Divergências de modelos

O debate que ocorre sobre a constitucionalidade das OSs

Autor

  • Alexandre Veronese

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Mestre em Sociologia e Direito (UFF) Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

25 de abril de 2015, 6h29

O ano de 2011 representou certo sentimento de “repeteco cognitivo”, para mim, por dois fatos. O primeiro foi a retomada do julgamento da ADI postulando a inconstitucionalidade da Lei 9.637/98. O segundo é que foi lançado o meu livro sobre o tema das organizações sociais: “Reforma do Estado e Organizações Sociais: a experiência de sua implantação no Ministério da Ciência e Tecnologia” (Editora Fórum, 2011, 230 p.). Os dois fatos geram a obrigação de construir uma correlação. Agora, com o término do julgamento da ADI 1.9213/DF, vale refletir sobre a constitucionalidade do modelo das OS.

O objetivo central da minha pesquisa foi analisar as divergências existentes na construção do modelo das organizações sociais para além da doutrina jurídica. Logo, a preocupação não foi coletar opiniões de juristas sobre a constitucionalidade, ou não, do modelo de OS. Ou, ainda, o objetivo não foi avaliar a sua juridicidade. Isto seria inócuo para trazer novas luzes ao debate. Alguns juristas consideravam o modelo discrepante e inviável na tradição brasileira. Outros abraçaram a explicação gerencial, de que o modelo tradicional precisava de atualização em seus conceitos e, portanto, defendiam que as linhas do Plano Diretor para Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, seriam necessárias ao futuro desenvolvimento do país.

A coleta de dados para a pesquisa se baseou em entrevistas e documentos para demonstrar como o modelo da Lei 9.637/98 foi aplicado na área de ciência e tecnologia, ao passo em que foi ignorado – ou, rejeitado – pelos demais ministérios. O exemplo das universidades federais é enfático e relatado na dissertação. A explicação para o “sucesso” do modelo federal das OS na área de ciência e tecnologia é destrinchado. Ele foi – e talvez ainda seja – uma solução adequada para os produtores de ciência e tecnologia e seus gestores. Para ter uma ideia atual do problema de gestão na produção da ciência e tecnologia, basta visualizar o debate realizado pelos sindicatos da educação superior contra as fundações de apoio das universidades, cujo modelo é definido pela Lei 8.958/94. Os sindicatos consideram que tais entidades deveriam ser extirpadas do horizonte das IFES. Os pesquisadores defendem a existência delas para poder gerenciar verbas estatais e privadas de forma flexível. As OS federais foram criadas e operam na área de ciência e tecnologia sem grandes sobressaltos.

O debate no plenário
O voto do relator, ministro Carlos Ayres Brito, refez a análise tradicional do direito administrativo para apreciar a constitucionalidade da Lei 9.637/98. Pode-se dizer que ele considerou inconstitucional qualquer tentativa de extinção de entidades estatais, para que suas atividades sejam atribuídas a entidades privadas. Em suas palavras: “A verdadeira questão é de que ele, Estado, ficou autorizado a abdicar da prestação de serviços de que constitucionalmente não pode se demitir. Se retirar do Estado os serviços públicos, o que fica é outra coisa em qualidade que já não é o Estado”. Em sentido parecido votaram a ministra Rosa Weber e o ministro Marco Aurélio Mello.

A decretação de inconstitucionalidade proposta pelo ministro Ayres Brito focalizava fortemente os artigos 18 até 22 como contrários à ordem constitucional. Ele considerou – em síntese – que um plano nacional e sistemático de publicização, ou seja, de aplicação do modelo de OS pela extinção de órgãos e de entidades estatais, seria inconstitucional. Em relação à definição do modelo e dos critérios de qualificação para novos entes paraestatais, o ministro foi um pouco mais moderado. Ele consignou que não existe óbice ao contrato de gestão, entendido como um convênio entre entidades privadas e o Estado, para a prestação de serviços sociais. Logo, as OS poderiam operar desta forma, desde que fossem entidades privadas, escolhidas por licitação e submetidas a todos os controles típicos. Em relação aos atos administrativos já realizados – inclusive de qualificação de entidades e de extinção de outras –, o ministro considerou a necessidade de modular os efeitos da inconstitucionalidade parcial, os reconhecendo como legais e legítimos.

Antes do voto do relator, a então vice procuradora-Geral da República, Deborah Duprat, se manifestou. O parecer do procurador-Geral anterior havia sido feito no sentido da inconstitucionalidade parcial. Todavia, a representante do Ministério Público Federal junto ao Pleno opinou pela inconstitucionalidade total da Lei sob análise. Em síntese, ela considerou que há um modelo de Estado previsto no artigo 37 e seguintes da Carta Republicana de 1988 que deve ser implantado de forma total e irrestrita. Logo, qualquer modelagem que visasse inovar tal conjunto de princípios – na sua leitura – seria prejudicial à efetivação dos direitos dos cidadãos. Ela inda indicou o risco grave aos serviços de saúde e educação no Brasil, com base na universalidade abstrata. Em mirada rápida, a sua opinião trouxe uma reiteração da visão tradicional que educação e saúde devem ser prestadas pelo Estado e que o modelo de prestação deve ter os moldes tradicionais dos serviços públicos. E ponto final. O problema do argumento é que a educação e a saúde, no Brasil, estão radicalmente privatizadas na prática. Logo, o argumento é tipicamente jurídico: “deveria ser tudo estatal, no modelo clássico; outro caminho é inconstitucional”. O problema é que a realidade – sempre ela – diverge. Decidir que o modelo das OS é inconstitucional pelo que devia ser e não é exige indicar que a ação privada – na educação há fomento às IES privadas por meio de desonerações e até por transferências diretas – em tais setores é ilegítima. Afinal, assim é; mas não deveria ser. Em síntese, a defesa vai um pouco além da análise jurídica, porque é um argumento axiológico puro, quase moral.

O voto de Luiz Fux
Houve um fato novo, com um pedido de vista do ministro Luiz Fux. O voto do ministro fortaleceu os argumentos em prol da inovação institucional e renovou o discurso em prol da constitucionalidade do modelo. Não pude deixar de lembrar em Roberto Mangabeira Unger, ao ler no voto-vista do ministro que “a atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado”. De plano, o voto rebateu o argumento de que os serviços sociais são – e devem ser – precipuamente prestados por um modelo estatal clássico. O curioso é que o argumento bate com a realidade da área de educação superior, na qual as matrículas nas IES privadas em muito ultrapassam as públicas. A conclusão é de que deve haver interpretação conforme em alguns tópicos da lei, especialmente sobre controles e licitação. Mas, inconstitucionalidade não foi indicada.

Faço uma nota, pois o presente texto trata da convergência do julgamento com a minha pesquisa. Como indicarei no parágrafo posterior, eu não tenho – nunca tive – uma posição radical em prol ou contra o modelo. Sempre fui curioso em entender a polêmica, desde a gênese, bem como a apropriação das OS na área federal de ciência e tecnologia; em paralelo ao seu desprezo nos outros setores da administração.

Com o voto do ministro Fux, o debate ficou mais animado. Se o modelo fosse declarado parcialmente inconstitucional, nos moldes do voto do relator, nada mudaria. Curiosamente, se prevalecer o voto-vista do ministro Luiz Fux, também não haverá mudanças. Desde o momento inicial, sempre considerei que a probabilidade do plenário seguir a opinião oral da PGR seria diminuta. Em suma, na ausência de grandes alterações, tudo continua como está. Afinal, a aplicação do modelo parou no governo Fernando Henrique. No governo Lula, a trava foi mais enfática. Por outro lado, se o governo federal quiser criar entidades estatais para absorver as seis organizações sociais da área de ciência e tecnologia, isso seria possível. Bastaria editar leis específicas para realizar a transição. Mas, algo não mudará e isto é ruim. O que não vai mudar é a radical ação da iniciativa privada na área de educação e de saúde; muito objetada em algumas manifestações. A privatização da saúde e da educação – propagandeado como o mal que seria trazido pela Lei das OS – já é uma realidade. E a radicalização da prestação estatal de serviços sociais nestas áreas não advirá da decretação da inconstitucionalidade da Lei 9.637/98, obviamente.

O paralelo
Além da reedição do debate parlamentar, o debate judiciário e, especialmente, o voto do relator reforçou a hipótese analisada na dissertação. O modelo das organizações sociais só foi aplicado na Administração Pública Federal em meio à ciência e tecnologia porque resolvia problemas peculiares deste setor, no qual os cientistas possuem uma atuação eficaz junto à administração central e abraçaram o modelo. O caso do LNLS é paradigmático. Ele era uma incipiente infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico. Um acelerador de partículas de grande porte; o único do gênero na América do Sul. Por ser grande e complexo, ele tinha a forma de um equipamento multiusuário, ou seja, que deveria ser partilhado por diversos grupos de pesquisa. O mesmo ocorre com grandes telescópios, por exemplo. Normalmente, é caro demais para um país somente; eles são construídos e operados por convênios internacionais. A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) tem a mesma característica. Problemas especiais foram resolvidos com uma solução especial, não geral. A dissertação mostra isso.

Em linha de conclusão, o modelo das OS não foi algo generalizável para toda a administração federal pelas dificuldades de lidar com os vários conjuntos de entidades estatais e de servidores públicos. Em síntese, o Estado não é um monólito e as entidades – por mais que partilhem um regime jurídico “único” – são plurais e usam as regras de forma diversa no seu cotidiano. A jornada de trabalho e os limites da subordinação hierárquica – nos vários órgãos e entidades – configuram dois exemplos evidentes de uso, de adaptação e de torção das regras gerais. A falta de aplicação geral deste modelo da Reforma Administrativa de 1995 configurou um fenômeno que também ocorreu com as agências executivas, cujos pilotos foram implantados e, depois, abandonados. As agências reguladoras – outra parte do Plano Diretor – viraram autarquias tradicionais e sem a imaginação institucional que propunham.

Em relação ao debate no STF, o bom foi ver que o trabalho de pesquisa mantém sua atualidade porque demonstra – de forma límpida – que é inviável entender tais processos administrativos com olhar enviesado e baseado em preconceitos. É necessário examinar o cotidiano e os participantes para entender porque determinados conjuntos de regras são apropriados nas práticas administrativas e, principalmente, como é que isso ocorre. O exemplo, das OS na ciência e tecnologia, enfim, continua válido como um “laboratório de modelo administrativo” que merecia ser conhecido.

Pós-escrito
Esse texto acabou não sendo publicado quando de sua produção original, por volta de 2011. O resultado da constitucionalidade do modelo das OS sempre me pareceu evidente. Afinal, decidir se os serviços sociais serão prestados sob a forma de fundações privadas – com empregados públicos – ou por meio de autarquias e fundações públicas – com servidores estatutários – é uma opção de políticas públicas, aberta ao debate legislativo. A coexistência, aliás, de várias formas de prestação também é aberta às opções. A questão não é de cunho constitucional, neste sentido. A questão está relacionada às decisões políticas. Esse é o local de debate.

O problema dos serviços sociais universais no Brasil continua. Eles estão – hoje – sendo ofertados de forma claramente privatizada e por meio de empregados privados. Mais ainda, eles são cobrados e – ao menos na educação – há grandes dúvidas sobre sua qualidade, de forma geral. Logo, indicar que o modelo das OS iria privatizar a educação parece surreal. Afinal, já é assim, em grande medida. A educação superior, por exemplo, já foi privatizada e é mantida, por meio de vultosas transferências – renúncias fiscais, PROUNI, FIES – pela União.

Um modelo administrativo pressupõe a possibilidade de que ele tenha um uso geral. É claro. Mas, o modelo das OS foi utilizado para resolver problemas administrativos específicos e teve bons resultados na área de ciência e de tecnologia federal. O debate deveria focalizar nestes exemplos e não em uma guerra abstrata de conceitos e de interesses.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Sociologia e Direito (UFF), Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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