Processo Familiar

O "efeito Fachin" e as novas relações de poder, com a devida vênia

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

26 de abril de 2015, 8h00

Nestes últimos tempos, tenho observado as mais diversas manifestações com relação à escolha do nome de Luiz Edson Fachin para o Supremo Tribunal Federal. Adianto que o conheço pessoalmente, e a decisão em ocupar este espaço para escrever a respeito de sua indicação se deu não sem passar pela angústia própria às decisões éticas quanto à parcialidade versus imparcialidade.

Curiosamente, um dilema muito próprio aos psicanalistas que, num exagero ético de pretensão de neutralidade — nem a água o é — até o ato de cumprimentar um paciente fora do consultório podia ser desconfortável. Conhecer o paciente então, nem pensar. Estranhamente, acabamos por pretender ser mais realistas que o rei, ou mais freudianos que o próprio Freud, que, aliás, analisou vários de seus colaboradores e, até indevidamente, sua própria filha.

Não à toa, Freud descreveu como profissões “impossíveis” a de psicanalista, de educador, de político e, claro, caberia acrescentar também a de magistrado. Profissões “impossíveis” por exigirem um constante questionamento quanto à distinção entre a pessoa, o cargo e a função. Profissões que são alvo das mais diversas projeções.

E entre ires e vires de neutralidade, parcialidade e imparcialidade, herdeiros de um exagero positivista, vamos tateando nossos devidos lugares. Neste contexto, peço a devida vênia para falar do efeito Fachin.

Vi desenhados vários Fachins nos veículos de comunicação e nas redes sociais. Estas que representam uma virada e horizontalização nas relações de poder que, como escreveu o filósofo Michel Foucault, também acontecem de forma capilar. A possibilidade em manifestar-se nas redes representa um caminho democrático, que também pauta sua representatividade na liberdade do engajamento. A internet, uma ágora a ser explorada, permite novas vozes nas instituições formalmente constituídas pela delegação, também formal, do poder.

Ao conceito do poder constituído pela subtração dos poderes individuais, em que abrimos mão de uma parte de nossa liberdade e de nossa autonomia para que um outro tenha poder, soma-se um poder que se fortalece nas redes sociais e que, por sua vez, pode retroalimentar a delegação da autoridade.

E, nessa linha, a ideia de que o direito e a liberdade de um vão até onde começam o direito e a liberdade do outro pode ser pensada também como: o direito e a liberdade de um começam onde começam o direito e a liberdade do outro. Um lindo efeito multiplicador.

Porém, como fenômeno bem descrito por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Ego, por vezes no contexto dos grupos, como é o caso das redes sociais, as barreiras advindas do superego — aquela lei interna que nos impõe limites, a instância moral que nos pressiona quanto às escolhas éticas que fazemos —, podem ser temporariamente removidas. E a falsa ideia de anonimato anima manifestações em que podem imperar a ausência de superego, em que a informação, a ética e a moral são deixados de lado. Nesse contexto entram em campo, sem filtros, a ação e as emoções sem controle, as antipatias, as simpatias e os preconceitos.  Assim se dão os fenômenos dos linchamentos e os espaços das redes sociais podem se tornar antissociais.

Deixados de lado a boa-fé e os direitos fundamentais, podem se multiplicar distorções, conscientes ou não. É certo que no plano das subjetividades, despertando simpatias e antipatias, há sempre algo da ordem da realidade. Assim, uma distorção ou um delírio não constroem do nada. O comportamento de “desrazão” se funda também em aspectos, em partes da realidade, que são tomadas como se traduzissem o todo. Dessa forma é que vejo a distorção na utilização de trechos da biografia de Fachin que tocam adesões políticas, e mesmo a leitura por ele feita do manifesto de diversos juristas em apoio à campanha presidencial em 2010.

Fachin, neste momento, tem ocupado um lugar que os psicanalistas bem conhecem: o lugar da transferência. Fenômeno descoberto por Freud, que obviamente não se dá somente nos consultórios, mas em diferentes contextos, e no imaginário social. Não só os psicanalistas, mas figuras de autoridade, e sobretudo as figuras públicas são alvo das mais diversas projeções, de transferências, algumas positivas, outras negativas, incluindo paixões, preconceitos, idealizações que, em geral, mascaram ou impedem uma visão mais realista.

Há líderes que têm clara a distinção entre a pessoa, o cargo e a função, há outros que acreditam que encarnam o ideal neles projetado, deixando, como se diz, o poder subir à cabeça.

E nos momentos de incerteza, por natureza propícios às transferências, ganha ainda mais importância a informação, numa dialética de esclarecimento. Só assim podemos diminuir a avaliação subjetiva para, então, distinguir a pessoa e suas opções pessoais, do cargo e da função. E, da mesma forma, só com informações podemos verificar o quanto aquele a quem se delega o poder, distingue os interesses e representatividade que lhe traz um cargo e o exercício da função, dos interesses estritamente pessoais.

Vivemos tempos interessantes, em que preconceitos demandam conceitos, em que a antipatia e simpatia demandam a empatia. Tempos de pensamento em sintonia com sentimento, tempos de razão com emoção. Tempos permeados de incertezas e de dúvidas que, se metódicas, podem desconstruir certezas moralizantes para, assim, construir o pensamento empático e a informação utilizada de forma consciente e ética.

Com a devida vênia, e tal qual uma nota de rodapé, acrescento e compartilho da experiência pessoal/institucional que com Fachin tive. Conheci o simpático jurista em 2000, em um Congresso na Austrália, da Sociedade Internacional de Direito de Família (ISFL) que, honrada, integro como uma vice-presidente. Tenho também a rara oportunidade de com ele integrar a diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Um convívio irmanado por ideais comuns, para os quais tomo as palavras de sua obra, de 2003, Teoria Crítica do Direito Civil: “Queira ainda o futuro reservar para o novo desenho jurídico do Direito de Família e do Direito Civil brasileiro espaço para a realização do sonho de uma sociedade justa, fraterna e igualitária”. Um convívio no qual, digo de passagem, preferencias político-partidárias não integraram pauta alguma de conversas, mesmo que informais.

O propósito sempre esteve voltado ao Direito de Família, na discussão de ideias plurais, num convívio cujo efeito posso recomendar. Dotado de admirável capacidade em captar e sintetizar e harmonizar ideias, com toques de raro humor e leveza de pensamento, traduzindo para a linguagem dos direitos humanos, diferentes pontos de vista. Postura em que uma preciosa combinação de generosidade, altruísmo  e sabedoria, levam-me a falar de um Fachin que transcende.

Do meu ponto de vista, de imenso valor a epistemologia transdisciplinar que fundamenta suas posições. Postura que também acredito transcender questões político-partidárias, mas sempre com a sintonia política própria às funções que o vi exercer. Cuida-se agora, na ágora, e no STF da função à qual sua trajetória acadêmica, profissional e institucional, e ética, que posso testemunhar, fazem jus. 

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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