Observatório Constitucional

O controle nosso de cada dia e o velho presidencialismo: o que têm a ver?

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25 de abril de 2015, 8h00

Spacca
O nosso sistema de controle de constitucionalidade foi copiado dos Estados Unidos e introduzido pela Constituição de 1891, após a proclamação da República. Não preciso falar dos problemas decorrentes da introdução de um sistema de controle de constitucionalidade atravessado pela carga genética da tradição do common law (em que há o stare decisis) por um sistema de tradição romano-canônico que recém havia saído de um regime de mais de 70 anos (Império) sem controle jurisdicional, já que na Constituição de 1824 — outorgada pelo imperador D. Pedro I — o Brasil havia se aproximando principalmente do constitucionalismo forjado nas lutas políticas da Europa continental, que, nos séculos XVIII e XIX, buscava a limitação do poder discricionário dos monarcas por meio da volonté générale formada no Parlamento.

No entanto, diferentemente dos europeus, o constitucionalismo em terrae brasilis começou apenas pro forma, com um imperador governando de maneira extremamente arbitrária, um Poder Judiciário subserviente e um Parlamento enfraquecido frente às investidas autoritárias do Poder Central. Desse modo, durante o Império, as deficiências do Parlamento e a ausência de um controle jurisdicional de constitucionalidade acabaram favorecendo a consolidação de um regime político autoritário, controlado pelo estamento burocrático (Faoro) e comandado — ao invés de ser governado constitucionalmente — pelo imperador.

Em 1889, o imperador saiu de cena e em seu lugar surgiu o regime presidencialista, numa imitação mal feita do sistema construído pelos Estados Unidos no século XVIII. Ao mesmo tempo, dando continuidade a maneira incoerente de incorporar as inovações do constitucionalismo estadunidense, o Brasil criou o Supremo Tribunal Federal e o controle difuso de constitucionalidade, colocando os velhos ministros do Supremo Tribunal de Justiça do Império para operar as inovações constitucionais que desconheciam completamente. E foi assim que tudo começou.

Mas, o que tem a ver o nosso sistema de controle de constitucionalidade com o nosso sistema de governo presidencialista? Tudo, porque o original americano foi forjado a partir da ideia de a Supreme Court ser um Tribunal da federação, circunstância que levou Rui Barbosa a pensar em uma democracia juridicista no Brasil. Ou seja, ao menos nos EUA, o judicial review tem essa relação com o sistema de governo. Aliás, não estou sozinho nessa tese. Bruce Ackerman tem um livro que se chama The failure of the fouding fathers: Jefferson, Marshall and the rise of presidential democracy (Harvard, 2005), em que defende a tese de que o surgimento do Judicial Review, nos EUA, está intimamente ligado ao Presidencialismo plebiscitário, à bagunça do bipartidarismo e do processo eleitoral estadunidense. Bingo! Se Ackerman conhecesse o Brasil…

Não tenho receio em afirmar que o sistema de governo presidencialista é responsável pelo tipo de partidos e estilo de “acordos” para a governabilidade que reina (no duplo sentido da palavra) no Brasil desde a República Velha. A recente redemocratização e a ampliação do número de partidos colocaram, talvez, um pouco mais de complexidade nessa situação. Com efeito, ainda em 1987, o cientista político Sérgio Abranches, no momento em que o debate constituinte tinha como pauta o problema do pluralismo partidário, cunhou o termo que hoje faz moda nas discussões envolvendo a relação interinstitucional entre o Legislativo e o Executivo: o presidencialismo de coalizão. Sim, nosso presidencialismo é de coalizão. E nesse aspecto não importa a ideologia, pois tanto a direita (sic) como a esquerda (sic) são iguais em terrae brasilis. Fazem política de maneira pragmática, sempre instrumentalizando a Constituição e desrespeitando a República. Assim, a cada nova votação, um novo acordo. E um bando de gente do Parlamento extorquindo o governo, leia-se, Poder Executivo quase-imperial (aliás, inspirado nos Estados Unidos). É preciso lembrar as emendas parlamentares e as liberações de verbas feitas cotidianamente pela Presidente?  Para quem não acompanha o giro cotidiano de nosso presidencialismo escatológico, lembro artigo do jornalista Josias de Souza, onde elenca alguns elementos: “Enquanto o PT puxa o tapete de Joaquim Levy, o PMDB estende a mão ao ministro da Fazenda. O PMDB assina o projeto que reduz a 20 o número de ministérios e indica ministros para as pastas cuja extinção defende. O PMDB frequenta a lista suja da Lava Jato e, estalando de pureza moral, controla a CPI da Petrobras. O PMDB faz e o PMDB desfaz.  (…) Renan e Cunha açulam o condomínio governista contra Dilma. (…) Na Câmara, Cunha desengaveta o projeto da terceirização. No Senado, Renan promete reengavetar. Jucá triplica a verba destinada aos partidos. Dilma sanciona. E Renan, unha e cutícula com Jucá, desanca Dilma por não ter vetado o descalabro”. Bingo! Se o presidencialismo de coalizão (emendatório-orçamentário) já em si é um problema, imaginemos isso tudo com o peemedebismo a toda prosa, com a dominância das duas casas do Congresso, construindo um “parlamentarismo-jabuticabo-frankenstein”. Na verdade, o peemedebismo já é uma espécie de “eidos jabuticabus”. Só ele é essencial(ista). O resto é uma cópia malfeita. O leitor não enxerga o peemedebismo?[1] Pena. Se o (e)leitor não capta as essências, o que a política pode fazer? É porque o (e)leitor não tem ainda os olhos para ver esse eidos. A essência platônica do PMDB é o peemedebismo. Os demais, incluindo o PT, são cópias mal-elaboradas…!

Presidencialismo, coalisões e as tensões que acabam no STF
Vejamos a relação do presidencialismo e do parlamentarismo com o “problema da jurisdição constitucional”. Nos regimes parlamentares houve a magnífica invenção dos Tribunais Constitucionais. Como, regra geral, o governo é formado por maioria parlamentar, não há tensão entre a “vontade do presidente” e a “vontade do Parlamento”. Ao contrário do presidencialismo brasileiro, não há “duas vontades gerais em conflito” no parlamentarismo. Consequência: no parlamentarismo, as tensões sobre Direito, especialmente a questão central — a constitucionalidade das leis — são resolvidas por um tribunal que está fora do âmbito dos três poderes tradicionais. O Tribunal Constitucional é um tribunal ad hoc. Ele é composto e engendrado pelo Parlamento. O Poder Judiciário não assume protagonismo, porque o Tribunal Constitucional não é do Poder Judiciário. Como isso funciona? Vejam as democracias da Alemanha, Espanha, Portugal etc.

E, no Brasil? Aqui, o presidente é eleito com 50% mais um; o Parlamento tem “vontade geral” que, para apoiar o governo, negocia para formar a maioria. E negocia “bem” (veja-se o que esteve em jogo na disputa Cunha x Chinaglia). E muito. Sempre exigindo mais do patrimônio público (e há quem entenda mais adequado substituir o verbo “exigir” por “extorquir”). E, mesmo assim, há tensões. Constantes. Legislativo versus Executivo. Para onde vai esse tensionamento? Para o Poder Judiciário, mais especificamente, o Supremo Tribunal Federal. Assim, mais tensões, mais demandas ao STF; mais forte este fica. Inércia do Executivo? Demandas que vão ao Judiciário lato sensu, que, assim, fica mais forte. Inércia do Legislativo? Idem. E o STF fica mais forte. Não há Judiciário mais poderoso no mundo do que o do Brasil (basta ver que há poucos dias um juiz federal “decretou” intervenção em um município do Ceará, nomeando inclusive um servidor para isso).

A solução? Bem. Talvez a ideia de um Tribunal Constitucional não seja má (embora isso calhasse melhor em um sistema parlamentarista…) Aliás, com certeza, funcionaria melhor, com mandatos fixos de 8 anos, renováveis por uma vez. E delimitação de competências constitucionais. Não dá para o STF julgar questões de processos criminais que dizem respeito a furtos de sabonetes. Como é possível que tenhamos que ir ao STF para libertar um cidadão preso porque não devolveu DVD em locadora? Mas as instâncias inferiores não sabem julgar? Como é possível que os 27 tribunais dos Estados ainda julguem processos invertendo o ônus da prova em processos criminais?

Demandas e custos de legitimidade
Onde quero chegar? Quero demonstrar que, do mesmo modo como o presidencialismo brasileiro é de coalizão, enredado em atendimentos de pleitos políticos ad hoc, circunstância que causa enormes problemas para a assim denominada “governabilidade” (por que precisa de um ministério da Pesca?), também o Supremo Tribunal Federal acaba ingressando perigosamente nesse terreno de (atendimento a) demandas de grupos. E também — e isso precisa ser dito — demandas provenientes da falta de resolução dos problemas das liberdades públicas no plano dos demais tribunais do país. Eles falham e tudo acaba no STF.

Assim como a Presidência da República tem que atender aos pleitos dos partidos, o STF, durante esses mais de 20 anos, acabou por engendrar uma espécie de “julgamentos políticos”. Entendam-me bem: julgamentos políticos no sentido de que os resultados dos julgamentos por vezes atenderam reivindicações dos mais diversos setores da sociedade. Assim, o “partido” das nações indígenas foi até o STF e teve suas demandas atendidas; o “partido” das cotas queria legitimar as cotas, e deu certo; o “partido” das uniões homoafetivas queria que o STF dissesse que união estável era equiparável a casamento, e obteve êxito; o “partido” das causas feministas, entre outras coisas, buscou retirar da mulher vitimada por maus tratos a titularidade da representação, e igualmente se saiu bem; o “partido” dos governadores foi ao STF resolver o problema dos precatórios…e bingo! (complicou tudo); o partido (agora, sim, não entre aspas) de oposição, descontente com uma decisão de não cassação do deputado federal Natan Donadon, correu ao STF pedindo uma liminar… e ganhou; o “partido” das questões ligadas aos embriões e células tronco, idem; o “partido” dos governadores (questões envolvendo guerra fiscal, etc.) bateu às portas do STF uma infinidade de vezes; o “partido” das reivindicações de prestação de saúde via judicialização também alcançou seu desiderato; o “partido” da moralização das eleições (ficha limpa) foi pressionar para que o STF considerasse constitucional a Lei da Ficha Suja (ou Limpa); até mesmo o “partido” do parlamento saiu-se bem, pois, mesmo sem obedecer à Constituição, conseguiu validar quase 500 medidas provisórias graças a uma modulação de efeitos concedida pelo STF… E assim por diante. As decisões estiveram teleologicamente corretas? Principiologicamente incorretas (algumas)? Aí é que está o problema. Julgamentos não devem ser teleológicos.

Com efeito. Em boa parcela desses pleitos, julgados por intermédio de ADIs, ADPFs e HCs, a resposta do STF foi invasiva, por vezes ingressando nas competências dos demais poderes (não importa, aqui, se esses “demais poderes” “mereceram” essa invasão ou não, em face de suas inércias). Aliás, isso pode não ser de todo um mal. Talvez o grande problema esteja na distinção entre judicialização e ativismo. Explico: a primeira acontece porque decorre de (in)competências de poderes e instituições, abrindo caminho-espaço para demandas das mais variadas junto ao Judiciário; a segunda é, digamos assim, behaviorista, dependendo da visão individual de cada julgador (em termos hermenêuticos, isso é resultado de uma certa “razão teológica” decorrente de uma ontoteologia, como explicito em Verdade e Consenso). O ativismo não faz bem à democracia, como já escrevi tantas vezes em artigos e livros.

Mas também em boa parcela das respostas do STF pode se ver nitidamente julgamentos “de acordo com as reivindicações”. Por exemplo, o julgamento dos Fichas Limpas. Ou da Lei de Imprensa, tarefa incumprida do Parlamento que acabou sendo feita pelo STF. Fala-se seguidamente em “atender a opinião pública”. Mas, como se afere a opinião pública? Deveríamos plebiscitar os julgamentos da Suprema Corte? Mas se o STF deve julgar conforme o desejo da maioria do povo, por que razão necessita(ria)mos de um tribunal com essa função? E, uma questão: isso vale para os julgamentos criminais?

Julgar por políticas ou por princípios?
O nosso presidencialismo faz com que o Executivo e o Legislativo não tenham condições de resolver determinados problemas. E parte disso desemboca no STF. Este, ao atender reivindicações ou demandas populo-sociais (ou até mesmo parlamentarias), por vezes deixa de julgar por princípios e passa a julgar por políticas, substituindo-se aos dois outros poderes enredados em “coalisões”. E isso me parece problemático. Assim:

a) A diferença entre esses dois tipos de julgamentos é a seguinte: quando decide conforme princípios o Judiciário reconhece a existência de um direito que as partes possuem e que está inscrito no contexto mais amplo da moralidade da comunidade política;
b) Já quando decide por políticas o Judiciário assenta sua decisão, não no reconhecimento de um direito preexistente, mas, sim, em algum tipo de argumento que anuncia uma avaliação de resultados que podem trazer maior (ou menor) benefício para os reivindicantes.

O resultado ou a consequência desse estado d’arte é que, chegando próximo a julgamentos tensionantes — como foi o caso do “mensalão” e logo aí estará o “petrolão” — a nossa Suprema Corte fica sendo pressionada por vários grupos, como se também em julgamentos criminais pudessem ou devessem existir “julgamentos políticos”. Não! Aí é que está. Nem em processos criminais e nem em quaisquer outros. Moral ou moralismos não podem corrigir o direito (mesmo que muitos acreditem que princípios sejam valores). Mas o direito não é moral. Não é sociologia. Abebera-se disto tudo. Tudo isso atua por meio do direito, como já escrevi à saciedade e mesmo sofrendo LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo, aqui não repetirei). O Supremo Tribunal deve cuidar para não ingressar mais e mais nesse terreno movediço chamado “jurisdição de coalizão”, como que fazendo uma imitatio do fracassado presidencialismo.

É claro que, chegando a causa ao STF, ele deve julgar. A Corte não atua de ofício. Mas, é bem verdade que muitas delas são questões que a sociedade deve resolver. Deixando tudo para o Supremo, enfraquecemos a cidadania. A política vai mal? Façamos mais política. O mesmo acontece com o STJ, por vezes caindo na armadilha do pan-principialismo (um exemplo é a judicialização do afeto de pai em relação ao filho, para citar apenas um caso). Ou com os Tribunais, como nos casos em que a amante, concubina adulterina, mesmo contra a lei e a Constituição, começa a ganhar metade da herança. E assim por diante. De ativismo em ativismo, vamos “fortalecendo” o nosso presidencialismo de coalizão (e com as adjetivações que quiserem), que, ao fim e ao cabo, é a holding dessa fenomenologia. Uma palavra final, só para registrar um sintoma: em qual país do mundo o ministério da Saúde coloca em seu site um roteiro (e um conselho) para que o utente ingresse em juízo contra o governo? Definitivamente, o réu não se ajuda!

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Estou parodiando a discussão de Adso de Melk com Guilherme de Baskerville, em O Nome da Rosa, quando aquele pergunta a este se os rastros dos cavalos (vistos na neve) falavam de todos os cavalos, uma vez que o livro da natureza nos fala de essências… Claro que Guilherme não concorda, porque é um nominalista. Mas, aqui, no caso, faço uma construção. O mestre é quem diz para o discípulo que ele ainda não tem os olhos para ver a cavalidade, ou seja, no caso de Pindorama, a essência do peemedebismo…

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