte deles detém essa característica.

Tanto em uma hipótese como em outra, haveríamos de nos deparar com situações inusitadas. Não se pode, por exemplo, excluir de antemão a hipótese de que tenham essa capacidade de sentir ratos, lagartos, cobras, baratas e aranhas, espécies costumeira e preventivamente eliminadas por motivos diversos, estéticos e de saúde pública. Se essas espécies estiverem albergadas pela idéia de “animais sensíveis”, extraída da norma constitucional, práticas comuns de prevenção de cunho sanitário ou não, haveriam de ser revistas. Seria o fim das ratoeiras!

Contra essa proteção talvez extremada, dois caminhos poderiam ser seguidos. O primeiro estaria a indicar que não basta a capacidade de sentimento, pois seria necessária, ainda, a capacidade de expressar esse sentimento. O segundo caminho voltaria a destacar um componente cultural a restringir o escopo da vedação de maus tratos a animais. Se for esse o caso, os precedentes mencionados deveriam ser lidos restritivamente. Isto é, o aspecto cultural não foi relevante para sustentar a prática da “farra do boi” e do “galismo”, mas talvez possa ser invocado para justificar a permanência e ratoeiras nas prateleiras.

Dito isso, podemos passar à análise do segundo núcleo de significado da regra constitucional sob discussão (artigo 225, parágrafo 1o, VII, da CF), qual seja a “crueldade”.

Ao vedar tratamento cruel não se está, no que nos parece evidente, proibindo o sacrifício de animais para servir a finalidades humanas, sendo a principal delas, a alimentação. O que se veda é a crueldade como meio de impor dor ou como forma de sacrifício. Nesse sentido, diversas unidades da federação adotaram leis para regular o abate de animais destinados ao consumo. No estado de São Paulo, a Lei 7.705/92 impõe o “emprego de métodos científicos e modernos de insensibilização” antes do abate, bem como regras de higiene e cuidados com o animal. No Distrito Federal, com redação semelhante, vige a Lei 1.567/97. A Lei Federal 11.794, de 8 de setembro de 2008, passou a regulamentar os procedimentos para o uso científico de animais, adotando critérios de controle e de fiscalização. Curiosamente, o artigo 14, parágrafo 9º, da referida lei destaca a presença de consciência nos animais, destacando que “em programa de ensino, sempre que forem empregados procedimentos traumáticos, vários procedimentos poderão ser realizados num mesmo animal, desde que todos sejam executados durante a vigência de um único anestésico e que o animal seja sacrificado antes de recobrar a consciência”.

Deve-se destacar, nessa linha, o Projeto de Lei 3.676/2012, de autoria do então deputado Eliseu Padilha, que, tratando de diversos temas relacionados à condição jurídica dos animais, busca instituir um “Estatuto dos Animais”3. No Direito Internacional, encontra-se, com o mesmo propósito a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da ONU promulgada em 27 de janeiro de 1978. Entre os seus consideranda, a Declaração assevera que “todo o animal possui direitos” e que o “desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza”. A Declaração estipula, outrossim, que “todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência” (artigo 1º), que “nenhum animal será submetido a maus-tratos e a atos cruéis” (artigo 3o), que “a experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra” (artigo 8o) e que “quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor” (artigo 9o), entre outros.

Vistos os significados relevantes para a exegese da regra constitucional, cumpre destacar que o sistema jurídico não excluiu os animais do elenco de bens passíveis de apropriação por particulares. Não se impõe o vegetarianismo ou se proíbe o funcionamento de churrascarias. Por outro lado, é forçoso convir que todo esse aparato normativo, tampouco, equiparou animais a pedras. A verdade é que ao menos grande parte dos animais distingue-se dos demais bens por terem capacidade de sentimento e, por isso, destaca-se como uma categoria juridicamente relevante. A doutrina civil, talvez intuitivamente, já distinguia os animais, chamados semoventes, dos demais bens passíveis de apropriação (artigo 82, CC).

Assim, conquanto os animais possam ser apropriados pelo homem, tornando-se, na perspectiva civilista, sua propriedade, há todo um complexo normativo pronto a proteger animais contra agressões injustas dos próprios seres humanos. Essa proteção é sui generis e não se explica pelas categorias consagradas do abuso de direito ou da função social. O abuso de direito, tomado pela perspectiva objetiva (que considera a boa-fé) ou subjetiva (que considera a intenção do seu titular), é figura criada sob a perspectiva de alteridade. Isto é, não posso exercer meu direito de forma a lesar terceiros. De modo análogo, quando se tem em mente a função social, a limitação ao exercício de direitos dá-se em prol da coletividade.

O que se vê, no direito dos animais, não é propriamente uma coisa nem outra. Os animais não são postos a salvo da crueldade porque isso pode prejudicar um terceiro considerado individualmente ou porque isso viola os interesses da coletividade. Ao contrário, ainda que a imposição de sofrimento possa contar com o apoio de grupos sociais mais ou menos amplos, como visto nos dois arestos relativos à rinha de galos e à farra do boi, tal fato pode ser, no caso concreto, irrelevante. Isso significa que, quando há salvaguarda, ela é contramajoritária e tem em perspectiva o próprio bem estar animal.

A única conclusão possível, portanto, é que há animais aos quais se defere uma espécie de valia intrínseca ou dignidade. A proteção desses animais existe como um fim em si mesmo, e não como um postulado de interesse geral abstrato. Essa dignidade é, evidentemente, diversa daquela reconhecida aos seres humanos4, já que estes não são passíveis de apropriação por outrem no estágio atual do Direito.

A questão ainda pode ser abordada sob outra perspectiva para fins de reflexão. Uma visão antropocêntrica e utilitarista poderia levar a conclusões amplamente diversas, argumentando, por exemplo, que o sacrifício do animal, em eventos culturais ou desportivos, não muda a natureza das coisas, já que, sem dor, eles poderiam ser sacrificados de qualquer modo para a alimentação humana. Ocorre que o sofrimento deles, nestas situações, gera a maximização do bem estar do ser humano, que pode divertir-se e lucrar a despeito do que se passa com o animal. Empregos seriam gerados com atividades relacionadas, por exemplo, à rinha de galo ou à farra do boi. Mas, essa, como vimos, não foi a solução dada pela Constituição Federal, na interpretação que lhe deu o STF, que muito claramente vedou o sofrimento nessas hipóteses. Quando reconhecemos que o bem estar de certos animais também interessa, o que estamos fazendo é justamente colocá-lo a salvo de uma apropriação ilimitada, por seu valor intrínseco, e independentemente dos benefícios que possam ser distribuídos aos seres humanos.

É de se perguntar, portanto, se os animais não representam uma categoria destacada entre os bens, uma categoria com certa dignidade. A experiência de alguns países vem dizendo que sim. O art. 515-14 do Código Civil francês, a partir de 16 de fevereiro de 2015, passou a estabelecer que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade” e, sob a proteção da lei, são submetidos ao regime dos bens. O artigo 90 do Código Civil alemão destaca que “animais não são coisas”, sendo protegidos por leis especiais e aplicando-se-lhes as regras das coisas com as modificações necessárias.

Há, é verdade, quem busque dar aos animais condição mais elevada do que essa, postulando o reconhecimento de personalidade jurídica a eles. As iniciativas são sérias e, dado o propósito desta coluna, remeteremos o leitor ao excelente texto do professor Gunther Teubner (Rights of Non-humans), disponível em site mantido pelo professor Otávio Luiz Rodrigues Júnior5 e ao Projeto de Lei 7.991/2012, de autoria do então Deputado Eliseu Padilha6. O Projeto de Lei 6.799/2013, proposto pelo deputado Ricardo Izar, de modo similar, procura estabelecer que “os animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”.

Todas essas questões, como se vê, estão sendo apresentadas pela atual dinâmica social e certamente devem encontrar respostas por um Direito Civil que se pretenda contemporâneo.

1 STF, RE 153531, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998 PP-00013 EMENT VOL-01902-02 PP-00388)

2 STF, ADI 1856, Rel.  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-02 PP-00275 RTJ VOL-00220- PP-00018 RT v. 101, n. 915, 2012, p. 379-413)

4 “Há, evidentemente, diferenças importantes entre seres humanos e outros animais, e tais diferenças devem dar origem a outras tantas nos direitos de cada um. O reconhecimento desse fato evidente, entretanto, não impede o argumento em defesa da extensão do princípio básico da igualdade a animais não humanos” (SINGER, Peter. Libertação Animal. Trad. Marly Winckler e Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2013, p. 18).

5 Disponível em http://www.direitocontemporaneo.com/?page_id=139, acesso em 4.4.15.

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